Capítul 06 - Defeito Septal Atrioventricular

Introdução

De todas as malformações congênitas do coração, aquela mais sujeita a confusões, seja pela embriologia especulativa ou por falsas comparações com estruturas cardíacas normais, é o defeito septal atrioventricular. Neste defeito, há completa ausência das estruturas septais atrioventriculares normais. A anatomia anormal resultante, tanto das valvas atrioventriculares como da massa ventricular, não pode ser descrita adequadamente com termos tais como 'fenda da valva mitral' ou 'defeito tipo ostium primum'. O defeito poderá ser entendido se for apreciada a anatomia das estruturas septais atrioventriculares e as conseqüências de sua ausência. O nome que preferimos para esses defeitos, 'defeitos septais atrioventriculares',1 faz mais sentido do que outros nomes que têm sido usados (defeito do canal atrioventricular, defeito dos coxins endocárdicos). Deve ser notado, todavia, que uma característica constante dos corações que descrevemos como defeitos septais atrioventriculares é um canal atrioventricular comum.

O que é o Septo Atrioventricular Normal?

O septo atrioventricular do coração normal separa o átrio direito do ventrículo esquerdo. Ele tem duas partes:

A raiz aórtica está profundamente 'encaixada' entre a valva mitral e o septo atrioventricular. Isso significa que, no coração normal, a valva mitral tem uma inserção septal muito limitada (figura 6.2). A cúspide anterior ou aórtica da valva mitral é separada do septo pelo trato de saída subaórtico. A cúspide mural da valva mitral normal ocupa dois terços da circunferência do orifício atrioventricular esquerdo.

Conseqüências da Ausência do Septo Atrioventricular

Muito raramente2 existem corações com ausência apenas do componente membranoso do septo atrioventricular. Deveríamos descrever tais lesões como defeitos septais atrioventriculares membranosos. Exceto pelo orifício presente no local esperado para o septo membranoso, a estrutura desses corações é normal e eles não têm um canal atrioventricular comum. Os corações que nós agrupamos como 'defeitos septais atrioventriculares'1 têm ausência dos componentes muscular e membranoso do septo, atrioventricular. Esta ausência altera substancialmente a configuração da junção atrioventricular e a massa ventricular. Em corações com ausência de septação atrioventricular a aorta não está mais encaixada entre as valvas mitral e tricúspide. Ao invés disso, a valva aórtica está posiciona da anteriormente a uma junção atrioventricular comum (figuras 6.3a, 6.3b). Tal junção tem uma valva atrioventricular comum (figura 6.4a, 6.4b). Na maioria dos corações (assim chamados defeitos do tipo ostium primum), todavia, a valva comum é dividida em orifícios atrioventriculares separados direito e esquerdo (figura 6.5). Se a valva tiver um orifício ou orifícios separados, ela terá o mesmo arranjo básico de seus folhetos (figura 6.6). Há dois folhetos no ventrículo direito. Eles são comparáveisás cúspides da valva tricúspide normal, e são encontrados em posição ântero-superior e inferior. Os outros folhetos da valva comum não têm correspondente no coração normal. Um folheto encontra-se completamente dentro do ventrículo esquerdo, estando localizado ao longo da face lateral da junção atrioventricular esquerda. É o folheto mural, e ocupa menos de um terço de toda a circunferência da junção esquerda (figuras 6.7a, 6.7b). Os outros folhetos estão inseridos pelo aparelho tensor em ambos os ventrículos. Eles são os 'folhetos-ponte' superior e inferior (figura 6.8). A presença de uma lingüeta de tecido entre os dois folhetos-ponte é que separa a valva em orifícios direito e esquerdo (veja figura 6.5).

Independente da presença de orifícios separados ou de um orifício comum, o componente esquerdo da valva ocupando a junção atrioventricular comum tem três folhetos.3,4 O espaço entre os componentes esquerdos dos folhetos-ponte funciona como uma comissura (veja figuras 6.7a, 6.7b). É um engano descrever esta estrutura como fenda (ou cleft) da cúspide anterior da valva mitral normal. Os músculos papilares que suportam esses folhetos da valva esquerda têm orientação muito diferente daqueles que suportam a valva mitral normal. Os músculos papilares normais do ventrículo esquerdo estão posicionados ântero-lateralmente e póstero-medialmente. Nos defeitos septais atrioventriculares os músculos papilares do ventrículo esquerdo têm posição ântero-superior e póstero-inferior (figura 6.9).

Além das anormalidades da junção atrioventricular, os defeitos septais atrioventriculares são também associados com desproporção acentuada entre as dimensões das vias de entrada e de saída da face ventricular esquerda do septo. No coração normal, essas dimensões são aproximadamente iguais. Nos defeitos septais atrioventriculares, a dimensão da via de saída é muito maior do que a da via de entrada (figura 6.10). Esta desproporção, e a posição anteriorizada do trato subaórtico resultam em um estreitamento da via de saída do ventrículo esquerdo nos defeitos septais atrioventriculares.

Todos os defeitos septais atrioventriculares apresentam as seguintes características anatômicas:

Nem todos os defeitos, todavia, são semelhantes em outras características anatômicas. Existe importante variabilidade em alguns aspectos de:

Variabilidade da Valva Atrioventricular

A valva atrioventricular comum pode ter um orifício único (figuras 6.11a, 6.11b, 6.11c) ou orifícios separados direito e esquerdo (figura 6.12). Esta característica é freqüentemente utilizada para distinguir os defeitos chamados 'parciais' (veja figuras 6.12a, 6.12b, 6.12c) dos defeitos 'completos' (veja figuras 6.11a, 6.11b, 6.11c). Esta convenção, todavia, não é universal, uma vez que alguns preferem distinguir essas variantes tendo como base o nível de passagem de fluxo (veja abaixo), o que inevitavelmente resulta na descrição de categorias 'intermediárias'.6,7 Isso, por sua vez, pode levar à criação de classificações alfanuméricas.8 Preferimos evitar tal abordagem, e simplesmente descrever o arranjo das valvas atrioventriculares e o potencial para passagem de fluxo, como características separadas em cada coração. Considerando a valva, a junção atrioventricular pode ter ou uma valva comum com um orifício único, ou dois orifícios separados, direito e esquerdo. Esta é uma distinção do tipo "tudo ou nada".

Variabilidade na Passagem de Fluxo Através do Defeito

Ela depende da relação entre os folhetos-ponte da valva comum (e da lingüeta conectante, se presente) e as estruturas septais atriais e ventriculares (figura 6.13). Se os folhetos ponte e a lingüeta estiverem firmemente aderidos ao topo do septo ventricular, então toda a passagem de fluxo através do defeito se dará em nível atrial. Se, por outro lado, os folhetos estiverem aderidos à porção inferior do septo atrial, então a passagem de fluxo ocorrerá em nível ventricular. Se os folhetos não estiverem aderidos nem ao septo atrial e nem ao ventricular (folhetos flutuantes), a passagem de fluxo irá ocorrer tanto em nível atrial como ventricular. A quantidade de fluxo em nível ventricular dependerá em parte de condições hemodinâmicas, mas também à extensão das inserções cordais dos folhetos-ponte ao septo ventricular.

Variabilidade da Dominância Ventricular

O tamanho relativo dos ventrículos é um determinante importante do prognóstico. Na maioria dos casos, a junção é mais ou menos igualmente relacionada a ambos os ventrículos, produzindo o chamado arranjo balanceado, no qual os ventrículos são de tamanhos comparáveis. Em alguns casos a junção atrioventricular favorece o ventrículo direito (figuras 6.14a, 6.14b, 6.14c); sendo o esquerdo hipoplásico, havendo freqüente associação com coarctação ou interrupção aórtica. Alternativamente, a junção pode estar conectada principalmente ao ventrículo esquerdo, com hipoplasia do ventrículo direito e estenose pulmonar ocorrendo usualmente em associação. Esses arranjos são descritos respectivamente como dominância ventricular direita e esquerda.

Variantes mais raras existem, nas quais a junção tem nina conexão balanceada com os ventrículos, mas é localizada excentricamente em relação aos átrios. Em formas extremas, a junção pode se deslocar inteiramente para o átrio direito ou esquerdo, sendo que o outro se esvazia através do componente atrial do defeito septal atrioventricular.10 Alguns chamam essas variantes de 'dupla via de saída atrial'.11 Nós preferimos considerá-los em termos de dominância atrial.

Sistema de Condução Atrioventricular

Uma importante característica anatômica desses corações é que a ausência do septo, atrioventricular distorce o arranjo do nó atrioventricular e do feixe. No coração normal o feixe penetra no ápice de uma área proeminente chamada triângulo de Koch no lado atrial do septo, atrioventricular muscular. Esta área está faltando em corações com defeito septal atrioventricular e isto resulta em uma localização do nó atrioventricular na parede atrial posterior. O feixe penetra abaixo da inserção do folheto-ponte inferior, e existe um longo feixe não-ramificante abaixo desse folheto, no topo do componente de entrada do septo ventricular (figura 6.15). Isto torna o tecido de condução particularmente vulnerável durante o fechamento cirúrgico de tais defeitos, enquanto que o longo curso do feixe provavelmente explique a susceptibilidade a bloqueio de condução progressivo. Afortunadamente, todavia, os ramos do feixe não têm relação com o trato de saída subaórtico, e, portanto, essa área estará sob risco menor em caso de se tornar obstrutiva e requerer ampliação cirúrgica, uma ocorrência não muito rara (veja a seguir).

Malformações Associadas

Consideramos, até aqui, a anatomia básica dos defeitos septais atrioventriculares e sua variações mais importantes. A variabilidade de outras características foi considerada importante no passado. Um exemplo é a extensão do folheto-ponte superior dentro do ventrículo direito. Esta era a base da classificação cirúrgica desses corações feita por Rastelli e cols.10 Sua significância tem diminuído nos anos recentes, embora ainda seja freqüentemente usada. Outras anormalidades importantes ocorrem na valva atrioventricular esquerda e no trato de saída do ventrículo esquerdo.11,12

Defeitos septais atrioventriculares também complicam outras lesões, tais como tetralogia de Fallot ou dupla via de saída de ventrículo direito, enquanto que uma boa proporção de corações com isomerismo dos apêndices atriais têm defeito septal atrioventricular. Qualquer lesão anatomicamente possível pode coexistir com defeito septal atrioventricular. Isto mostra por que a análise segmentar seqüencial (veja Capítulo 2) é tão importante na abordagem das malformações cardíacas congênitas. Outras características são clinicamente importantes, tais como associação com síndrome de Down (trissomia do 21). Embora defeitos septais atrioventriculares sejam muito comumente encontrados na síndrome de Down e no isomerismo atrial, não conhecemos nenhuma descrição de paciente que apresente os três em associação.

Referências Bibliográficas

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