Capítulo 04 - Isomerismo dos Apêndices Atriais

Introdução

A descrição feita por Albernethy, em 1793,1 de pacientes com múltiplos baços, seguida pela observação de Martin2 sobre a ausência congênita do baço e doença cardíaca complexa, chamou atenção para a associação das malformações do baço (e dos órgãos abdominais) com lesões congênitas dentro do coração. Desde a importante contribuição de lvemark,3 tem sido usual descrever padrões de malformações cardíacas dentro das síndromes de asplenia e poliesplenia. Enquanto a total ausência do baço ou a presença de múltiplos baços raramente passa despercebida na autópsia,4 o padrão do baço é muito mais difícil de estabelecer no contexto clínico. Reconhece-se atualmente que o arranjo do baço se correlaciona de forma relativamente pobre com a anatomia atrial.

Na prática clínica, a 'síndrome da asplenia' é mais freqüentemente associada com isomerismo direito de órgãos torácicos e apêndices atriais,5 enquanto que a 'síndrome da poliesplenia' é virtualmente sempre associada com isomerismo esquerdo desses órgãos6 e dos apêndices atriais.

O arranjo isomérico dos apêndices atriais é importante, uma vez que na abordagem segmentar seqüencial para o diagnóstico das malformações cardíacas congênitas o arranjo morfológico dos átrios é o ponto de partida.7

Os apêndices são os componentes atriais mais constantes. Sua forma e a morfologia da junção com o átrio sempre mostram um padrão morfologicamente direito ou esquerdo. Como descrito no Capítulo 2, isto significa que todos os corações podem ser colocados em um dos quatro padrões de arranjo atrial. Neste capítulo estaremos descrevendo os dois arranjos isoméricos, e portanto é importante rever as características que permitem o reconhecimento dos apêndices.

Reconhecimento dos Átrios

Em corações com isomerismo atrial, as câmaras atriais e o septo são freqüentemente anormais. As conexões venoatriais são particularmente variáveis (ver abaixo). Os apêndices, por outro lado, mantêm sua morfologia característica, a despeito da sua posição (ver Capítulo2, figuras 2.2a, 2.2b, e 2.3):

É fácil reconhecer apêndices morfologicamente direitos bilaterais no coração autopsiado (figura 4.1a, 4.1b) e distingui-los dos apêndices morfologicamente esquerdos bilaterais (figura 4.2a, 4.2b) ou do arranjo usual (solitus) ou ainda daquele em Imagem em espelho" (inverso).

Reconhecimento Clínico

Demonstrar o isomerismo dos apêndices atriais é fácil para o patologista que segura o coração em suas mãos. O clínico deve reconhecer a morfologia dos apêndices pelos cortes ecocardiográficos, mas, na prática, isto freqüentemente não é possível.8 Isto pode ser feito, todavia, pela ecocardiografia transesofágica (figura 4.3a, 4.3b).9 injetar contrastes angiográficos nos apêndices atriais também permite diagnosticar a morfologia, enquanto que a ressonância magnética permite fácil reconhecimento dos vários padrões (figuras 4.4 e 4.5). Em muitos casos, todavia, a morfologia dos apêndices tem que ser inferida a partir de padrões de outras estruturas. Por exemplo, apêndices atriais isoméricos são quase sempre associados com brônquios isoméricos (figuras 4.6a e 4.6b),7,10 embora discordância broncoatrial possa ocorrer.11 Radiografia usando alta Kilovoltagem e feixes filtrados, ou imagem de ressonância magnética podem demonstrar a anatomia brônquica (figuras 4.6c e 4.6d).12,13

Isomerismo direito e esquerdo associam-se com padrões característicos de defeitos cardíacos, que serão descritos abaixo. Freqüentemente, pode estar no hemitórax direito ou na linha média ao invés de sua posição usual, à esquerda. A presença de um coração anormalmente posicionado deveria sempre levantar suspeitas de isomerismo.

Anatomia Atrial

Anomalias das câmaras atriais e das conexões venoatriais são comuns em corações apêndices isoméricos. Como já discutido, existem cristas terminais bilateralmente na presença de isomerismo direito. Como esperado, um sulco marca a face epicárdica de cada crista terminal e, em cada um desses sulcos existe um nó sinusal. Arribas as veias cavas superiores persistem e se conectam ao teto atrial bilateralmente (figuras 4.7a, 4.7b, 4.7c).14 O retorno venoso do coração em si é direto, não havendo formação de um seio coronário. A conexão da veia cava inferior aos átrios, quer seja à direita ou à esquerda, está quase sempre presente.

Uma outra marca importante do isomerismo direito é a justaposição, dentro do abdome, da aorta e da veia cava inferior. Esta é uma característica importante que é facilmente detectável pelo ecocardiograma bidimensional (figura 4.8).

Igualmente significante é a ocorrência freqüente de conexões venosas pulmonares totalmente anômalas. Na maioria dos casos, o canal anômalo conecta-se em um sítio supra ou infracardíaco, conforme anatomia ilustrada no Capítulo 3. Mesmo quando as veias pulmonares estão conectadas ao coração a conexão é anômala, dando-se usualmente através de um seio situado no teto de um átrio comum (figuras 4.9a, 4.9b, 4.9c).

O septo atrial é usualmente uma estrutura cordonal, sendo que a presença de um septo intacto é muito rara.

Em contraste com o isomerismo direito, as câmaras atriais em corações com isomerismo esquerdo dos apêndices atriais não possuem cristas terminais ou sulcos. Veias cavas superiores bilaterais são freqüentemente presentes. Estruturas lembrando o seio coronário são freqüentemente encontradas. A característica mais marcante do isomerismo esquerdo do curso supra-renal da veia cava inferior e sua continuação através da veia ázigos (ou hemiázigos) (figura 4.10). Este é um achado muito freqüente no isomerismo esquerdo e tem sido relatado apenas raramente no isomerismo direito.8,15 A veia ázigos (ou hemiázigos) também está justaposta à aorta, mas está em posição posterior (figuras 4.11a, 4.11b).

Pensou-se que, havendo ou não continuação através da ázigos, as veias hepáticas estariam sempre conectadas aos átrios bilateralmente no isomerismo esquerdo. Sabemos agora14 que uma confluência supra-hepática de veias hepáticas pode ser identificada em um bom número de casos, as quais podem ocasional mente, também drenar na veia cava inferior.

No isomerismo esquerdo, o septo atrial tende a ser melhor formado que no isomerismo direito. A superfície septal, todavia, não tem a típica borda do forame oval.

Junção Atrioventricular

Em corações com isomerismo dos apêndices atriais os átrios podem se conectar à massa ventricular de forma biventricular ou univentricular. Naqueles com conexões biventriculares, uma descrição ampla deve especificar tanto o tipo de isomerismo presente e o padrão de topologia da massa ventricular (ver Capítulo2, figura 2.14).

A topologia ventricular (ver Capítulo2, figura 2.15) é importante, uma vez que determina a distribuição do tecido de condução atrioventricular.16 Conexões biventriculares são mais comumente vistas em corações com isomerismo esquerdo.17 Uma conexão atrioventricular univentricular, particularmente uma dupla via de entrada, ocorre com alguma freqüência no isomerismo direito.8,15 Uma valva comum na junção atrioventricular com um defeito septal atrioventricular ou uma conexão tipo dupla via de entrada é encontrada em dois terços a três quartos dos corações com isomerismo direito ou esquerdo.

Junção Ventriculoarterial

Qualquer combinação de conexão ventriculoarterial pode ser esperada. Poucos corações com isomerismo direito têm conexões ventriculoarteriais concordantes,17 enquanto que conexões concordantes são encontradas em cerca de dois terços de corações com isomerismo esquerdo. Conexões discordantes e dupla via de saída de ventrículo direito são muito mais comuns no isomerismo direito. De forma significante, a obstrução pulmonar, estenose ou atresia estão presentes na maioria dos casos de isomerismo direito, sendo raramente observadas no isomerismo esquerdo. Por outro lado, obstrução ao fluxo aórtico, como coarctação ou hipoplasia tubular, são mais freqüentes no isomerismo esquerdo.10,17

Sistema de Condução


A disposição do nó sinusal reflete o arranjo isomérico dos apêndices atriais. No isomerismo direito, há dois nós sinusais, cada um colocado em um dos sulcos terminais. No isomerismo esquerdo, entretanto, os sulcos terminais estão ausentes. Em casos estudados, ou o nó sinusal era pobremente desenvolvido ou não pode ser identificado.

A septação atrioventricular e a topologia ventricular é quê determinam a disposição do sistema de condução atrioventricular. Em muitos corações com isomerismo e conexão atrioventricular biventricular, a septação atrioventricular é deficiente. A junção atrioventricular contém uma valva comum. Se existe topologia ventricular tipo "mão direita", o nó atrioventricular é deslocado posteriormente, assim como em outros corações com defeito do septo atrioventricular.18 Por outro lado, quando a topologia tem padrão tipo "mão esquerda", pode existir um "cordão" de tecido de condução conectando os dois nós (um anterior e o outro posterior).

Na presença de uma conexão atrioventricular univentricular, o sistema de condução atrioventricular está distribuído como em corações com esse tipo de conexão e átrios lateralizados. Pode-se esperar a presença de nós anteriores quando ambos os átrios se conectam a um ventrículo dominante, independentemente da posição espacial do ventrículo direito rudimentar e incompleto. Quando há dupla via de entrada para um ventrículo dominante direito, o nó atrioventricular conectante está situado posteriormente, exceto em raros casos onde o ventrículo esquerdo rudimentar está à direita.

Sumário

Embora a anatomia de corações com isomerismo atrial seja potencialmente complexa, ela pode ser compreendida analisando-se os corações de forma seqüencial. Os defeitos cardíacos são característicos e refletem amplamente o isomerismo dos apêndices atriais. Em geral, a presença de conexão totalmente anômala de veias pulmonares e obstrução pulmonar ou atresia no isomerismo direito agrava o prognóstico neste grupo.

A morfologia do baço tem pouco valor como indicativo da morfologia cardíaca, mas é sempre importante reconhecer a sua ausência, desde que clinicamente implica em aumento de susceptibilidade a infecções.

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