Introdução
Os defeitos do septo ventricular são as malformações
congênitas cardíacas mais comuns.1 Apesar disso, não há consenso sobre qual
a melhor forma de descrever suas características morfológicas. Conflitos entre as
várias classificações propostas têm levado a muita confusão. Uma forma simples e de
fácil compreensão de descrever os defeitos do septo ventricular é essencial, uma vez
que eles freqüentemente ocorrem associados a outros defeitos (tais como transposição
completa ou corrigida, veja Capítulos 13 e 14) e que são parte integrante da tetralogia de
Fallot (veja Capítulo 12) e de ventrículos
com dupla via de saída (veja Capítulo 15).
Defeitos do septo ventricular ocorrem comumente de forma
isolada, e os pacientes acometidos levam com freqüência vida quase normal.2
Tem sido relatado que pouco mais da metade desses defeitos se fecham espontaneamente.3,4
O fechamento cirúrgico pode ser necessário se o paciente apresentar sintomas
precocemente na infância ou se houver risco de doença vascular pulmonar. As descrições
da morfologia dos defeitos isolados, detalhadas neste capítulo, são igualmente
aplicáveis a defeitos que ocorrem num contexto mais complexo.
Terminologia
Classificações diferentes utilizadas por diferentes
autores são o principal empecilho ao entendimento. Por exemplo, vários autores
relacionam os defeitos à 'crista supraventricular', sem precisar exatamente o que é a
'crista'.5 O tamanho do defeito é importante, uma vez que determina as
conseqüências hemodinâmicas. A localização no septo ventricular é igualmente
importante, particularmente para o cirurgião, uma vez que ela indica não só a sua
relação, mas a proximidade com o tecido atrioventricular de condução. A relação do
defeito a estruturas valvares indica a possibilidade de um fechamento espontâneo. A
classificação descrita por nós é útil aos investigadores que utilizam tanto
angiografia6 quanto ecocardiografia7 ou ressonância nuclear
magnética. Ela também indica a posição provável do tecido de condução
atrioventricular.8
Quais são as margens de um defeito do septo ventricular?
A resposta a esta pergunta não é tão óbvia quanto parece ser. Não há problema quando
se trata de um orifício simples no septo ventricular muscular. Todas as margens desse
orifício estão, aproximadamente, no mesmo plano e são facilmente identificadas tanto na
face ventricular direita como na esquerda (figuras
8.1a, 8.1b). Problemas aparecem quando
o defeito está na borda do septo ventricular muscular, particularmente quando o septo
ventricular é cavalgado pelo orifício de uma valva atrioventricular ou arterial. As
margens do defeito podem então ser diferentes quando vistas do lado direito ou esquerdo
do septo (figuras 8.2a, 8.2b). Os ecocardiografistas descrevem os
folhetos da valva que cavalga o septo como o 'teto' do defeito (figura 8.3). O cirurgião, entretanto, fecha o
defeito através da colocação de um retalho nas suas margens ventriculares direitas. Por
esta razão, concentramo-nos na margem ventricular direita quando descrevemos esses
defeitos.
Quando descrevemos a localização de um defeito,
primeiramente consideramos as suas margens e, portanto, a forma como ele se abre no
ventrículo direito. O septo ventricular normal é constituído principalmente por
músculo, mas possui uma pequena porção fibrosa, o septo membranoso (figura 8.4). Não existem demarcações claras
no septo muscular mas, pelo lado direito, ele pode ser dividido em uma porção de entrada
junto à valva tricúspide, uma porção apical trabecular e uma porção de saída junto
ao infundíbulo subpulmonar (figura 8.5).
No coração normal, a via de saída do ventrículo
esquerdo é o centro do coração. Portanto, o assim chamado septo' de entrada' separa a
via de entrada do ventrículo direito da via de saída do ventrículo esquerdo (veja
Capítulo1, figuras 1.16a, 1.16b). Além disso, o septo de saída,
aquela porção do septo que separa as vias de saída subarteriais, é minúsculo (veja
Capítulo1, figuras 1.14a, 1.14b). Por essas razões, é mais preciso
descrever os defeitos como abrindo-se na porção de entrada, na trabecular apical ou no
componente de saída do ventrículo direito, ou sendo confluentes quando são grandes e
abrem-se em mais de um componente.
Todos os defeitos do septo ventricular podem sei
classificados em um dos três grupos descritos a seguir, de acordo com suas bordas (figura 8.6). Primeiro, aqueles que têm bordas
completamente musculares (os defeitos musculares); segundo, aqueles que têm, como parte
de sua borda, tecido fibroso constituinte da junção entre folhetos valvares e o corpo
fibroso central ou o septo membranoso (defeitos perimembranosos); terceiro, aqueles que
têm, como parte de sua borda, continuidade fibrosa entre as valvas arteriais, ou ainda
quando são cavalgados por uma valva arterial comum (defeitos duplamente relacionados ou
subarteriais).
Defeitos
Musculares
Defeitos septais ventriculares que têm bordas
completamente musculares podem situar-se em qualquer local do septo. Eles podem se dividir
entre aqueles que se abrem tia via de entrada, no componente trabecular ou na via de
saída do ventrículo direito, e podem ser múltiplos ou coexistir com defeitos
perimembranosos ou subarteriais.
Os defeitos musculares que se abrem na via de entrada
são, na sua maior extensão, cobertos pelo folheto septal da valva tricúspide (figuras 8.7a, 8.7b). A diferenciação entre esses defeitos
e os perimembranosos que se abrem na veia de entrada é crucial para o cirurgião. Tecido
de condução ventricular passa ântero - superiormente ao defeito muscular (figura 8.8), enquanto que é sempre
póstero-inferior aos defeitos perimembranosos (veja abaixo).
Em corações onde um defeito muscular de via de entrada
coexiste com um defeito perimembranoso, o tecido de condução passa na banda muscular
entre os dois.
Múltiplos pequenos defeitos podem existir por entre as
trabeculações do septo apical, dando uma aparência de 'queijo suíço'. Eles podem se
fechar pelo crescimento ou hipertrofia das trabeculações. Quando encontrados de ambos os
lados da trabécula septomarginal, os defeitos musculares tendem a ser amplos (figuras 8.9a, 8.9b). Suas bordas não mostram relação com
o tecido de condução, mas é difícil evitar os ramos distais.
Os defeitos musculares abrindo-se na via de saída do
ventrículo direito são usualmente pequenos e tendem ao fechamento espontâneo. O
mecanismo envolvido pode ser crescimento de músculo circunjacente, prolapso de um folheto
valvar aórtico ou ainda deposição de tecido fibroso ao redor de sua margens. O tecido
de condução está usualmente longe do defeito, sendo protegido pela borda muscular
póstero-inferior.
Defeitos
Perimembranosos
Esses defeitos não são simplesmente orifícios no septo
membranoso. Um orifício nessa localização seria muito pequeno. O septo membranoso é o
ponto de encontro das três porções do septo na face ventricular direita. Tais defeitos
podem se abrir em qualquer dessas porções. Eles podem, portanto, ser classificados como
abrindo-se na via de entrada, porção trabecular ou via de saída, dependendo de qual
parte do septo muscular está mais envolvida. Defeitos confluentes abrem-se em mais de uma
porção do ventrículo direito, como por exemplo um defeito suficientemente grande para
abrir-se nas vias de entrada e de saída.
Um defeito perimembranoso que se abre no componente de
entrada, abaixo da valva tricúspide, tem, na sua borda póstero-inferior, uma área de
continuidade fibrosa entre as valvas mitral e tricúspide. A valva aórtica e o corpo
fibroso central formam a borda superior (figuras
8.10a, 8.10b, 8.10c). O músculo papilar medial é anterior
a esses defeitos. Eles podem ter uma ampla extensão posterior. Tais defeitos têm sido
descritos como do tipo 'canal atrioventricular isolado'.9 É um engano
denominá-los assim, uma vez que os corações não apresentam nenhuma característica da
deficiência do septo atrioventricular muscular (veja capítulo 6). Defeitos perimembranosos que se
estendem em direção ao ápice cardíaco são descritos como perimembranosos
trabeculares. O músculo papilar medial está localizado no ápice do defeito. A cúspide
septal da valva tricúspide apresenta freqüentemente uma fenda, que está aderida às
margens do defeito, e, portanto, tais orifícios permitem passagem de fluxo entre o
ventrículo esquerdo e o átrio direito, dando a impressão de ausência do septo
membranoso atrioventricular. A deficiência verdadeira do septo membranoso
atrioventricular é muito rara.10
Defeitos que se abrem na via de saída do ventrículo
direito são raramente decorrentes de uma deficiência do verdadeiro septo de saída ou
infundibular, o qual, como já dissemos, é extremamente pequeno no coração normal. Mais
usualmente, existe desalinhamento entre o septo de saída e o trabecular, associado com
cavalgamento de uma valva arterial. Quando o desalinhamento está presente, o septo de
saída é uma estrutura claramente definida, sendo facilmente visibilizada (figuras 8.11a, 8.11b).
Defeitos com desalinhamento do septo infundibular na via
de saída do ventrículo esquerdo tendem a estar associados a lesões obstrutivas, tais
como hipoplasia tubular no arco aórtico. Aqueles com desalinhamento para o ventrículo
direito tendem a produzir obstrução subpulmonar. O defeito típico da tetralogia de
Fallot é um exemplo (veja Capítulo 12).
A distribuição básica do tecido de condução
atrioventricular é a mesma para todos os defeitos perimembranosos 'isolados'. Quando
passa através do corpo fibroso central, o eixo de condução está relacionado à borda
póstero-inferior do defeito (veja figuras 8.9a,
8.9b). Algumas vezes, um resquício do
septo membranoso é visto aí. Se é suficientemente grande, pode ser usado para
ancoramento de suturas, com segurança. Todavia, está bastante próximo ao tecido de
condução. O nó atrioventricular está situado em sua posição normal, no ápice do
triângulo de Koch. O triângulo nodal pode estar deslocado posteriormente quando existe
um grande defeito de via de entrada. A única exceção a esta regra em corações com
conexões atrioventriculares concordantes é quando existe cavalgamento e inserção
bilateral dos folhetos da valva tricúspide.11 Regras diferentes se aplicam,
todavia, quando há conexões atrioventriculares anormais.
Uma vez próximos à cúspide septal da valva tricúspide,
os defeitos perimembranosos de via de entrada ou trabeculares podem se fechar pela adesão
do folheto ao defeito ou obstruídos por tecido fibroso aneurismático, usualmente
derivado do folheto da valva tricúspide (figuras
8.12a, 8.12b, 8.12c). Estes últimos são freqüentemente
descritos como 'aneurismas do septo membranoso', mas raramente um resquício do septo
membranoso está envolvido.
E improvável que defeitos com desalinhamento do septo de
saída se fechem espontaneamente, assim como grandes defeitos do septo de entrada,
particularmente quando há cavalgamento da valva tricúspide.11
Defeitos
Duplamente Relacionados e Subarteriais
A característica essencial desses defeitos é a
continuidade fibrosa entre os folhetos das valvas pulmonar e aorta (figuras 8.13a, 8.13b, 8.13c), uma vez que o septo infundibular e o
componente 'septal' do infundíbulo subpulmonar estão ambos ausentes. Freqüentemente uma
ou arribas as valvas arteriais cavalgam o septo trabecular. Prolapso da valva aórtica é
comum e pode contribuir para o fechamento do defeito, porém pode causar regurgitação
aórtica. A borda póstero-inferior do defeito pode ser muscular, e nesse caso ela não
contém tecido de condução. Se o defeito se estende bastante póstero-inferiormente,
ocorre continuidade fibrosa com o corpo fibroso central e ele se torna perimembranoso, com
o tecido de condução relacionado à margem, neste ponto.
Referências
Bibliográficas
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