Introdução
Tem havido muita discussão a respeito de corações com
conexão atrioventricular tipo dupla via de entrada e sua relação com atresia de valva
atrioventricular.1,2 Esses dois tipos de anormalidades apresentam,
freqüentemente, similaridade morfológica da sua massa ventricular, porém existem
diferenças na conexão atrioventricular. A consideração em separado dessas
características permite que os corações sejam descritos de forma simples e lógica.
Ambos os átrios são conectados a apenas uma câmara
dentro da massa ventricular em todos os exemplos de corações com dupla via de entrada, e
na maioria daqueles com atresia de valva atrioventricular (veja Capítulo 2).3,4 Essa característica
os distingue da maioria dos corações congenitamente malformados, nos quais cada átrio
está conectado ao seu próprio ventrículo (conexão atrioventricular biventricular).5
O arranjo no qual ambos os átrios conectam-se com um ventrículo é descrito como
conexão atrioventricular univentricular (veja Capítulo
2).3,4 Os tipos de conexão atrioventricular dentro deste grupo são,
portanto, dupla via de entrada ventricular6 e ausência da conexão
atrioventricular direita ou esquerda.4
Morfologia Das
Conexões Atrioventriculares Univentriculares
Cada junção atrioventricular consiste de miocárdio
atrial potencialmente conectado à massa ventricular adjacente. A maioria dos corações
tem duas junções atrioventriculares, sendo que a morfologia de cada uma é independente
da natureza da valva (ou valvas) que eles contém. Por exemplo, em corações com conexão
atrioventricular concordante, o miocárdio atrial direito está conectado ao ventrículo
direito, e o átrio esquerdo ao ventrículo esquerdo, independentemente de as junções
terem duas valvas atrioventriculares separadas (figura
7.1a) ou uma valva atrioventricular comum (figura
7.1b). Em um coração com uma valva comum, a junção atrioventricular é deficiente
ao nível do septo,7 mas as duas junções parietais atrioventriculares estão
conectadas ao miocárdio ventricular através da valva comum. Dupla via de entrada
ventricular 6 é definida, portanto, como a conexão de ambas as junções
atrioventriculares ao mesmo ventrículo. Podem existir duas valvas atrioventriculares (figuras 7.2a, 7.2b, 7.2c e 7.2d) ou uma valva atrioventricular comum (figuras 7.3a, 7.3b e 7.3c).
Considera-se freqüentemente que a atresia de valva
atrioventricular é causada por uma valva atrioventricular imperfurada.8 Tais
variantes de atresia valvar realmente existem (figuras
7.4a, 7.4b e 7.5a, 7.5b), mas são raras. Muito mais
freqüentemente, existe ausência completa da conexão atrioventricular (figuras 7.6a, 7.6b, 7.6c, 7.6d).
O assoalho do átrio é completamente muscular (figura 7.7) e está separado da massa
ventricular pelo tecido fibroadiposo da prega atrioventricular.7 Dessa forma,
tanto a conexão direita (figuras 7.6a, 7.6b, 7.6c, 7.6d) como a esquerda (veja figuras 7.8a, 7.8b, 7.8c) podem estar ausentes. O outro átrio
conecta-se, quase sempre, com apenas um ventrículo. Assim como ventrículos com dupla via
de entrada, esta apresentação pode ser descrita como conexão atrioventricular
univentricular.3,4
Nem todos os corações com atresia de valva
atrioventricular têm conexão atrioventricular univentricular. A lesão ilustrada em (figuras 7.4a, 7.4b) com uma valva imperfurada, por exemplo,
ou variantes 'imperfuradas' da malformação de Ebstein da tricúspide9 têm
atresia de valva atrioventricular com conexão atrioventricular biventricular e
concordante. Apenas exemplos de atresia de valva atrioventricular com ausência de uma
conexão atrioventricular ou dupla via de entrada ventricular com uma das valvas
imperfurada, podem ser descritos como tendo conexão atrioventricular univentricular (veja
Capítulo2, figura 2.16).
Massa Ventricular em
Presença de Conexão Univentricular
A maioria dos corações com conexão atrioventricular
univentricular não são 'corações univentriculares' ou 'ventrículos únicos'. Eles
apresentam um ventrículo grande e um pequeno.1,2,10,11
A única característica que é verdadeiramente
univentricular é a conexão atrioventricular. Quer exista dupla via de entrada ou
ausência de uma conexão atrioventricular, o efeito na massa ventricular será o mesmo.
Um dos ventrículos não tem seu componente de entrada e, portanto, é incompleto e
rudimentar.
Quando existe conexão atrioventricular univentricular
para um ventrículo esquerdo dominante, o ventrículo direito é rudimentar e incompleto.
Usualmente o ventrículo direito mantém seu componente de saída, seja ele subaórtico ou
subpulmonar. Raramente, ele pode ter dupla via de saída. O ventrículo incompleto mantém
seu componente trabecular apical, o qual é encontrado ântero-superiormente dentro da
massa ventricular (7.9), quer seja para a direita (veja figuras 7.9a, 7.9b, 7.9c) ou para a esquerda (figuras 7.10a, 7.10b, 7.10c) do ventrículo dominante
morfologicamente esquerdo. Também, pouco freqüentemente, o ventrículo esquerdo
dominante pode ter dupla via de saída além de dupla via de entrada, ou uma via de
entrada quando uma conexão atrioventricular está ausente (7.11). O ventrículo
rudimentar ou incompleto é então constituído apenas pelo componente trabecular apical
(veja figuras 7.11a, 7.11b).
Quando existe conexão atrioventricular univentricular
para um ventrículo dominante direito, o ventrículo esquerdo é incompleto e rudimentar.
Ventrículos esquerdos rudimentares são sempre póstero-inferiores ao ventrículo direito
dominante, usualmente à esquerda, algumas vezes, porém, à direita. Freqüentemente eles
são constituídos apenas pelo componente trabecular, uma vez que ambas as vias de saída
costumam se originar do ventrículo direito (figuras
7.12a, 7.12b, 7.12c).
A maioria dos corações com conexão atrioventricular
univentricular terá ou um ventrículo dominante esquerdo com um ventrículo rudimentar
direito ou um ventrículo dominante direito com um ventrículo rudimentar esquerdo. Uma
variante rara é aquela onde existe uma conexão univentricular para um ventrículo
aparentemente solitário. Este arranjo poderá ocorrer quando o ventrículo solitário for
de morfologia direita, ou raramente esquerda, e o ventrículo rudimentar for tão pequeno
que a sua detecção só é possível por exame histológico. Ocasionalmente, todavia, a
massa ventricular é composta de uma câmara verdadeiramente solitária de morfologia
indeterminada (figuras7.13a, 7.13b). Tais corações são raros e
constituem os verdadeiros exemplos de 'corações univentriculares' ou 'ventrículos
únicos'.
Valvas
Atrioventriculares Cavalgando ou com Inserção Bilateral
O aparelho tensor de uma valva atrioventricular pode
inserir-se dos dois lados do septo ventricular. Uma junção atrioventricular será então
compartilhada por ambos os ventrículos. Dependendo do grau de cavalgamento do anel valvar
sobre o septo, existe um espectro de malformações entre os tipos biventricular e
univentricular de conexão (dupla via de entrada) (figura 7.14). Uma descrição precisa da
conexão depende da natureza da valva com inserção bilateral e do arranjo espacial da
massa ventricular. Uma valva que cavalga o septo estará relacionada ao ventrículo que
suportar a maior parte de sua circunferência. Dupla via de entrada ventricular será
então definida quando a maior parte de ambas as junções atrioventriculares estiver
conectada a um mesmo ventrículo. O ventrículo poderá ser de morfologia esquerda,
direita, ou tratar-se de um ventrículo solitário de morfologia indeterminada.6
Uma valva solitária pode também, raramente, cavalgar e inserir-se bilateralmente quando
uma das conexões atrioventriculares está ausente. Isto produzirá um arranjo particular
no qual a conexão atrioventricular é uniatrial, porém, biventricular.12
Nestas circunstâncias, ambos os ventrículos são incompletos e rudimentares em graus
variáveis Usualmente um deles é dominante e o outro rudimentar, mas raramente dois
ventrículos incompletos podem ter tamanhos comparáveis.
Corações com Dupla Via de Entrada
Ventricular
Corações com dupla via de entrada podem apresentar
qualquer arranjo atrial. Eles podem ter qualquer uma das três morfologia possíveis. Pode
haver várias malformações de valvas atrioventriculares, qualquer conexão
ventriculoarterial, relações diversas entre ventrículos (rudimentar e dominante), e
vários tipos de anomalias associadas. Qualquer combinação pode ocorrer, mas o padrão
mais freqüente é o de uma dupla via de entrada para um ventrículo morfologicamente
esquerdo com ventrículo rudimentar direito situado à direita ou à esquerda, e conexão
ventriculoarterial discordante (veja figuras
7.9a, 7.9b, 7.9c). Outros padrões importantes são dupla
via de entrada de ventrículo esquerdo com ventrículo rudimentar direito situado à
direita e conexão ventriculoarterial concordante (o assim chamado coração de Holmes, figuras 7.15a, 7.15b, 7.15c), ou ainda dupla via de entrada e dupla
via de saída de um ventrículo dominante de morfologia direita com um ventrículo
rudimentar esquerdo póstero-inferior.
Corações com Atresia de Valva
Atrioventricular
Grande variabilidade anatômica é possível, tanto quando
existe dupla via de entrada ventricular, como em casos com ausência de conexão
atrioventricular. Atresia de valva atrioventricular pode ser produzida por uma valva
imperfurada (veja figuras 7.4a, 7.4b e 7.5a, 7.5b) mas também por ausência de uma
conexão atrioventricular (figuras 7.6a, 7.6b, 7.6c, 7.6d). Isto deve ser sempre lembrado quando se
usam descrições como atresia mitral ou tricúspide.
A atresia tricúspide é usualmente devida à ausência da
conexão atrioventricular direita, com o átrio esquerdo conectado ao ventrículo
dominante esquerdo, e com um ventrículo rudimentar direito (figuras 7.6a, 7.6b, 7.6c, 7.6d). Isto pode ocorrer com conexões
ventriculoarteriais concordante ou discordante, e com diversos graus de obstrução
pulmonar.8 O reconhecimento dessas variantes é a base do sistema de
classificação alfanumérica de Edwards e Buechell.13 Obstrução
hemodinamicamente semelhante ao fluxo a partir do átrio morfologicamente direito pode
também ser produzida por uma valva imperfurada no contexto de uma conexão
atrioventricular concordante (veja figuras 7.4a,
7.4b) ou tipo dupla via de entrada (figuras 7.5a, 7.5b). O mesmo quadro hemodinâmico pode
também ser produzido por uma valva direita imperfurada em presença de conexão
atrioventricular discordante. Este último exemplo poderia ser descrito morfologicamente
como atresia mitral, mas produz o quadro hemodinâmico de atresia tricúspide. Este
conflito entre descrição hemodinâmica e anatômica também é visto quando existe
ausência da conexão atrioventricular esquerda, e o átrio direito está conectado a um
ventrículo dominante esquerdo, com o ventrículo rudimentar direito apresentando-se
ântero-superiormente e à esquerda.14 É provável que, se a conexão
atrioventricular esquerda estivesse se formado, ela teria uma valva com morfologia de
tricúspide (veja figuras 7.8a, 7.8b, 7.8c). Tal coração, portanto, tem ausência
da conexão atrioventricular esquerda, mas é, morfologicamente, atresia tricúspide e
produz o quadro clínico de atresia mitral.
A atresia mitral é mais freqüentemente devida à
ausência da conexão atrioventricular esquerda, com o átrio direito conectado ao
ventrículo direito dominante e o ventrículo esquerdo incompleto e rudimentar (figuras 7.16a, 7.16b, 7.16c). Esta lesão, quando coexiste com
atresia aórtica e septo ventricular intacto, é usualmente parte da síndrome de
hipoplasia do ventrículo esquerdo. A atresia mitral pode também ser devida a uma valva
atrioventricular esquerda imperfurada em presença de conexão atrioventricular
concordante ou tipo dupla via de entrada. Atresia mitral pode também ser vista em
situações similares às descritas acima para a atresia tricúspide, quando o arranjo
anatômico produz conflito entre as descrições hemodinâmica e morfológica.
É, portanto, prudente descrever completamente o arranjo
segmentar, sempre que uma atresia de valva atrioventricular seja encontrada em um contexto
não esperado. Desta forma, pode-se evitar confusão entre a morfologia e as
conseqüências hemodinâmicas.
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