Introdução
O funcionamento normal das valvas atrioventriculares
depende de seus vários componentes: anel, folhetos, cordas tendíneas e músculos
papilares. Qualquer um desses componentes pode estar congenitamente malformado, produzindo
uma gama de lesões congênitas. A maioria dos cirurgiões, hoje, segue a abordagem
funcional de Carpentier1 para determinar o tratamento mais apropriado. A
utilização desse tipo de abordagem, que divide as lesões em: folhetos com mobilidade
normal, restrita ou excessiva, requer um diagnóstico preciso das malformações
subjacentes. Além disso, algumas lesões valvares produzem anormalidades mais importantes
do que simplesmente estenose ou regurgitação.
Neste capítulo, iremos rever as valvas anormais de acordo
com os componentes que estão congenitamente alterados. Iremos abordar as valvas
atrioventriculares em geral, ao invés de listar separadamente aquelas lesões que
acometem uma valva mitral, tricúspide ou comum. Nós iremos enfatizar, todavia, aquelas
lesões que acometem predominantemente uma valva específica.
Anormalidades
do Anel
Embora o anel de qualquer das valvas atrioventriculares
possa ser congenitamente dilatado, a dilatação é, mais usualmente, uma alteração
adquirida, coexistindo com atresia de valva arterial, como visto em alguns casos de
atresia pulmonar com septo ventricular íntegro, ou ainda como parte de uma lesão mais
específica como a malformação de Ebstein (veja a seguir).
A lesão mais importante que acomete especificamente o
anel é a sua completa ausência, como visto na clássica atresia tricúspide ou mitral
(veja Capítulo 7). A ausência de uma
conexão atrioventricular precisa ser distinguida de outra forma de atresia de valva
atrioventricular, na qual uma valva imperfurada bloqueia uma junção atrioventricular
presente, porém hipoplásica. Valvas imperfuradas podem ser encontradas em posição
mitral ou tricúspide, podendo ainda comprometer a valva direita ou esquerda em corações
com dupla via de entrada ventricular (veja Capítulo7,figuras 7.5a, 7.5b). Elas podem também ser encontradas em
combinação com atresia pulmonar com septo ventricular íntegro (figuras 9.1c, 9.1d), ou como forma extrema de anormalidade
valvar na malformação de Ebstein (figuras
9.2a, 9.2b).
Anormalidades
dos Folhetos
A mais grave lesão dos folhetos, a inserção bilateral
ou straddling, usualmente envolve também a junção atrioventricular. Quando os
folhetos atravessam sobre o septo ventricular, inserindo-se em ambos os ventrículos, o
orifício valvar usualmente cavalga o topo do septo (figuras 9.3a, 9.3b, 9.3c).
Esta combinação de cavalgamento e inserção bilateral
traz problemas para o cirurgião, e deveria ser diagnosticada antes da operação. Ela é
quase sempre associada com hipoplasia de um ventrículo, sendo dominante aquele que recebe
a valva normalmente inserida e a parte anormalmente inserida da outra valva. De fato,
dependendo da valva envolvida, espectros de malformações existem, de acordo com o grau
de cavalgamento, variando desde conexão biventricular até conexão tipo dupla via de
entrada.
Inserção bilateral ou straddling da valva tricúspide
envolve um espectro terminando na dupla via de entrada de ventrículo esquerdo. A valva
tricúspide sempre cavalga a parte posterior do septo ventricular, que nessa situação
não se estende à cruz do coração (crux cordis). Como conseqüência, a
disposição do tecido de condução atrioventricular é anormal.2,3
A inserção bilateral ou straddling da valva mitral, em
contraste, ocorre através da parte anterior do septo, e é parte de um espectro levando a
dupla via de entrada de ventrículo direito. Associa-se usualmente à transposição
completa ou à dupla via de saída de ventrículo direito.4,5
Uma outra lesão envolvendo primariamente os folhetos, mas
também acometendo o remanescente do aparelho valvar, é a malformação de Ebstein. Ela
pode ser definida como a origem de uma parte do ponto de inserção valvar dentro da
cavidade ventricular, ao invés de na junção atrioventricular.6 Assim definida, a lesão
quase sempre afeta a valva morfologicamente tricúspide, mas, ocasionalmente, afeta a
cúspide mural da valva morfologicamente mitral.7 Quando afeta a tricúspide,
quase sempre é acompanhada por displasia dos folhetos.8 É, todavia, a
inserção anormal dos folhetos a principal característica da anomalia (figuras 9.4a, 9.4b, 9.4c, 9.4d). Tal característica, descrita
usualmente em termos de 'deslocamento inferior', reflete na realidade uma falha na
delaminação dos folhetos. De fato, em várias ocasiões o folheto septal pode estar
totalmente ou parcialmente ausente. Sempre, todavia, o folheto mural tem seu ponto de
inserção dentro da via de entrada ventricular, e o ponto de maior 'deslocamento
inferior' é a comissura entre os folhetos mural e septal.O folheto ântero-superior é
apenas raramente deslocado, mas encontra-se com freqüência anormalmente ligado ao ápice
ventricular.9 É como se o orifício valvar fosse formado na junção dos
componentes de entrada e trabecular (veja figuras
9.4b e 9.4c) ao invés de na junção
atrioventricular. Este orifício anormal pode ser competente mas, usualmente, é tanto
estenótico como regurgitante. As características clínicas importantes são o tamanho do
ventrículo direito 'funcional', constituído pelo componente trabecular e pelo
infundíbulo, e o grau de dilatação da porção atrializada do ventrículo direito e o
orifício normal da valva tricúspide (a junção atrioventricular). Esta lesão é
freqüentemente associada com a síndrome de Wolff-Parkinson-White.
Outras lesões afetam os folhetos mais especificamente.
Neste grupo podem ser colocados anomalias como o prolapso (figuras 9.5a e 9.5b) e as fendas (figuras 9.6a, e 9.6b). O prolapso é encontrado mais
freqüentemente em crianças com doenças que afetam o colágeno, tais como as síndrome
de Marfan ou de Ehlers-Danlos. Quando visto em idade mais avançada, é possível que o
prolapso dos folhetos reflita uma falta primária de suporte cordal às bordas livres dos
folhetos.10 Uma verdadeira fenda da valva mitral (veja 9.6) deve ser
distinguida da comissura septal dos defeitos septais atrioventriculares.11O
espaço entre os folhetos-ponte em corações com defeito septal atrioventricular está
direcionado para o septo, ventricular (veja Capítulo6, figuras 6.7a, 6.7b) e é parte integrante do orifício da
valva atrioventricular esquerda, a qual não é necessariamente incompetente. Por outro
lado, uma fenda no folheto 'aórtico' ou medial da valva mitral está direcionada para a
via de saída subaórtica, e pode existir apenas quando há septação atrioventricular
normal. É uma anormalidade na formação do folheto, e freqüentemente ocorre em
associação com inserção bilateral ou straddling da valva mitral.5
Duplo orifício da valva mitral é produzido por uma ponte
entre os folhetos (9.7). Esta lesão, todavia, pode estar também associada à
duplicação do aparelho tensor para suportar cada orifício Duplo orifício da valva
mitral (veja figuras 9.7a, 9.7b) deve ser distinguido do duplo orifício
do componente ventricular esquerdo encontrado em defeitos do septo, atrioventricular.
Anormalidades
do Aparelho Tensor
Em estenose valvar congênita, particularmente da valva
mitral, a valva inteira é usualmente hipoplásica. A maior anormalidade, todavia, é o
encurtamento das cordas tendíneas e o fechamento dos espaços intercordais (figuras 9.8a, 9.8b). Tais valvas miniaturizadas são vistas
como parte da síndrome de hipoplasia do ventrículo esquerdo, quando elas tomam parte da
fibroelastose endocárdica característica dessa lesão. Cordas curtas, entretanto, podem
ocorrer em estenose valvar isolada. intimamente relacionada ao encurtamento de cordas
está a lesão 'em arcada', na qual os músculos papilares continuam-se como estruturas
musculares até a margem livre dos folhetos e há ausência de cordas tendíneas (figura 9.9). A lesão está intimamente
relacionada à malformação do tipo 'arcada' mitral.1
Algumas lesões afetam primariamente os músculos
papilares em si. O principal exemplo é a lesão tipo valva 'em pára-quedas'. As
definições dessa anomalia variam bastante. Alguns definiriam uma lesão em
'pára-quedas' como uma fusão dos músculos papilares no contexto de valva estenótica.1
Outros reservariam o termo 'pára-quedas' para aquelas anomalias nas quais todas as cordas
tendíneas descem em funil para um músculo solitário como conseqüência de ausência
congênita dos demais músculos.12 A lesão em 'pára-quedas' afeta
principalmente a valva morfologicamente mitral (figuras 9.10a, 9.10b), embora, paradoxalmente, tenha sido
primeiramente descrita na valva tricúspide.
Referências
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