Capítulo 08 - Defeito do Septo Ventricular

Introdução

Os defeitos do septo ventricular são as malformações congênitas cardíacas mais comuns.1 Apesar disso, não há consenso sobre qual a melhor forma de descrever suas características morfológicas. Conflitos entre as várias classificações propostas têm levado a muita confusão. Uma forma simples e de fácil compreensão de descrever os defeitos do septo ventricular é essencial, uma vez que eles freqüentemente ocorrem associados a outros defeitos (tais como transposição completa ou corrigida, veja Capítulos 13 e 14) e que são parte integrante da tetralogia de Fallot (veja Capítulo 12) e de ventrículos com dupla via de saída (veja Capítulo 15).

Defeitos do septo ventricular ocorrem comumente de forma isolada, e os pacientes acometidos levam com freqüência vida quase normal.2 Tem sido relatado que pouco mais da metade desses defeitos se fecham espontaneamente.3,4 O fechamento cirúrgico pode ser necessário se o paciente apresentar sintomas precocemente na infância ou se houver risco de doença vascular pulmonar. As descrições da morfologia dos defeitos isolados, detalhadas neste capítulo, são igualmente aplicáveis a defeitos que ocorrem num contexto mais complexo.

Terminologia

Classificações diferentes utilizadas por diferentes autores são o principal empecilho ao entendimento. Por exemplo, vários autores relacionam os defeitos à 'crista supraventricular', sem precisar exatamente o que é a 'crista'.5 O tamanho do defeito é importante, uma vez que determina as conseqüências hemodinâmicas. A localização no septo ventricular é igualmente importante, particularmente para o cirurgião, uma vez que ela indica não só a sua relação, mas a proximidade com o tecido atrioventricular de condução. A relação do defeito a estruturas valvares indica a possibilidade de um fechamento espontâneo. A classificação descrita por nós é útil aos investigadores que utilizam tanto angiografia6 quanto ecocardiografia7 ou ressonância nuclear magnética. Ela também indica a posição provável do tecido de condução atrioventricular.8

Quais são as margens de um defeito do septo ventricular? A resposta a esta pergunta não é tão óbvia quanto parece ser. Não há problema quando se trata de um orifício simples no septo ventricular muscular. Todas as margens desse orifício estão, aproximadamente, no mesmo plano e são facilmente identificadas tanto na face ventricular direita como na esquerda (figuras 8.1a, 8.1b). Problemas aparecem quando o defeito está na borda do septo ventricular muscular, particularmente quando o septo ventricular é cavalgado pelo orifício de uma valva atrioventricular ou arterial. As margens do defeito podem então ser diferentes quando vistas do lado direito ou esquerdo do septo (figuras 8.2a, 8.2b). Os ecocardiografistas descrevem os folhetos da valva que cavalga o septo como o 'teto' do defeito (figura 8.3). O cirurgião, entretanto, fecha o defeito através da colocação de um retalho nas suas margens ventriculares direitas. Por esta razão, concentramo-nos na margem ventricular direita quando descrevemos esses defeitos.

Quando descrevemos a localização de um defeito, primeiramente consideramos as suas margens e, portanto, a forma como ele se abre no ventrículo direito. O septo ventricular normal é constituído principalmente por músculo, mas possui uma pequena porção fibrosa, o septo membranoso (figura 8.4). Não existem demarcações claras no septo muscular mas, pelo lado direito, ele pode ser dividido em uma porção de entrada junto à valva tricúspide, uma porção apical trabecular e uma porção de saída junto ao infundíbulo subpulmonar (figura 8.5).

No coração normal, a via de saída do ventrículo esquerdo é o centro do coração. Portanto, o assim chamado septo' de entrada' separa a via de entrada do ventrículo direito da via de saída do ventrículo esquerdo (veja Capítulo1, figuras 1.16a, 1.16b). Além disso, o septo de saída, aquela porção do septo que separa as vias de saída subarteriais, é minúsculo (veja Capítulo1, figuras 1.14a, 1.14b). Por essas razões, é mais preciso descrever os defeitos como abrindo-se na porção de entrada, na trabecular apical ou no componente de saída do ventrículo direito, ou sendo confluentes quando são grandes e abrem-se em mais de um componente.

Todos os defeitos do septo ventricular podem sei classificados em um dos três grupos descritos a seguir, de acordo com suas bordas (figura 8.6). Primeiro, aqueles que têm bordas completamente musculares (os defeitos musculares); segundo, aqueles que têm, como parte de sua borda, tecido fibroso constituinte da junção entre folhetos valvares e o corpo fibroso central ou o septo membranoso (defeitos perimembranosos); terceiro, aqueles que têm, como parte de sua borda, continuidade fibrosa entre as valvas arteriais, ou ainda quando são cavalgados por uma valva arterial comum (defeitos duplamente relacionados ou subarteriais).

Defeitos Musculares

Defeitos septais ventriculares que têm bordas completamente musculares podem situar-se em qualquer local do septo. Eles podem se dividir entre aqueles que se abrem tia via de entrada, no componente trabecular ou na via de saída do ventrículo direito, e podem ser múltiplos ou coexistir com defeitos perimembranosos ou subarteriais.

Os defeitos musculares que se abrem na via de entrada são, na sua maior extensão, cobertos pelo folheto septal da valva tricúspide (figuras 8.7a, 8.7b). A diferenciação entre esses defeitos e os perimembranosos que se abrem na veia de entrada é crucial para o cirurgião. Tecido de condução ventricular passa ântero - superiormente ao defeito muscular (figura 8.8), enquanto que é sempre póstero-inferior aos defeitos perimembranosos (veja abaixo).

Em corações onde um defeito muscular de via de entrada coexiste com um defeito perimembranoso, o tecido de condução passa na banda muscular entre os dois.

Múltiplos pequenos defeitos podem existir por entre as trabeculações do septo apical, dando uma aparência de 'queijo suíço'. Eles podem se fechar pelo crescimento ou hipertrofia das trabeculações. Quando encontrados de ambos os lados da trabécula septomarginal, os defeitos musculares tendem a ser amplos (figuras 8.9a, 8.9b). Suas bordas não mostram relação com o tecido de condução, mas é difícil evitar os ramos distais.

Os defeitos musculares abrindo-se na via de saída do ventrículo direito são usualmente pequenos e tendem ao fechamento espontâneo. O mecanismo envolvido pode ser crescimento de músculo circunjacente, prolapso de um folheto valvar aórtico ou ainda deposição de tecido fibroso ao redor de sua margens. O tecido de condução está usualmente longe do defeito, sendo protegido pela borda muscular póstero-inferior.

Defeitos Perimembranosos

Esses defeitos não são simplesmente orifícios no septo membranoso. Um orifício nessa localização seria muito pequeno. O septo membranoso é o ponto de encontro das três porções do septo na face ventricular direita. Tais defeitos podem se abrir em qualquer dessas porções. Eles podem, portanto, ser classificados como abrindo-se na via de entrada, porção trabecular ou via de saída, dependendo de qual parte do septo muscular está mais envolvida. Defeitos confluentes abrem-se em mais de uma porção do ventrículo direito, como por exemplo um defeito suficientemente grande para abrir-se nas vias de entrada e de saída.

Um defeito perimembranoso que se abre no componente de entrada, abaixo da valva tricúspide, tem, na sua borda póstero-inferior, uma área de continuidade fibrosa entre as valvas mitral e tricúspide. A valva aórtica e o corpo fibroso central formam a borda superior (figuras 8.10a, 8.10b, 8.10c). O músculo papilar medial é anterior a esses defeitos. Eles podem ter uma ampla extensão posterior. Tais defeitos têm sido descritos como do tipo 'canal atrioventricular isolado'.9 É um engano denominá-los assim, uma vez que os corações não apresentam nenhuma característica da deficiência do septo atrioventricular muscular (veja capítulo 6). Defeitos perimembranosos que se estendem em direção ao ápice cardíaco são descritos como perimembranosos trabeculares. O músculo papilar medial está localizado no ápice do defeito. A cúspide septal da valva tricúspide apresenta freqüentemente uma fenda, que está aderida às margens do defeito, e, portanto, tais orifícios permitem passagem de fluxo entre o ventrículo esquerdo e o átrio direito, dando a impressão de ausência do septo membranoso atrioventricular. A deficiência verdadeira do septo membranoso atrioventricular é muito rara.10

Defeitos que se abrem na via de saída do ventrículo direito são raramente decorrentes de uma deficiência do verdadeiro septo de saída ou infundibular, o qual, como já dissemos, é extremamente pequeno no coração normal. Mais usualmente, existe desalinhamento entre o septo de saída e o trabecular, associado com cavalgamento de uma valva arterial. Quando o desalinhamento está presente, o septo de saída é uma estrutura claramente definida, sendo facilmente visibilizada (figuras 8.11a, 8.11b).

Defeitos com desalinhamento do septo infundibular na via de saída do ventrículo esquerdo tendem a estar associados a lesões obstrutivas, tais como hipoplasia tubular no arco aórtico. Aqueles com desalinhamento para o ventrículo direito tendem a produzir obstrução subpulmonar. O defeito típico da tetralogia de Fallot é um exemplo (veja Capítulo 12).

A distribuição básica do tecido de condução atrioventricular é a mesma para todos os defeitos perimembranosos 'isolados'. Quando passa através do corpo fibroso central, o eixo de condução está relacionado à borda póstero-inferior do defeito (veja figuras 8.9a, 8.9b). Algumas vezes, um resquício do septo membranoso é visto aí. Se é suficientemente grande, pode ser usado para ancoramento de suturas, com segurança. Todavia, está bastante próximo ao tecido de condução. O nó atrioventricular está situado em sua posição normal, no ápice do triângulo de Koch. O triângulo nodal pode estar deslocado posteriormente quando existe um grande defeito de via de entrada. A única exceção a esta regra em corações com conexões atrioventriculares concordantes é quando existe cavalgamento e inserção bilateral dos folhetos da valva tricúspide.11 Regras diferentes se aplicam, todavia, quando há conexões atrioventriculares anormais.

Uma vez próximos à cúspide septal da valva tricúspide, os defeitos perimembranosos de via de entrada ou trabeculares podem se fechar pela adesão do folheto ao defeito ou obstruídos por tecido fibroso aneurismático, usualmente derivado do folheto da valva tricúspide (figuras 8.12a, 8.12b, 8.12c). Estes últimos são freqüentemente descritos como 'aneurismas do septo membranoso', mas raramente um resquício do septo membranoso está envolvido.

E improvável que defeitos com desalinhamento do septo de saída se fechem espontaneamente, assim como grandes defeitos do septo de entrada, particularmente quando há cavalgamento da valva tricúspide.11

Defeitos Duplamente Relacionados e Subarteriais


A característica essencial desses defeitos é a continuidade fibrosa entre os folhetos das valvas pulmonar e aorta (figuras 8.13a, 8.13b, 8.13c), uma vez que o septo infundibular e o componente 'septal' do infundíbulo subpulmonar estão ambos ausentes. Freqüentemente uma ou arribas as valvas arteriais cavalgam o septo trabecular. Prolapso da valva aórtica é comum e pode contribuir para o fechamento do defeito, porém pode causar regurgitação aórtica. A borda póstero-inferior do defeito pode ser muscular, e nesse caso ela não contém tecido de condução. Se o defeito se estende bastante póstero-inferiormente, ocorre continuidade fibrosa com o corpo fibroso central e ele se torna perimembranoso, com o tecido de condução relacionado à margem, neste ponto.

Referências Bibliográficas

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11. Anderson RH, Milo S, Ho SY, Wilkinson JL, Becker AE. The anatomy of stradding atrioventricular valves. In: Becker AE, Losekoot TG, Marcelletti C, Anderson RH. (eds). Paediatric Cardiology, Volume 3. Edinburgh: Churchill Livingstone. 198 1, pp. 411-25.

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