07 - Os profissionais de saúde desempenham um papel essencial
Equipe Editorial Bibliomed
Os profissionais e serviços de saúde tem um papel crucial para lidar com a
violência contra as mulheres. Na maioria dos países o sistema de saúde constitui
a única instituição que interage com quase toda mulher em algum momento de sua
vida. Por isso, os profissionais e serviços de saúde estão em posição
privilegiada para reconhecer as vítimas da violência e ajudá-las. Também, como a
violência aumenta o risco de outros problemas de saúde das mulheres, o
atendimento imediato pode prevenir as condições mais graves que ocorrem depois
do abuso.
Recentemente, a comunidade da área de saúde começou a mobilizar-se para
enfrentar este desafio. Em 1993, a Organização Panamericana de Saúde (OPAS)
tornou-se a primeira organização internacional de saúde a reconhecer a violência
contra as mulheres como um problema de alta prioridade, ao aprovar a resolução
CD39.R8 conclamando todos os governos membros da organização a estabelecer
planos e diretrizes nacionais de prevenção e controle da violência contra as
mulheres (344). Em 1996, a 49ª Assembléia Mundial de Saúde seguiu o exemplo e
declarou o combate à violência doméstica uma prioridade de saúde pública (478).
Tanto a OPAS como a OMS lançaram programas relacionados à violência contra as
mulheres em meados da década de 90.
Alguns sistemas de saúde começaram a abordar a violência doméstica dentro do
atendimento clínico normal. Por exemplo, em 1992, a Associação Médica Americana
publicou diretrizes de diagnóstico e tratamento da violência doméstica, enquanto
que a entidade JCAHO (Comissão Conjunta dos EUA para o Credenciamento das
Organizações de Saúde) começou a incluir nos exames de credenciamento uma
avaliação das diretrizes e procedimentos adotados pelos prontos-socorros para
tratar as vítimas do abuso (7, 489). Mais recentemente, o Brasil, Filipinas,
Irlanda, Malásia, México, e Nicarágua criaram programas piloto para treinar
profissionais e auxiliares de saúde a identificar e responder ao abuso (115,
277, 370). Vários países latino-americanos também adotaram diretrizes para lidar
com a violência doméstica em suas políticas nacionais do setor de saúde (345).
Apesar de tais esforços, continua lento o progresso. Na maioria dos países, os
médicos e enfermeiras raramente perguntam às mulheres se elas sofrem abuso
doméstico, mesmo quando existem sinais óbvios de tal abuso (71, 86, 139, 144,
161, 298, 347). (Veja a figura 1)
Obstáculos ao combate da violência
Por que os profissionais e serviços de saúde tem sido lentos no combate à
violência contra as mulheres? Os médicos geralmente pensam que são as pacientes
e não eles próprios o principal obstáculo a um melhor atendimento (139). Mas o
fato é que os profissionais de saúde são geralmente parte do problema.
Existe uma rede complexa de considerações profissionais, culturais, pessoais e
institucionais que afetam a habilidade e vontade do pessoal de saúde de
enfrentar a violência doméstica, como mostram alguns estudos realizados na
África, Ásia, América Latina e EUA (86, 143, 252, 361, 374, 428, 465). Entre as
barreiras mais fortes à adoção de respostas eficazes ao problema estão a falta
de competência técnica, estereótipos culturais e atitudes sociais negativas dos
próprios profissionais e auxiliares de saúde, além das restrições
institucionais.
Falta de competência técnica e recursos. Muitas vezes, os profissionais e
auxiliares de saúde deixam de perguntar às mulheres sobre sua experiência de
violência doméstica porque sentem-se despreparados para atender às necessidades
das vítimas. Alguns consideram a violência doméstica como um assunto de cunho
privado e temem perturbar ou ofender as clientes fazendo perguntas sobre este
assunto. Outros pensam não dispor do tempo ou dos recursos necessários para
prestar ajuda (86, 374, 428).
Os profissionais de saúde que recebem treinamento especializado sobre a
violência doméstica ficam mais à vontade para inquirir sobre o assunto e
sentem-se mais competentes para tratar das necessidades das vítimas de abuso
(309, 434). Apesar de algumas faculdades e cursos profissionalizantes estarem se
esforçando para incluir o tema da violência doméstica em seus currículos-um
exemplo é o das escolas de enfermagem nos EUA (476)-a maioria dos cursos
profissionais do mundo inteiro não tratam da violência doméstica ou o fazem de
forma muito reduzida (5, 321, 353). Por exemplo, um estudo dos EUA mostrou que
dois terços dos profissionais de saúde nunca tinham recebido qualquer
treinamento sobre violência doméstica (434). No México e Zimbábue, profissionais
e serviços de saúde informaram que seu treinamento médico era mais um obstáculo
do que ajuda para tratar da violência doméstica, porque preparava-os para tratar
somente dos sintomas físicos da paciente, sem considerar a pessoa como um todo
(143, 465).
Estereótipos culturais e atitudes sociais negativas. Os profissionais de saúde
geralmente compartilham os mesmos valores culturais e atitudes sociais com
relação ao abuso que predominam na sociedade como um todo. Os profissionais
podem até achar que algumas mulheres merecem o tratamento abusivo ou que o dever
da esposa é estar sempre disponível quando o marido desejar ter relações sexuais
(252). Também assumem que a violência doméstica e a agressão sexual só acontecem
entre mulheres pobres ou entre mulheres de certas classes étnicas ou religiosas
(86, 252). Tais atitudes acabam impedindo o tratamento compassivo e atencioso de
que as mulheres necessitam depois de sofrerem abuso doméstico.
Por exemplo, um estudo da África do Sul observou que as enfermeiras geralmente
consideravam a violência doméstica como um sério problema para as mulheres mas,
ao mesmo tempo, achavam que as próprias mulheres assumiam atitudes e se
comportavam de formas que poderiam provocar a violência, inclusive o estupro
(252). No caso dos enfermeiros, estes desfiaram uma longa lista de razões que
justificariam o espancamento de uma esposa, entre elas, se a esposa desobedecer
ou desrespeitar o marido ou se ela descuidar-se de suas obrigações de cuidar da
casa e dos filhos. Eles não consideravam como estupro o homem forçar sua esposa
à atividade sexual e afirmaram que a prática do espancamento era tanto uma forma
de disciplina como uma expressão de amor ou perdão (252).
Mesmo em culturas onde a violência do parceiro é considerada inaceitável, as
atitudes sociais negativas às mulheres espancadas já estão embutidas muito
profundamente e são difíceis de superar. Estas convicções podem influenciar a
forma em que um profissional da área de saúde avalia a sinceridade de uma mulher
ou a sua responsabilidade pela situação que atravessa. Por exemplo, nos EUA,
muitos clínicos revelaram sua atitude parcial ao fazer declarações tais como
“uma mulher espancada vai sempre lhe dizer o que você está querendo ouvir” e “é
difícil lidar com o tipo de mulher que se envolve em situações de violência;
achamos difícil aceitar as mulheres que permanecem em tais situações” (86).
Alguns clínicos do sexo masculino podem hesitam em aceitar o relato de uma
mulher sobre uma situação de violência porque se identificam com o agressor.
Como disse um médico nos EUA: “ Talvez a descrição da agressão me incomode,
porque eu mesmo já senti instinto de agressão deste tipo” (374). Mesmo as
profissionais do sexo feminino que já passaram elas mesmas por situações de
abuso poderão ter dificuldade em discutir a violência com suas clientes. Alguns
estudos revelaram que até um terço das profissionais da área de saúde tinham
experimentado a violência doméstica (252, 309, 370, 428).
Restrições institucionais. Geralmente, os clínicos que trabalham com vítimas da
violência doméstica sentem que as instituições onde trabalham e que seus colegas
valorizam menos seu trabalho do que outros tipos de intervenções clínicas (86).
A maioria dos programas criados para tratar do abuso em instituições de saúde
resultaram do trabalho e dedicação de alguns indivíduos, mas raramente estas
iniciativas acabam se transformando em diretrizes institucionais. Quando estes
líderes deixam as instituições onde trabalham, muitos programas perdem seu
impulso e até acabam (86, 298).
O medo de obrigações legais em processos impede muitos profissionais de saúde de
fazer mais pelas vítimas do abuso. Em alguns países, os profissionais de saúde
podem às vezes recusar-se a fazer exames em mulheres vítimas de estupro ou
outros atos de violência para não ter mais tarde que depor em um tribunal (221,
347, 465). Outros países aprovaram leis que exigem que os profissionais de saúde
informem às autoridades os casos de abuso infantil e, às vezes, de abuso de
mulheres adultas. No caso das vítimas adultas, estas leis são geralmente
contraproducentes porque retiram da mulher agredida a possibilidade de assumir o
controle da situação, colocam sua segurança em risco e tornam menos provável que
a mulher busque ajuda por temer que, ao fazer isto, seu parceiro seja colocado
na prisão (7, 78, 221, 236, 461).
As necessidades das mulheres são freqüentemente ignoradas devido às lacunas
burocráticas ou falta de coordenação entre os sistemas judiciário e de saúde. Em
alguns países, os médicos não podem tratar as mulheres que foram estupradas ou
espancadas sem a autorização dos tribunais ou da polícia. Em outros, somente os
médicos forenses designados pelos tribunais podem examinar as vítimas de crimes
(461). No Zimbábue, por exemplo, uma mulher estuprada pode ter que esperar três
dias ou mais para uma consulta com um médico oficial do governo. Estes são os
únicos médicos autorizados a documentar casos de estupro ou agressão. Quando a
mulher finalmente consegue a consulta, pode não haver mais nenhuma evidência
física do crime (465). Exigências semelhantes existem em outros lugares,
inclusive nos países da América Central, na Índia e no Peru (202, 220, 361).
A relutância das mulheres em denunciar a violência. Muitas mulheres não dão
voluntariamente a informação sobre atos de violência, a não ser que sejam
inquiridas diretamente. Por exemplo, a pesquisa DHS
de 1998 na Nicarágua mostrou que mais de um terço das mulheres que tinham
sofrido abuso de seus parceiros nunca tinham revelado tais ocorrências a
ninguém. Embora 57% das mulheres tinham sofrido ferimentos, só 13% receberam
atendimento médico em algum momento. Mesmo assim, a maioria das mulheres não
revelou o motivo dos ferimentos. Somente 7% das mulheres pesquisadas disseram
ter buscado, em algum momento, a ajuda de um centro de saúde ou hospital para
seus problemas de violência (386).
A vergonha foi uma das principais razões dadas pelas mulheres da Nicarágua para
não denunciar a violência. Como explicou uma delas: “Pensei que eram poucas as
mulheres que viviam nestas condições e, também, tinha vergonha que alguém
descobrisse como ele me maltrata desta maneira.” (131) Muitas mulheres não dizem
nada sobre a violência porque temem que sejam consideradas as culpadas. Uma
mulher dos EUA informou ao pessoal da pesquisa que teve que ir ao médico várias
vezes para tratar dos ferimentos mas, mesmo assim, conseguiu esconder o motivo
dos ferimentos durante nove anos (379).
O medo de represálias por parte de seus agressores é outra razão pela qual
muitas mulheres permanecem em silêncio. Como disse uma mulher nos EUA: “Sei que
se eu contasse o que de fato aconteceu, eles chamariam a polícia e aí eu teria
que apresentar queixa, mas eles não estariam lá 24horas ao meu lado para me
proteger contra este maníaco.” (379)
Em grande parte do mundo as mulheres não conseguem um atendimento de saúde sem o
conhecimento ou permissão dos seus cônjuges ou de outros familiares do sexo
masculino (333, 386). As mulheres que vivem em condições de abuso doméstico
geralmente estão sujeitas a controles rígidos de sua mobilidade e os maridos
abusivos podem recorrer a medidas extremas para impedir que elas obtenham ajuda.
É comum os homens não permitirem que suas esposas visitem os centros de saúde
desacompanhadas, especialmente se elas buscarem tratamento por ferimentos
resultantes da violência doméstica (293). É extremamente improvável que uma
mulher revele a ocorrência de abuso doméstico a um profissional de saúde, se ela
estiver na presença do próprio agressor.
Como perguntar sobre o abuso
Depois que uma mulher decide buscar a ajuda de uma instituição de saúde, a
recepção que ela aí recebe é de importância crucial. Muitos clínicos temem que,
ao inquirir a cliente sobre a violência e abuso sexual, estarão abrindo uma
“caixa de Pandora”, da qual surgirão problemas para os quais eles não têm nem
tempo nem habilidade para resolver (428). Mas quando os profissionais da área de
saúde se abstêm de fazer perguntas sobre a violência, sobretudo quando há
indicações óbvias de que ela está ocorrendo, as mulheres acabam concluindo que
eles não estão interessados nos seus problemas (465). Uma reação indiferente ou
hostil por parte dos profissionais de saúde aumenta a sensação de isolamento e
auto-recriminação da mulher, tornando pouco provável que ela mencione o problema
de novo.
A falta de sigilo pode ser particularmente devastadora, além de colocar a mulher
sob o risco de mais abuso. Como reclamou uma mulher no Zimbábue: “Fui para o
hospital porque meu marido me espancou quando fiquei grávida. O que me chocou
foi que não havia qualquer sigilo entre os médicos e enfermeiras que me
trataram. Todo mundo na enfermaria ficou sabendo que eu tinha sido espancada
pelo meu marido” (465).
Muitas mulheres que enfrentam a indiferença e hostilidade do pessoal de área de
saúde sentem-se assim vitimadas pelo próprio sistema que deveria ajudá-las.
Depois de procurar um centro de saúde na América Latina, um mulher comentou:
“Fiquei muito magoada pois, afinal de contas, ao procurar um lugar deste tipo,
você espera obter um pouco de ajuda. Mas fiquei decepcionada ao chegar lá. Não
me deram nenhuma esperança ou estímulo.... me trataram de forma indiferente,
como me trataria um caixa de supermercado” (202).
Uma mulher panamenha que abortou devido aos espancamentos do marido descreveu
sua experiência no centro de saúde da seguinte forma:
Quando o médico me atendeu, contei a ele que tinha sido espancada e pedi: “Sei
que isto não faz parte do seu trabalho, mas preciso de um favor. Meu marido está
aí fora no corredor e eu gostaria que o senhor ligasse para a polícia para mim,
é a única forma de impedir que ele me pegue novamente”. Mas o médico respondeu
que não era seu problema e que eu podia ir embora quando quisesse. Me deu um
remédio para os hematomas e me deixou sozinha no quarto. (347)
“Minha impressão é que algumas mulheres esperam a vida inteira para que alguém
lhes faça a pergunta”, comenta Ana Flávia D’Oliveira, uma médica brasileira de
saúde pública que começou um programa de triagem de vítimas de abuso entre
pacientes de pré-natal (213). Na verdade, a maioria das mulheres, tenham elas
sofrido abuso ou não, acha que os médicos deveriam adotar como rotina perguntar
às pacientes sobre ocorrências de abuso (71, 161). Por exemplo, 88% das mulheres
sul-africanas que freqüentavam uma clínica de saúde comunitária na Cidade do
Cabo disseram que ficariam satisfeitas se houvesse uma investigação rotineira
sobre a violência durante as consultas na clínica (251).
Note-se que a maneira de perguntar à mulher sobre a violência é o que determina
sua disposição de revelar ou não sua situação. Se a pergunta for feita com tato
e compreensão, a mulher sente-se à vontade para responder francamente. As
mulheres discutirão mais francamente o abuso se perceberem que o clínico
realmente se preocupa com sua situação, se ele torna a discussão mais fácil e se
ele oferece a possibilidade de fazer um acompanhamento do caso (293, 379).
A colocação de folhetos ou cartazes sobre a violência doméstica em uma clínica
ou consultório pode deixar as mulheres mais à vontade para discutir o assunto
(293). Às vezes, o pessoal da área médica nota que é útil usar sobre a roupa um
botão com os dizeres “Você pode discutir comigo a violência ou abuso doméstico”.
Uma associação médica dos EUA mandou preparar um cartaz para ser colocado nas
salas de espera dos consultórios, dizendo: “Podemos esquecer de perguntar, mas
estamos sempre interessados em saber se você enfrenta problemas de violência em
seu lar.” (48) (Veja a figura 2)
Quando existem sinais óbvios de abuso tais como ferimentos inexplicáveis, os
profissionais devem perguntar: “Quem lhe causou tais ferimentos?”. Se não houver
nenhum sinal, os clínicos acham que o melhor modo de abordar a violência é de
forma rotineira, como parte do processo natural de preparação da ficha médica. Por exemplo, o profissional de saúde pode dizer: “Como a
violência doméstica é muito comum hoje em dia, eu sempre pergunto a todas as
minhas pacientes se elas já foram alguma vez feridas por uma pessoa íntima”. Ao
ouvir este tipo de frase, a paciente não vai achar que foi a única pessoa
escolhida para responder este tipo de pergunta.
Foram desenvolvidos vários questionários curtos de triagem para ajudar os
profissionais de saúde a identificar as vítimas de abuso (120, 146, 295). Em uma
clínica pré-natal, o índice de detecção de violência permanente, que era de 14%
quando se inquiria rotineiramente as pacientes durante a entrevista de
assistência social, passou para 41% depois que se adotou o sistema de Triagem de
Avaliação de Abuso, o qual inclui 5 perguntas (328). Outro estudo mostrou que,
quando se fazia três perguntas breves, podia-se identificar corretamente a
maioria das mulheres vítimas de abuso:
(1) “Você foi golpeada, recebeu pontapés, foi esmurrada ou ferida de qualquer
outra forma por alguém no ano passado? Quem?”
(2) “Você se sente segura em seu relacionamento atual?”
(3) “Você sente-se ameaçada no momento por uma pessoa com quem já teve um
relacionamento no passado?"
Estas perguntas consumiram 20 segundos em média, ou seja, menos tempo do que é
necessário para examinar os sinais vitais da paciente (146).
Não existe um consenso internacional quanto à conveniência de submeter todas
as mulheres a uma triagem rotineira de violência toda vez que visitam um centro
de atendimento de saúde. Alguns ativistas alegam que a não realização da triagem
prejudica gravemente a qualidade do atendimento de saúde (49). Outros são de
opinião que talvez não seja viável fazer a triagem de todas as mulheres em todas
as visitas, sobretudo quando existem restrições de orçamento e quando o pessoal
já tem trabalho em excesso. Alguns argumentam que poderá ser contraproducente
identificar as mulheres que sofrem abuso se não houver serviços ou recursos
correspondentes para ajudá-las, pois isto deixaria tanto clientes como
profissionais de saúde mais frustrados (277).
Cada serviço de saúde tem que decidir que diretriz adotar para melhor atender
às necessidades das clientes, dentro do quadro de recursos locais. Outras
opções, além das triagens, incluem:
Perguntar, se houver sinais de abuso. Sem perguntar, é difícil identificar as
mulheres que sofrem abuso. Os profissionais de saúde devem saber que, apesar das
crenças populares, o ferimento físico não é o sintoma mais comum de abuso das
mulheres. Mais comuns são as queixas indefinidas crônicas, ou seja, aquelas que
não apresentam uma causa física óbvia. Estas queixas e outros sintomas
importantes são as chamadas “bandeiras vermelhas” indicadoras da violência
doméstica que devem levantar as suspeitas dos profissionais da área de saúde
(166, 343, 370) (veja as págs. 22 e 23). Quando ocorre um ou mais destes
sintomas, os profissionais devem fazer perguntas diretas sobre a possibilidade
do abuso.
Triagem estratégica. Outra opção é fazer a triagem de abuso
em certos serviços que são considerados estratégicos porque entre suas
clientes existem muitas vítimas do abuso ou porque tais serviços lidam com
certos riscos especiais ou ainda porque eles apresentam boas oportunidades para
discutir o abuso. A triagem de rotina pode ser particularmente adequada nos
seguintes tipos de serviços:
• Serviços de saúde materno-infantil. Como a violência é pelo menos tão comum
e, às vezes, mais grave do que uma variedade de outras condições para as quais
os profissionais de saúde fazem triagens rotineiras durante a gravidez, a
maioria dos especialistas considera que todas as mulheres atendidas no pré-natal
deveriam passar por triagem para detectar abuso doméstico (64, 295). O ambiente
do atendimento pré-natal é particularmente adequado à discussão sobre o abuso
porque a confiança das mulheres vai aumentando a cada nova visita. A triagem
pós-parto também é importante, já que a violência pode aumentar em freqüência ou
gravidade depois do parto (176). As consultas pediátricas e de puericultura
oferecem também uma boa oportunidade para identificar e oferecer apoio às mães e
crianças que experimentam a violência no lar (20).
• Serviços de saúde reprodutiva. As discussões sobre contracepção ou
prevenção das DST oferecem uma boa oportunidade para discutir o abuso doméstico.
As mulheres que sofreram este tipo de abuso no passado ou que sofrem atualmente
com a violência podem não ter condições de controlar o momento das relações
sexuais ou negociar o uso de preservativo. Por isso, a triagem rotineira nos
programas de planejamento familiar e de prevenção das DST é essencial para garantir que as mensagens passadas durante as sessões de
orientação sejam adaptadas às necessidades de mulheres espancadas e abusadas
sexual ou emocionalmente.
• Serviços de saúde mental. Como a violência é associada a distúrbios mentais
tais como a depressão e o estresse pós-traumático (53, 66, 375), as mulheres que
visitam os serviços de saúde mental devem ser consideradas como um grupo de alto
risco de exposição à violência.
• Prontos-socorros. A violência doméstica é uma das causas de ferimentos
físicos sofridos por mulheres adultas, sendo que, entre as
mulheres feridas que necessitam de atendimento de emergência, podem estar
aquelas que sofreram abusos domésticos mais graves. Portanto, vale a pena
perguntar a todas as mulheres que buscam prontos-socorros para tratar ferimentos
traumáticos se estes ferimentos foram causados pela violência de um parceiro
íntimo (120, 297). (Veja a figura 3)
Como apoiar as mulheres que revelam o abuso
Muitas vezes os profissionais de saúde acham que podem fazer muito pouco
quando uma mulher revela ser vítima do abuso doméstico. Mas o que os
profissionais de saúde fazem e dizem pode influenciar enormemente o caminho que
a mu-lher decide seguir (171, 293). O ato de perguntar sobre a violência
demonstra às mulheres que os profissionais de saúde consideram-na como um
problema médico de grande importância e não culpam a paciente por tal violência.
Como disse uma mulher latino-americana: “Senti alívio quando o médico disse que
eu não merecia este tipo de tratamento. Depois, ele me ajudou a pensar num plano
para sair de casa da próxima vez que meu marido voltasse bêbado para casa”
(202).
Nos EUA, muitas mulheres enfatizaram também o poder da legitimação que, em
suas próprias palavras, trazia “alívio”, “consolo”, “plantava a semente” ou
“dava o primeiro impulso” para mudar a percepção que elas tinham de sua situação
(171). Alguns dos meios que os profissionais podem usar para ajudar a tratar as
mulheres vítimas da violência estão descritos no “Círculo de Potencialização”, o
qual é usado no treinamento da prevenção da violência.
Mesmo se a mulher não revelar em sua primeira visita que sofre com a
violência doméstica, só o fato de perguntar já mostra que o médico se interessa
pelo bem-estar da cliente e isto poderá estimulá-la a discutir o assunto
posteriormente. Realmente, o ideal seria que os profissionais de saúde
coordenassem suas ações com os serviços comunitários, entre eles os grupos
locais de mulheres, mas existem muitas ações que os profissionais de saúde podem
executar imediatamente durante a visita à clínica (350, 460):
1. Avaliar o perigo imediato. Procure saber se a mulher acha que ela ou seus
filhos correm perigo imediato. Se for este o caso, ajude-a a pensar em vários
cursos possíveis de ação. Ela teria um amigo ou parente que poderia ajudá-la? Se
houver um abrigo de mulheres ou um centro de atendimento de emergência na área,
ofereça-se para entrar em contato com eles. Alguns hospitais e clínicas têm
diretrizes explícitas para permitir que as mulheres que sofrem abuso doméstico
passem a noite no hospital se não se sentirem seguras em voltar para casa (243,
277). Mas o abandono temporário de um parceiro violento não acaba
necessariamente com a violência. O momento mais perigoso de uma mulher junto a
um parceiro violento é geralmente logo depois que ela decidir sair de casa ou
terminar o relacionamento (60).
2. Oferecer o atendimento adequado. Para as mulheres que sofreram agressão
sexual, o atendimento mais adequado poderá incluir a contracepção de emergência
e o tratamento preventivo da gonorréia, sífilis ou outras DST prevalentes no
local. Exceto se houver necessidade inquestionável, os clínicos devem evitar
receitar tranqüilizantes e drogas que alteram o estado emocional das mulheres
que convivem com parceiros abusivos, pois este tipo de droga pode prejudicar sua
capacidade para prever e reagir aos ataques dos parceiros.
3. Documentar a situação das mulheres. Alguns serviços de atendimento de
saúde documentam adequadamente os casos de abuso contra mulheres. Em Joanesburgo,
na África do Sul, uma avaliação constatou que, em 78% dos casos de abuso, os
serviços não tinham registrado a identidade do agressor. Os registros clínicos
incluíam descrições realistas porém generalizadas, tais como “recebeu golpes de
machado“ ou “foi apunhalada“ (313).
Uma documentação cuidadosa dos sintomas ou lesões sofridos pelas mulheres,
bem como de seu histórico de abuso, é útil para o acompanhamento médico futuro.
A documentação também é importante caso a mulher decida posteriormente
apresentar queixas contra o agressor ou conseguir a guarda dos filhos. A
documentação deve ser a mais completa possível, dela constando claramente a
identidade do agressor e seu relacionamento com a vítima.
4. Preparar um plano de proteção. Apesar das mulheres não poderem evitar a
reincidência dos atos de violência e não estarem dispostas a dar queixas à
polícia, existem formas para se protegerem e aos seus filhos. Elas podem manter
uma sacola pronta com documentos importantes, chaves e uma muda de roupa ou
podem criar um sistema de código para indicar aos filhos o momento em que
necessitam pedir ajuda a algum vizinho. Os serviços de saúde devem discutir um
plano típico de proteção com a mulher e decidir com ela que ações poderiam ser
adotadas para ajudá-la a resolver sua situação. Um boa técnica
é afixar descrições de planos típicos de proteção nas paredes dos banheiros das
clínicas e salas de exame médico, onde as mulheres podem lê-los sem sentir
embaraço.
5. Informar às mulheres os seus direitos. Quando uma mulher toma a decisão de
revelar sua situação a outros, é essencial que os profissionais de saúde
enfatizem que a violência não é sua culpa e que ninguém merece ser agredida ou
estuprada. Os códigos penais da maior parte dos países consideram o estupro e a agressão
física como crimes, mesmo que não existam leis específicas contra a violência
doméstica. O pessoal médico deve procurar se informar sobre as proteções legais
que existem para as vítimas do abuso e onde as mulheres e crianças podem
procurar ajuda na defesa de seus direitos.
6. Encaminhar as mulheres às instalações e serviços comunitários. Os
profissionais de saúde podem ajudar as vítimas do abuso identificando-as o mais
rápido possível e encaminhando-as aos serviços comunitários que estejam
disponíveis. As necessidades das vítimas geralmente são superiores ao
atendimento que o sistema normal de saúde pode proporcionar. Por isso é
essencial que os profissionais de saúde saibam com antecedência que outros
recursos estão disponíveis para ajudar as vítimas do abuso. É particularmente
útil para os profissionais de saúde conhecerem pessoalmente as pessoas e
instalações que prestam serviços às vítimas da violência, pois estarão mais
propensos a encaminhar uma cliente a alguém que conhecem. (Veja a figura 4)
A necessidade de atuar também fora da clínica
Para tratar da violência contra as mulheres, é importante que os programas de
saúde não limitem sua atuação apenas à clínica. A maioria dos programas de saúde
também participa de atividades da comunidade. Algumas destas podem ser
mobilizadas para combater o abuso. Particularmente importante é poder tratar da
desigualdade entre os sexos e do abuso doméstico por meio de atividades
comunitárias de promoção da saúde e campanhas pelos meios de comunicação de
massa.
Promoção da saúde no âmbito comunitário. Durante muitos anos os projetos de
saúde usaram as técnicas de extensão comunitária e instrução de companheiros
para promover o planejamento familiar, a terapia de reidratação oral e outros
comportamentos relativos à saúde. Estas técnicas também podem ser usadas para
abordar o problema da violência, por exemplo, desafiando as normas tradicionais
e prejudiciais de gênero e promovendo novas normas.
Por exemplo, a Associação Mexicana de Planejamento Familiar (MEXFAM) começou
a integrar o trabalho anti-violência em toda a sua programação. Com recursos
providos pela Fundação MacArthur, a MEXFAM criou cartazes e materiais de
seminários que estimulam homens e mulheres da área rural e origem indígena,
inclusive pessoas jovens, a refletir sobre a violência doméstica e seus impactos
negativos. A meta é ajudar homens e mulheres a reconhecer os custos do
comportamento abusivo e, assim, motivarem-se à mudança (299).
Em Honduras, o Programa Hondurenho de Saúde Comunitária (PROFEHSAC)
acrescentou ao seu programa de treinamento de promotores de saúde algumas
sessões especiais de teatro, discussão e representação de papéis sobre a
violência doméstica. Como resultado, os promotores de saúde da PROFESHSAC tornaram-se agentes importantes de transformação comunitária,
oferecendo apoio às vítimas e realizando sessões de discussão com homens,
mulheres e jovens (284).
O novo manual de educação popular, Quando as mulheres não dispõem de médicos,
deverá facilitar enormemente este trabalho porque conta com capítulos inteiros
sobre as questões da sexualidade, violência doméstica, saúde mental e estupro
(54). Tendo como alvo a população de baixa escolaridade, este manual de recursos
inclui informação básica sobre a dinâmica do abuso e sugere como os
profissionais de saúde da comunidade podem ajudar as vítimas e trabalhar para
mudar as normas culturais.
Os programas também podem incluir a discussão sobre gênero e violência em
pequenas sessões de grupo criadas com outras finalidades. Um exemplo é o curso
Stepping Stones, que trata da saúde sexual e prevenção de HIV. A partir dos
fundamentos do trabalho pioneiro de dois brasileiros-o educador Paulo Freire e o
diretor de teatro e ativista social Augusto Boal-o manual usa uma abordagem de
solução de problemas para encorajar a reflexão sobre assuntos complexos tais
como a confiança, o risco, o significado do amor e como aprender a dizer “não”
(468). Uma recente adaptação sul-africana do manual Stepping Stones acrescenta
um módulo específico para tratar do abuso e coerção no interior dos
relacionamentos (216).
Campanhas de comunicação. Os programas de saúde reprodutiva também podem usar
os meios de comunicação de massa para abordar a violência contra as mulheres.
Durante a década de 90, por exemplo, uma rede de mais de 100 organizações
femininas da Nicarágua montou uma campanha anual pelos meios de massa para
aumentar a conscientização sobre o impacto da violência sobre as mulheres (128).
Usando slogans tais como “Quero viver sem violência”, a campanha mobilizou as
comunidades contra o abuso. De acordo com a pesquisa DHS de 1998, mais da metade
da população nicaragüense já tinha ouvido pelo menos uma das mensagens da
campanha e metade de todas as mulheres que tinham ouvido as mensagens puderam
repetir as palavras de pelo menos um dos slogans (386).
Outra organização nicaragüense, a Puntos de Encuentro, montou recentemente
uma campanha voltada especificamente aos homens (307). A campanha aproveitou os
resultados de um estudo qualitativo aprofundado cujo objetivo era investigar se
os homens não violentos percebiam qualquer benefício com esta sua postura.
Outro inovador programa de comunicação foi criado na região ocidental da
Austrália, onde foram utilizados comerciais de rádio e TV para sugerir aos
homens abusivos que buscassem, voluntariamente, a ajuda de um serviço telefônico
especial para homens envolvidos em casos de violência doméstica, denominado
Helpline. O pessoal do Helpline dá conselhos e orientação pelo telefone e
encaminha os homens aos programas de tratamento gratuito patrocinados pelo
governo. Em apenas 7 meses, 69% do total de homens adultos da população
demonstraram estar cientes da existência do Helpline e 1.385 homens já tinham
telefonado para o serviço, inclusive 867 que admitiram ter agredido mulheres,
sendo que quase a metade destes aceitaram o encaminhamento a um serviço de
orientação (493).
Os programas de saúde reprodutiva também podem garantir que as campanhas de
comunicação não reforcem, inadvertidamente, os papéis negativos associados a
cada sexo ou passem mensagens negativas sobre o abuso de gênero. As imagens
usadas nas campanhas ajudam a influenciar a forma das pessoas pensarem e se
comportarem (16, 358). Por exemplo, as campanhas que buscam promover a
contracepção ou uso de preservativos apelando especificamente para imagens
machistas, correm o risco de reforçar certos estereótipos machistas negativos
que minam o poder da mulher nas relações sexuais. Este foi o caso do marketing
jamaicano dos preservativos Slam, que fazia referência explícita a cenas de sexo
violento e exibia fotos de go-go girls seminuas para promover o uso de
preservativos (395).
Também é o caso de Hum Log (Nós, o Povo), primeira novela de televisão da
Índia criada para promover temas sociais. Uma avaliação posterior mostrou que
seu enredo reforçava involuntariamente a violência doméstica pois, com o
transcorrer da história, os personagens criados como modelos de comportamento
não eram recompensados adequadamente por tratar bem as mulheres, ao mesmo tempo
que os personagens de comportamento negativo não eram punidos normalmente por
maltratá-las (46). Muitos telespectadores elogiavam a personagem da mulher que
sofria há muito tempo aceitando o abuso do marido, observando que ela mantinha a
paz na família e que este tipo de comportamento lhe trazia benefícios (416).
Por outro lado, a telenovela sul-africana “Soul City” utilizou com muito
sucesso os meios de entretenimento para desafiar atitudes e normas que perpetuam
o abuso. Esta telenovela, transmitida em horário nobre, inclui sutilmente em sua
história principal os temas de responsabilidade social frente a problemas tais
como a coerção sexual, a molestação e a violência doméstica. Além disso, o
programa colabora com a Rede Nacional de Combate à Violência Contra as Mulheres,
oferecendo um serviço de ajuda acessado gratuitamente por telefone, além de
serviços também gratuitos de orientação voltados para as vítimas da violência.
Como declarou Thuli Shongwe, do grupo de pesquisa de Soul City: “Quando as
pessoas vêem sua própria situação representada na TV e observam como os
personagens resolvem seus problemas, elas tornam-se mais capazes de atuar para
resolver suas próprias vidas.” (34)
Population Reports is published by the Population Information Program, Center for Communication Programs,
The Johns Hopkins School of Public Health, 111 Market Place, Suite 310, Baltimore,
Maryland 21202-4012, USA
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