Capítulo 09 - Anomalias Das Valvas Atrioventriculares

Introdução

O funcionamento normal das valvas atrioventriculares depende de seus vários componentes: anel, folhetos, cordas tendíneas e músculos papilares. Qualquer um desses componentes pode estar congenitamente malformado, produzindo uma gama de lesões congênitas. A maioria dos cirurgiões, hoje, segue a abordagem funcional de Carpentier1 para determinar o tratamento mais apropriado. A utilização desse tipo de abordagem, que divide as lesões em: folhetos com mobilidade normal, restrita ou excessiva, requer um diagnóstico preciso das malformações subjacentes. Além disso, algumas lesões valvares produzem anormalidades mais importantes do que simplesmente estenose ou regurgitação.

Neste capítulo, iremos rever as valvas anormais de acordo com os componentes que estão congenitamente alterados. Iremos abordar as valvas atrioventriculares em geral, ao invés de listar separadamente aquelas lesões que acometem uma valva mitral, tricúspide ou comum. Nós iremos enfatizar, todavia, aquelas lesões que acometem predominantemente uma valva específica.

Anormalidades do Anel

Embora o anel de qualquer das valvas atrioventriculares possa ser congenitamente dilatado, a dilatação é, mais usualmente, uma alteração adquirida, coexistindo com atresia de valva arterial, como visto em alguns casos de atresia pulmonar com septo ventricular íntegro, ou ainda como parte de uma lesão mais específica como a malformação de Ebstein (veja a seguir).

A lesão mais importante que acomete especificamente o anel é a sua completa ausência, como visto na clássica atresia tricúspide ou mitral (veja Capítulo 7). A ausência de uma conexão atrioventricular precisa ser distinguida de outra forma de atresia de valva atrioventricular, na qual uma valva imperfurada bloqueia uma junção atrioventricular presente, porém hipoplásica. Valvas imperfuradas podem ser encontradas em posição mitral ou tricúspide, podendo ainda comprometer a valva direita ou esquerda em corações com dupla via de entrada ventricular (veja Capítulo7,figuras 7.5a, 7.5b). Elas podem também ser encontradas em combinação com atresia pulmonar com septo ventricular íntegro (figuras 9.1c, 9.1d), ou como forma extrema de anormalidade valvar na malformação de Ebstein (figuras 9.2a, 9.2b).

Anormalidades dos Folhetos

A mais grave lesão dos folhetos, a inserção bilateral ou straddling, usualmente envolve também a junção atrioventricular. Quando os folhetos atravessam sobre o septo ventricular, inserindo-se em ambos os ventrículos, o orifício valvar usualmente cavalga o topo do septo (figuras 9.3a, 9.3b, 9.3c).

Esta combinação de cavalgamento e inserção bilateral traz problemas para o cirurgião, e deveria ser diagnosticada antes da operação. Ela é quase sempre associada com hipoplasia de um ventrículo, sendo dominante aquele que recebe a valva normalmente inserida e a parte anormalmente inserida da outra valva. De fato, dependendo da valva envolvida, espectros de malformações existem, de acordo com o grau de cavalgamento, variando desde conexão biventricular até conexão tipo dupla via de entrada.

Inserção bilateral ou straddling da valva tricúspide envolve um espectro terminando na dupla via de entrada de ventrículo esquerdo. A valva tricúspide sempre cavalga a parte posterior do septo ventricular, que nessa situação não se estende à cruz do coração (crux cordis). Como conseqüência, a disposição do tecido de condução atrioventricular é anormal.2,3

A inserção bilateral ou straddling da valva mitral, em contraste, ocorre através da parte anterior do septo, e é parte de um espectro levando a dupla via de entrada de ventrículo direito. Associa-se usualmente à transposição completa ou à dupla via de saída de ventrículo direito.4,5

Uma outra lesão envolvendo primariamente os folhetos, mas também acometendo o remanescente do aparelho valvar, é a malformação de Ebstein. Ela pode ser definida como a origem de uma parte do ponto de inserção valvar dentro da cavidade ventricular, ao invés de na junção atrioventricular.6 Assim definida, a lesão quase sempre afeta a valva morfologicamente tricúspide, mas, ocasionalmente, afeta a cúspide mural da valva morfologicamente mitral.7 Quando afeta a tricúspide, quase sempre é acompanhada por displasia dos folhetos.8 É, todavia, a inserção anormal dos folhetos a principal característica da anomalia (figuras 9.4a, 9.4b, 9.4c, 9.4d). Tal característica, descrita usualmente em termos de 'deslocamento inferior', reflete na realidade uma falha na delaminação dos folhetos. De fato, em várias ocasiões o folheto septal pode estar totalmente ou parcialmente ausente. Sempre, todavia, o folheto mural tem seu ponto de inserção dentro da via de entrada ventricular, e o ponto de maior 'deslocamento inferior' é a comissura entre os folhetos mural e septal.O folheto ântero-superior é apenas raramente deslocado, mas encontra-se com freqüência anormalmente ligado ao ápice ventricular.9 É como se o orifício valvar fosse formado na junção dos componentes de entrada e trabecular (veja figuras 9.4b e 9.4c) ao invés de na junção atrioventricular. Este orifício anormal pode ser competente mas, usualmente, é tanto estenótico como regurgitante. As características clínicas importantes são o tamanho do ventrículo direito 'funcional', constituído pelo componente trabecular e pelo infundíbulo, e o grau de dilatação da porção atrializada do ventrículo direito e o orifício normal da valva tricúspide (a junção atrioventricular). Esta lesão é freqüentemente associada com a síndrome de Wolff-Parkinson-White.

Outras lesões afetam os folhetos mais especificamente. Neste grupo podem ser colocados anomalias como o prolapso (figuras 9.5a e 9.5b) e as fendas (figuras 9.6a, e 9.6b). O prolapso é encontrado mais freqüentemente em crianças com doenças que afetam o colágeno, tais como as síndrome de Marfan ou de Ehlers-Danlos. Quando visto em idade mais avançada, é possível que o prolapso dos folhetos reflita uma falta primária de suporte cordal às bordas livres dos folhetos.10 Uma verdadeira fenda da valva mitral (veja 9.6) deve ser distinguida da comissura septal dos defeitos septais atrioventriculares.11O espaço entre os folhetos-ponte em corações com defeito septal atrioventricular está direcionado para o septo, ventricular (veja Capítulo6, figuras 6.7a, 6.7b) e é parte integrante do orifício da valva atrioventricular esquerda, a qual não é necessariamente incompetente. Por outro lado, uma fenda no folheto 'aórtico' ou medial da valva mitral está direcionada para a via de saída subaórtica, e pode existir apenas quando há septação atrioventricular normal. É uma anormalidade na formação do folheto, e freqüentemente ocorre em associação com inserção bilateral ou straddling da valva mitral.5

Duplo orifício da valva mitral é produzido por uma ponte entre os folhetos (9.7). Esta lesão, todavia, pode estar também associada à duplicação do aparelho tensor para suportar cada orifício Duplo orifício da valva mitral (veja figuras 9.7a, 9.7b) deve ser distinguido do duplo orifício do componente ventricular esquerdo encontrado em defeitos do septo, atrioventricular.

Anormalidades do Aparelho Tensor

Em estenose valvar congênita, particularmente da valva mitral, a valva inteira é usualmente hipoplásica. A maior anormalidade, todavia, é o encurtamento das cordas tendíneas e o fechamento dos espaços intercordais (figuras 9.8a, 9.8b). Tais valvas miniaturizadas são vistas como parte da síndrome de hipoplasia do ventrículo esquerdo, quando elas tomam parte da fibroelastose endocárdica característica dessa lesão. Cordas curtas, entretanto, podem ocorrer em estenose valvar isolada. intimamente relacionada ao encurtamento de cordas está a lesão 'em arcada', na qual os músculos papilares continuam-se como estruturas musculares até a margem livre dos folhetos e há ausência de cordas tendíneas (figura 9.9). A lesão está intimamente relacionada à malformação do tipo 'arcada' mitral.1

Algumas lesões afetam primariamente os músculos papilares em si. O principal exemplo é a lesão tipo valva 'em pára-quedas'. As definições dessa anomalia variam bastante. Alguns definiriam uma lesão em 'pára-quedas' como uma fusão dos músculos papilares no contexto de valva estenótica.1 Outros reservariam o termo 'pára-quedas' para aquelas anomalias nas quais todas as cordas tendíneas descem em funil para um músculo solitário como conseqüência de ausência congênita dos demais músculos.12 A lesão em 'pára-quedas' afeta principalmente a valva morfologicamente mitral (figuras 9.10a, 9.10b), embora, paradoxalmente, tenha sido primeiramente descrita na valva tricúspide.

Referências Bibliográficas

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