Introdução
As obstruções das vias de saída dos ventrículos
ocorrem em três níveis: subvalvar, valvar e supravalvar. A natureza da obstrução
subvalvar reflete a morfologia da via de saída do ventrículo em questão. Os padrões
variam bastante do ventrículo direito para o esquerdo, mas a morfologia sempre reflete o
ventrículo e não a grande artéria que dele emerge. Pôr outro lado, a obstrução
valvar e a supravalvar apresentam morfologia semelhante, independentemente do ventrículo.
Estas duas formas de obstrução são, de fato, não completamente distintas uma da outra.
O conhecimento da estrutura normal das valvas arteriais é essencial para o entendimento
apropriado da morfologia anormal. Iremos rever, portanto, a anatomia normal das valvas
aórtica e pulmonar, juntamente com suas estruturas de sustentação, antes de considerar
a natureza da obstrução das vias de saída.
Anatomia
Valvar Normal
Os clínicos habitualmente referem-se a um 'anel valvar'
quando discutem as valvas arteriais. Para nós, isto pode sugerir um anel fibroso completo
circundando a via de saída ventricular e sustentando os folhetos valvares. O exame
detalhado das valvas arteriais mostra que tal estrutura não existe. Mesmo o exame
histológico não mostra um anel valvar.
Se uma valva arterial é dissecada (figura 11.1), a remoção dos folhetos revela
um arranjo em forma de coroa com três pontos. Os folhetos valvares estão inseridos na
parede arterial ao longo dos arcos entre os pontos e as estruturas ventriculares de
sustentação na base de cada arco. Cada folheto, portanto, apresenta um ponto baixo e um
alto de inserção. Os pontos altos de folhetos adjacentes formam o limite periférico das
comissuras valvares.
As comissuras são, literalmente, as zonas de aposição
de folhetos adjacentes, cada comissura estendendo-se da parede arterial até o centro da
valva (figura11.2). É errado tomar como
comissura apenas a extremidade periférica desta zona de coaptação.
Quando se examina uma valva arterial de cima (a face
arterial), um anel pode ser visto juntando as três extensões periféricas das
comissuras. Este anel tem uma base anatômica quando visto em corte longitudinal. É a
crista comissural (ou barra aórtica) que constitui o estreitamento presente entre as
porções sinusal e tubular do tronco arterial (figura
11.3). Um outro anel pode ser considerado juntando os pontos inferiores de inserção
dos folhetos nas vias de saída ventriculares. Este é, provavelmente, aquele que a
maioria dos cirurgiões cardíacos consideram como "anel". Anatomicamente,
entretanto, não é um anel fibroso. Dentro do ventrículo direito, é um anel puramente
muscular (veja figura 11.1), sendo
parcialmente muscular e parcialmente fibroso no ventrículo esquerdo (figura 11.4).
Existe ainda um terceiro anel dentro das vias de saída de
ambos os ventrículos, o qual é visto mais claramente seguindo com a dissecção. Ele
está onde a parede do tronco arterial está inserida às estruturas de sustentação dos
ventrículos, e a junção anatômica ventriculoarterial (veja figuras 11.1 e 11.5). Tal junção não coincide com a
junção hemodinâmica, a qual é marcada pelas linhas de inserção dos folhetos valvares
às paredes da artéria e do ventrículo. Parte da parede do tronco arterial é, portanto,
em termos hemodinâmicos, ventricular, enquanto que partes do miocárdio ventricular
situam-se além da valva.
Três áreas da parede arterial estão incorporadas dentro
do ventrículo (figura11.6). São elas as
porções apicais dos arcos de inserção dos folhetos valvares. Estes triângulos
fibrosos são sustentados pela musculatura ventricular no ventrículo direito e, em parte,
pelo esqueleto fibroso no esquerdo. Estando em comunicação com espaço extracardíaco,
estas áreas, que apresentam paredes finas em comparação com o restante da parede
arterial, são locais potenciais para a formação de aneurismas.1 As porções
do ventrículo que são arteriais são encontradas ao nível do ponto mais baixo de cada
folheto valvar, onde a linha de inserção alvar chega abaixo da junção
ventriculoarterial.
Estenose Valvar
Para uma valva abrir-se normalmente, os três folhetos
devem estar livres ao longo de toda a extensão de suas comissuras e devem ser
suficientemente móveis para retornarem aos seios de Valsalva durante a sístole. A fusão
dos folhetos ao longo das comissuras causa, portanto, estenose valvar. Tal fusão
inicia-se da extremidade da comissura e se estende em direção ao centro da valva.
Naquelas valvas em que se admite terem apenas dois folhetos (ou mesmo um), o exame do
aspecto subvalvar dos seios mostra que a maioria se desenvolveu com três folhetos, mas
que as comissuras sofreram fusão durante a vida fetal. Estenose valvar pode também
resultar quando as bordas livres dos folhetos tornam-se aderentes à parede arterial ao
nível da crista comissural. Tal processo causa retração no tronco arterial ao nível da
crista comissural. Isto não é estenose supravalvar, mas um estreitamento ao nível da
inserção distal dos folhetos valvares. Uma terceira causa de estenose valvar é o
espessamento dos folhetos, reduzindo sua mobilidade.
A estenose da valva aórtica compreende 5-6% das
malformações do coração.2 Considera-se freqüentemente que a valva aórtica
intrinsecamente estenótica tem um folheto único, com uma única comissura e orifício
excêntrico, ou ainda que tem a forma de domo e ausência de comissuras. Essa variante
chamada de unicomissural e unicúspide é vista mais freqüentemente na estenose
importante da primeira infância. Como vimos, ela é formada pela fusão de comissuras em
uma valva que originalmente tinha três folhetos (figuras 11.7a, 11.7b). Interessantemente, a comissura
existente 'aponta' para a valva mitral. Uma valva com dois folhetos usualmente não causa
problemas na infância, pois não é intrinsecamente estenótica.3 As valvas
aórticas com dois folhetos (figuras 11.8a,
11.8b) geralmente chamam a atenção mais
tarde na vida, devido à calcificação, prolapso, ou endocardite. Os folhetos de tais
valvas podem estar arranjados em orientação esquerda-direita ou ântero-posterior. Na
variante esquerda-direita, de cada seio emerge uma coronária e uma rafe está usualmente
presente no folheto direito. Na variante ântero-posterior, ambas as artérias coronárias
emergem do seio anterior e, neste tipo, a rafe está usualmente no folheto anterior. A
rafe deve-se provavelmente à falta de desenvolvimento de uma comissura valvar, ou fusão
da comissura na vida fetal tardia ou mesmo algum tempo após o nascimento.
Embora a estenose de uma valva com dois folhetos ocorra,
em geral, tardiamente na vida, alterações displásicas podem ocorrer nos folhetos. Tais
folhetos, mucóides e edemaciados, podem causar estenose precocemente ria vida. Valvas com
três folhetos raramente são estenóticas durante a infância, a menos que apresentem
aspecto mucóide ou displasia. Elas tornam-se estenóticas muito mais tardiamente, devido
à calcificação das comissuras, a qual produz estenose calcificada isolada, senil.3
A estenose pulmonar constitui de 2% a 13% das
malformações congênitas,4 sendo mais comumente devida a uma anormalidade dos
folhetos valvares.
Não se observa orifício excêntrico na valva pulmonar (figuras 11.9a, 11.9b), sendo extremamente raras as valvas
pulmonares unicomissurais. Isto provavelmente se deve às diferenças na morfologia
infundibular dos ventrículos direito e esquerdo. A estenose isolada da valva na posição
pulmonar é mais freqüentemente vista em um arranjo tipo três folhetos. Em algumas, dois
folhetos podem ser identificados, assim como na valva aórtica. As valvas apresentam
usualmente forma em domo. Na maioria, fusão dos folhetos pode ser identificada a partir
da comissura para o centro. As margens fundidas são passíveis de divisão cirúrgica ou
dilatação por balão. Em outras valvas, especialmente em neonatos apresentando um
orifício puntiforme, o domo é liso, com evidências de comissuras apenas na sua
periferia.
Assim como na valva aórtica, a displasia da valva
pulmonar com excrescências em 'couve-flor' pode também causar obstrução se a valva
tiver três folhetos (figuras 11.10a, 11.10b). Este aspecto é comumente observado
na síndrome de Noonan. Valvas displásicas são menos passíveis à dilatação por
balão ou plastia cirúrgica do que aquelas com simples fusão ao nível das comissuras.
Estenose
Supravalvar
Uma variante da estenose pulmonar é a lesão tipo
'ampulheta'.5 Ela é o resultado da aderência dos ápices comissurais à
parede arterial, causando um estreitamento ao nível das cristas comissurais. As aberturas
entre as bordas comissurais e os seios de valsalva são estritas, enquanto que os seios,
em si, tornam-se dilatados, em forma de garrafa. A aparência em 'ampulheta' é acentuada
pela dilatação pós-estenótica. Tentativas de dilatação dessa lesão por angioplastia
com balão podem resultar em ruptura da parede arterial. A divisão cirúrgica das bordas
livres dos folhetos, com liberação das aderências à parede arterial que venham a
permitir dilatação do segmento estreitado, pode ser a melhor opção. Este tipo de
lesão aparece também na valva aórtica, onde e comumente descrita como estenose
supravalvar (figuras 11.11a, 11.11b). Como discutido acima, do ponto de
vista anatômico, a estenose ao nível das cristas comissurais de qualquer uma das valvas
arteriais é na realidade uma forma de estenose valvar. Outras formas de estenose
supravalvar (tipos membranoso e tubular) são muito mais raras. Elas envolvem o tronco
arterial ao invés da junção sinotubular, e podem inequivocamente serem descritas como
supravalvares.
Estenose
Subvalvar Pulmonar
A obstrução na via de saída do ventrículo direito é
em geral situada imediatamente abaixo da valva. Em geral, um defeito septal ventricular
está presente. Por exemplo, na tetralogia de Fallot, o septo de saída é uma estrutura
bem definida, desviada na via de saída e freqüentemente hipertrofiada, formando uma
parte importante do estreitamento infundibular (veja Capítulo 12).
Pode também ocorrer obstrução muscular tubular do trato
de saída subpulmonar, porém pouco usualmente, exceto quando existe um defeito do septo
ventricular. Obstrução isolada da via de saída pode ser produzida por um feixe muscular
anômalo, geralmente uma trabécula septoparietal hipertrófica. Tal padrão é
freqüentemente denominado 'ventrículo direito com dupla câmara'. Mais raramente,
obstrução subpulmonar pode ser causada por uma 'bolsa' de tecido tricuspídeo acessório
que prolapsa para a via de saída durante a sistole, ou por um folheto acessório da valva
tricúspide com inserções na via de saóda.6 Brotos de tecido fibroso
derivados, de modo semelhante, das valvas na abertura da veia cava inferior ou do seio
coronário no átrio direito,7 ou ainda de um septo membranoso aneurismático,8
também podem causar obstrução.
Estenose
Subvalvar Aórtica
Vários tipos de estenose subvalvar podem ser encontrados
na via de saída do ventrículo esquerdo.3 A lesão mais comum é uma
saliência em forma de crescente, constituída por tecido fibroso sobre o septo
ventricular, imediatamente abaixo da valva aórtica, freqüentemente fundindo-se com o
folheto anterior ou aórtico da valva mitral (figuras
11.12a, 11.12b e 11.12c). Tal lesão recebe também a
denominação de 'membrana', a nosso ver um termo que não corresponde à morfologia.9
Obstrução 'em túnel 'pode envolver toda a extensão da via de saída e é usualmente
secundária à hipertrofia do miocárdio septal, que faz saliência nesse local podendo
estar superimposta por uma espessa camada de tecido fibroso. Esta condição pode estar
relacionada à hipertrofia miocárdica idiopática.10 Assim como no ventrículo
direito, o desalinhamento ou desvio do septo de saída em associação a um defeito do
septo ventricular é uma causa importante de obstrução da via de saída ventricular.
Coarctação ou interrupção do arco aórtico são comuns nessas circunstâncias.11
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