Capítulo 02 - Princípios Básicos para o Diagnóstico

Introdução

A análise segmentar seqüencial1-3 dos corações permite a descrição de malformações cardíacas congênitas complexas de uma maneira direta e simples. Todos os corações, normais ou anormais, são constituídos por três segmentos - os átrios, a massa ventricular e os troncos arteriais (figura 2.1). As anormalidades congênitas podem estar presentes em um ou mais de tais segmentos. Podem também ocorrer anormalidades na entrada das grandes veias ou na saída das artérias do coração. A estrutura básica deve ser descrita em primeiro lugar. Depois disso, todas as malformações associadas devem ser identificadas. Em muitos corações anormais as malformações associadas são a única anormalidade, mas é importante estabelecer se a estrutura básica é normal em cada caso.

Achados Usuais

Cada um dos três segmentos do coração normal tem um componente direito e um esquerdo. Uma das principais características dos corações congenitamente malformados é que as estruturas nem sempre estão situadas nos locais esperados. Os termos "morfologicamente direito" e "morfologicamente esquerdo" devem, portanto, ser usados para descrever estruturas. Dessa forma, as descrições terão sentido mesmo quando as estruturas estiverem localizadas anormalmente. Para saber se as câmaras cardíacas são normais, deve-se observar a estrutura de seus componentes mais constantes usando o "método morfológico".4 Para os átrios, o componente mais constante é o apêndice atrial. As diferenças entre os apêndices atriais morfologicamente direito e esquerdo5 sempre nos permitem determinar a sua natureza (figuras 2.2a, 2.2b). A forma do apêndice morfologicamente direito é um triângulo de base larga, enquanto que o apêndice esquerdo é tubular e encurvado (ver figuras 2.2a, 2.2b). Ainda mais diferente é a junção entre o apêndice e o componente atrial de parede lisa. No apêndice morfologicamente direito, tal junção é ampla e marcada por uma extensa crista com músculos pectíneos, enquanto que no esquerdo ela é estreita, sem crista e com poucos músculos pectíneos (figura 2.3). Tais diferenças são vistas claramente tanto através da ressonância nuclear magnética como da ecocardiografia transesofágica (ver Capítulo 1). O segundo segmento cardíaco, a massa ventricular, quase sempre contém dois ventrículos, embora raramente possa existir uma ventrículo solitário de morfologia indeterminada (figura 2.4). Quando dois ventrículos estão presentes, são sempre de morfologia direita e esquerda. A morfologia ventricular é melhor determinada através do componente trabecular apical (figura 2.5). Trabeculações grosseiras são características do ventrículo morfologicamente direito, e trabeculações finas do ventrículo morfologicamente esquerdo.

Todos os ventrículos podem possuir componentes de entrada e/ou de saída. Ventrículos normais possuem um de cada. O melhor guia para se distinguir o ventrículo morfologicamente direito que só tem via de entrada é a presença de cordas tendíneas, fixando o aparelho valvar tricuspídeo ao septo. Isto não é observado no ventrículo morfologicamente esquerdo (figura 2.6).

Os troncos arteriais, constituindo o terceiro segmento do coração, são sempre identificados por seu padrão de ramificação. Em corações normais, a aorta dá origem a ramos sistêmicos e coronarianos, enquanto que o tronco pulmonar divide-se em artérias pulmonares direita e esquerda. Isto também é verdadeiro para corações anormais, mas duas outras formas de arranjo podem ser encontradas (figura 2.7). A primeira, o tronco arterial comum, supre diretamente todas as artérias coronárias, sistêmicas e pulmonares. A segunda forma ocorre em corações sem artérias pulmonares centrais intrapericárdicas. Existe uma única grande artéria originando-se do coração, sendo impossível definir se ela é uma aorta ou um tronco comum6 e, portanto, será melhor descrita como tronco arterial solitário.

As características morfológicas de "direita" e "esquerda" são também observadas no resto dos órgãos torácicos e abdominais e, quase sempre, existe uma concordância entre os diferentes órgãos de um mesmo lado (ver abaixo). As características que distinguem os órgãos morfologicamente direitos e esquerdos são mostrados na figura 2.8.

Arranjo Atrial

O primeiro passo na análise seqüencial é determinar o arranjo atrial. Existem quatro possíveis formas de arranjo (figura 2.9).

Arranjo atrial usual (solitus), onde o átrio morfologicamente direito está situado à direita e o o morfologicamente esquerdo à esquerda, é habitualmente encontrado com lateralização normal dos outros órgãos tóracoabdominais, como é visto na figura 2.8. O arranjo "em espelho" (inverso), como esperado, correlaciona-se com inversão da lateralidade dos outros órgãos (figura 2.10).

Os outros padrões de arranjo atrial, nos quais ambos os apêndices são de mesma morfologia, são chamados isomerismos atriais, ou, mais precisamente, isomerismo dos apêndices atriais. Eles estão quase sempre associados a um padrão "misturado" dos órgãos abdominais (a assim chamada heterotaxia). O isomerismo dos brônquios quase sempre se correlaciona corri o isomerismo atrial (figura 2.11), mas os órgãos abdominais mostram variabilidade maior. Na maioria dos casos, a ausência do baço (asplenia) acompanha o isomerismo atrial direito, enquanto que múltiplos baços (figura 2.12) são encontrados em pacientes com isomerismo esquerdo.

Clinicamente, o isomerismo atrial pode ser determinado diretamente a partir do reconhecimento da morfologia dos apêndices ou indiretamente a partir da morfologia brônquica7 ou da localização da aorta e de veia cava inferior no abdome8 (veja Capítulo 4).

Variação na Junção Atrioventricular

Para descrever a junção atrioventricular, deve-se primeiramente determinar como o miocárdio atrial está conectado à massa ventricular. Em seguida, deve-se determinar o padrão das valvas atrioventriculares. Existem dois grupos de conexões atrioventriculares. Nas conexões ditas biventriculares, cada átrio está conectado ao seu próprio ventrículo. Com o arranjo usual ou com a imagem "em espelho "dos átrios, as conexões biventriculares podem ser concordantes (átrio direito conectado ao ventrículo direito e átrio esquerdo ao ventrículo esquerdo) ou discordante (átrio direito ao ventrículo esquerdo e átrio esquerdo ao ventrículo direito, figura 2.13). Quando os apêndices atriais são isoméricos, as conexões biventriculares não podem ser subdivididas dessa forma e são descritas como ambíguas (figura 2.14). Quando existe conexão atrioventricular ambígua a estrutura tridimensional, ou topologia, da massa ventricular deverá ser descrita. Poderá ser um dos dois padrões: topologia de mão direita ou de mão esquerda. Tal padrão pode ser determinado imaginando-se a palma de uma mão colocada sobre a superfície septal do ventrículo morfologicamente direito (figura 2.15).

O segundo grupo de conexões atrioventriculares é a conexão univentricular. Ela é encontrada quando um ventrículo tem uma dupla via de entrada, ou então quando a conexão à direita ou à esquerda está ausente (figura 2.16). Os átrios estão conectados a:

Em corações onde um ventrículo é dominante, o ventrículo rudimentar pode variar sua posição, mas quase sempre ventrículos direitos rudimentares são encontrados ântero-superiormente, enquanto que ventrículos esquerdos rudimentares ocupam uma posição póstero-inferior na massa ventricular (veja Capítulo 7).

Pode haver duas valvas atrioventriculares ou então uma valva única, comum (figura 2.17).

Quando há duas valvas atrioventriculares, uma delas poderá ser estenótica, regurgitante, imperfurada, apresentar inserção de seu aparelho valvar em ambos os lados do septo, ou ainda apresentar cavalgamento (o orifício valvar cavalga o septo, figura 2.18). Quando existe uma valva atrioventricular cavalgando, a morfologia do coração será intermediária entre a conexão atrioventricular biventricular e a univentricular. Categorias intermediárias não se definem. A distinção entre os dois tipos de conexão é arbitrária. Se menos de 50% da valva cavalga o septo, então a conexão é descrita como biventricular. A conexão será univentricular apenas se mais de 50% de ambas as valvas se abrem dentro de um mesmo ventrículo (a regra dos 50%9). Valvas comuns podem também ser estenóticas ou insuficientes. Elas podem ainda ser parcialmente imperfuradas. Usualmente (mas nem sempre) elas cavalgam e têm seu aparelho tensor inserido dos dois lados do septo. Valvas solitárias (aquelas encontradas com ausência de uma conexão atrioventricular) podem também ser insuficientes, cavalgar ou apresentar inserção contralateral de cordas. Cavalgamento de uma valva atrioventricular solitária é um conceito importante (figura 2.19), uma vez que produz uma conexão uniatrial mas biventricular.10

A relação espacial entre os ventrículos é independente da conexão atrioventricular. Quando necessário, nós descrevemos a posição do ventrículo direito relativamente ao esquerdo, em termos de anterior, posterior, superior, inferior, à direita ou à esquerda.

Variação na Junção Ventriculoarterial

Aqui, novamente, a forma pela qual os troncos arteriais estão conectados à massa ventricular deve ser analisada separadamente da morfologia das valvas arteriais. A morfologia das estruturas infundibulares deve também ser descrita, assim como as relações das valvas entre si, e as relações espaciais entre os troncos arteriais. São as conexões ventriculoarteriais, todavia, que são mais importantes. Quando há dois troncos arteriais presentes, eles podem estar conectados à massa ventricular de forma concordante ou discordante (figura 2.20). Alternativamente, ambas as artérias podem emergir de um mesmo ventrículo, que poderá ser o direito, esquerdo, ou de morfologia indeterminada (figura 2.21). Cavalgamentos de valvas arteriais são assinalados ao ventrículo suportando a maior parte de sua circunferência (regra dos 50%), evitando a necessidade de categorias intermediárias. Quando apenas um tronco arterial está conectado à massa arterial, então existe via de saída única do coração (figura 2.22). Tal via de saída única dá-se usualmente através de um tronco comum guarnecido por uma valva arterial comum. Pode ainda se dar através de um tronco solitário, ou mesmo através de uma aorta ou tronco pulmonar, quando é impossível localizar a origem do outro tronco, atrésico.

Malformações Associadas

A maior parte deste atlas estará envolvida com a descrição de características morfológicas e sua imagens clínicas correspondentes, das diversas lesões encontradas dentro do coração. Tais lesões serão descritas começando pelas grandes veias, depois os átrios e os ventrículos, e finalmente as grandes artérias. Atenção particular será dada às lesões que afetam as junções atrioventricular e ventriculoarterial.

Posição do Coração

Até agora, descrevemos a posição dos átrios e demos alguns detalhes de posições anormais de órgãos tóracoabdominais, mas não prestamos atenção a uma posição anormal do coração em si. Isto porque uma posição cardíaca não usual não é uma anormalidade da morfologia cardíaca, embora as duas possam coexistir. Um coração normal pode ser mal posicionado. A posição cardíaca deveria ser descrita separadamente da morfologia cardíaca. O coração pode, raramente, ocupar uma posição extratorácica (a chamada ectopia). Mais comumente, ele está localizado no hemitórax direito ao invés de no esquerdo, ou ainda está na linha média. Tal posição à direita ou à esquerda é independente da localização do ápice (ponta) cardíaco, o qual pode também estar à direita, à esquerda ou ainda direcionado à linha mediana (figura 2.23).

Referências Bibliográficas

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2. Tynan MJ, Becker AE, Macartney FJ, Quero-Jimenez M, Shinebourne EA, Anderson RH. Nomenclature and classification of congenital heart disease. Br Heart 1979; 41:544-53.

3. Anderson RH, Becker AE, Freedom RM, Macartney FJ, Quero-Jimenez M, Shinebourne EA, Wilkinson JL, Tynan MJ. Sequential segmental analysis of congenital heart disease. Pediatr Cardiol 1984; 5:281-8.

4. Van Praagh R, David 1, Wright GB, Van Praagh S, Large RV plus small LV is not single RV. Circulation 1980; 61:1057-58.

5. Sharma S, Devine W, Anderson RH, Zuberbuhler JR. The determination of atrial arrangement by examination of appendage morphology in 1842 heart specimens. Br Heart J 1988; 60:27-31.

6. Anderson RH, Thiene G,. Editorial. Categorization and description of hearts with a common arterial trunk. Eur J Cardiothorac Surg 1989; 3:481-7.

7. Deanfield JE, Leanage R, Stroobant J, Chrispin AR, Taylor JFN, Macartney FJ. Use of high kilovoltage filtered beam radiographs for detection of bronchial situs in infants and young children. Br Heart J 1980; 44:577-83.

8. Huhta JC, Smallhorn JF, Macartney Fj. Two dimensional echocardiographic diagnosis of situs. Br Heart J 1982; 48:97-108.

9. Pacifico AD, Kirklin JM, Bargeron LM, Soto B. Surgical treatment of double outlet left ventricle with an intact ventricular septum. Clinical and autopsy diagnosis and developmental implications. Circulation 1973; 48 (Suppl. III):19-23.

10. Anderson RH, Tynan M. Editorial note: Description of complex forms of atrioventricular valvar atresia. Int J Cardiol 1991; 30:243-7.

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