Introdução
É intenção deste atlas mostrar como técnicas
diagnósticas modernas são capazes de demonstrar os detalhes morfológicos de corações
congenitamente malformados com acurácia comparável à do morfologista que segura o
coração em suas mãos. O reconhecimento daquilo que é anormal requer um perfeito
conhecimento do normal, e esta afirmativa não pode ser mais verdadeira do que para o
estudo dos defeitos cardíacos congênitos. Como será discutido no Capítulo 2, as estruturas cardíacas podem
freqüentemente ser tomadas como anormais simplesmente porque ocupam uma posição não
esperada, ainda que, em termos estritamente anatômicos, elas possam ser consideradas como
"normais". Neste capítulo, portanto, as características dos diversos
componentes do coração normal serão demonstradas, comparando ilustrações dos
caracteres normais com imagens diagnósticas. Tal padrão, comparando a anatomia de
corações necropsiados com imagens diagnósticas, será seguido em todo este atlas.
Câmaras Cardíacas e Troncos Arteriais
É usual descrever o coração em termos de suas câmaras
da "direita" ou da "esquerda". Na verdade, as câmaras
"direitas" são posicionadas mais anteriormente no corpo (figura 1.1), mas é pouco provável que o
hábito de se usar "direita" ou "esquerda" desapareça. No coração
normal será difícil discordar do uso destes termos. Todavia, problemas aparecem em
corações congenitamente malformados, uma vez que as câmaras que deveriam ser
normalmente descritas como "direitas" podem ocupar posição à esquerda, e
vice-versa. É difícil evitar a utilização de "direita" e
"esquerda", quando as câmaras que estão sendo descritas não ocupam essas
localizações. Essa dificuldade é superada nos corações malformados pelo acréscimo do
termo "morfologicamente" ao "direito" ou "esquerdo". Isto
não será necessário ao se descrever o coração normal.
Uma característica importante do coração normal,
todavia, que vale a pena enfatizar neste contexto, é que o eixo longo cardíaco não é
paralelo ao longo eixo do corpo (figura 1.2).
Isso significa que os ventrículos são localizados inferiormente e à esquerda dos
átrios, melhor do que localizá-los como no coração de São Valentino.1 As
relações espaciais das estruturas "direitas" e "esquerdas" do
coração normal são complicadas ainda mais pela "torção" das vias de saída
ventriculares, de tal forma que a aorta, mesmo emergindo do ventrículo esquerdo (e,
portanto, de uma estrutura "esquerda" do coração), está localizada à direita
do tronco pulmonar (figura1.3). De fato, a
localização central da valva aórtica na base do coração (figuras 1.4a, 1.4b) deve ser considerada como
"chave" para interpretar imagens do coração e dos troncos arteriais.
Átrio
Morfologicamente Direito
O átrio direito pode ser anatomicamente dividido em:
componente venoso, vestíbulo, septo e apêndice (figuras 1.5a, 1.5b, 1.5c, 1.5d). O componente venoso recebe as veias
cavas superior e inferior, além do seio coronário na junção com o septo.
Estruturas importantes marcam a junção entre o
componente venoso e o apêndice. A crista terminal corre lateralmente e separa os dois
componentes, e a partir dela originam-se músculos pectíneos em ângulo reto, que correm
no interior do apêndice. Redes fibrosas se ligam à crista ria região de abertura da
veia cava inferior e do seio coronário. São as chamadas valvas venosas, a de Eustáquio
em relação à veia cava e a de Thebesius junto ao seio coronário. A comissura dessas
valvas corre no septo atrial entre o seio coronário e a fossa oval, como uma estrutura
denominada tendão de Todaro (figuras 1.6a,
1.6b). Esta é uma marca importante para a
localização do tecido de condução atrioventricular.2 O apêndice atrial
contém todos os músculos pectíneos, que correm ao redor da junção atrioventricular.
Por sua vez, a junção entre o apêndice e o componente venoso é particularmente ampla.
A superfície septal é composta pelo assoalho da fossa
oval e pelo septo atrioventricular (figuras
1.7a, 1.7b, 1.7c).
O seio coronário se abre dentro do átrio direito acima
do sulco interventricular posterior. O chamado septum secundum não é parte
do verdadeiro septo atrial, mas sim o resultado de pregas das paredes atriais (figuras 1.8a, 1.8b). O vestíbulo atrial tem paredes lisas e
contém as inserções dos folhetos da valva tricúspide.
Átrio
Morfologicamente Esquerdo
O átrio esquerdo, assim como o direito, também apresenta
um componente venoso, superfície septal, vestíbulo e apêndice. O componente venoso, com
paredes lisas, recebe as quatro veias pulmonares (figuras 1.9a, 1.9b, 1.9c, 1.9d).
A superfície septal é particularmente rugosa em sua face
esquerda, sendo constituída pela valva da fossa oval.
Esta, superiormente, sobrepõe-se à prega das paredes
atriais (o septum secundum), de tal forma que, mesmo que ambos não estejam
acolados, não existe fluxo através do septo, uma vez que a pressão atrial esquerda
excede a do átrio direito. De fato, forame oval patente a cateter pode ser encontrado em
até um terço da população normal, mesmo dentro da nona década de vida.3
O vestíbulo do átrio esquerdo suporta os folhetos da
valva mitral e também é liso. Dentro do átrio esquerdo, os músculos pectíneos são
muito menos evidentes, estando restritos ao interior do apêndice, o qual apresenta uma
junção estreita, tubular, com o restante da câmara. Apenas ocasionalmente os músculos
pectíneos se estendem para o interior do átrio, e, diferentemente do que ocorre no
átrio direito, nunca se estendem ao redor da junção atrioventricular. A forma do
apêndice também difere bastante do aspecto do apêndice direito normal (figuras 1.10a, 1.10b, 1.10c, 1.10d), porém é variável em corações
malformados. Como será enfatizado no Capítulo 2,
a morfologia da junção entre os componentes venosos e apêndices é o fator mais
confiável para diferenciação dos átrios morfologicamente direito e esquerdo.4
Ventrículo
Morfologicamente Direito
O ventrículo direito possui via de entrada, porção
trabecular apical e via de saída, a qual passa de uma posição inferior e à direita
para superior e à esquerda dentro da massa ventricular (figuras 1.11a, 1.11b, 1.11c, 1.11d).
O componente de entrada circunda e suporta as cúspides e
o aparelho tensor da valva tricúspide. As cúspides ocupam posição septal,
ântero-superior e inferior (mural) dentro da junção atrioventricular (figuras 1.12a, 1.12b).
A característica mais marcante da valva tricúspide é a
presença de cordas tendíneas inserindo sua cúspide septal no septo ventricular. O
componente apical trabecular do ventrículo direito tem, caracteristicamente,
trabeculações grosseiras e, conforme descrito no Capítulo
2, esse é o melhor critério para a identificação ventricular naquelas câmaras que
não possuem via de entrada ou valva tricúspide.
Os folhetos da valva pulmonar são suportados por um
infundíbulo completamente muscular, cuja parede posterior é separada da aorta por um
espaço extracardíaco (figuras 1.13a, 1.13b). É importante enfatizar este ponto,
visto que anteriormente tínhamos afirmado que este componente do infundíbulo era uma
estrutura septal.5 Na realidade, apenas uma pequena parte do septo entre os
braços da proeminente trabécula septal (a chamada trabécula septomarginal) (figuras 1.14a, 1.14b) é verdadeiramente um septo muscular
de saída. Neste contexto, deve-se observar, também, que a crista supraventricular é uma
dobra no teto do ventrículo (figuras 1.15a,
1.15b, 1.15c). Outras trabéculas, as
septoparietais, correm ao redor da margem parietal do infundíbulo.
No coração normal o septo tem apenas componentes
muscular e membranoso, sendo o último de pequeno tamanho. Deve-se notar que, em virtude
da localização central da aorta, o septo muscular separa amplamente a via de entrada do
ventrículo direito da via de saída do esquerdo (figuras1.16a, 1.16b).
Ventrículo Morfologicamente Esquerdo
O ventrículo esquerdo também apresenta via de entrada,
porção trabecular e via de saída (figuras
1.17a, 1.17b, 1.17c, 1.17d). A via de entrada contém e circunda a
valva mitral. Esta apresenta as cúspides aórtica e mural, assim denominadas em virtude
da sua relação com os folhetos da valva aórtica e com a pare
de da junção atrioventricular, respectivamente (figuras 1.18a, 1.18b, 1.18c, 1.18d). Entre as duas cúspides encontram-se
as comissuras ântero-lateral e póstero-medial, cada uma delas suportada por um grupo de
músculos papilares. A principal característica da valva mitral é que ela não apresenta
inserções cordais no septo ventricular.
A porção apical do ventrículo tem trabéculas finas e
cruzadas, e a superfície septal é lisa. Os folhetos da valva aórtica são suportados em
linhas semilunares, mas, diferentemente da valva pulmonar, estão inseridos em parte a
estruturas fibrosas (as cúspide da valva mitral e o septo membranoso), e em parte às
paredes musculares do ventrículo (figuras1.19a,
1.19b).
Aorta
A aorta origina-se do ponto central da base do coração e
se curva para cima para o arco aórtico, o qual dá origem aos vasos braquiocefálicos (figuras 1.20a, 1.20b).
Os três seios de Valsalva suportam os folhetos da valva
aórtica, sendo que dois deles dão origem às artérias coronárias. Quase sem exceção,
tais seios são adjacentes ao tronco pulmonar (figuras
1.21a, 1.21b, 1.21c). Em virtude de tal relação espacial,
os seios podem ser chamados "seios coronarianos" ou, mais universalmente, seios
adjacentes da mão direita ou da mão esquerda, se considerado um observador posicionado
no seio não adjacente olhando em direção ao tronco pulmonar (figura 1.22).
Tronco Pulmonar
O tronco pulmonar emerge do infundíbulo pulmonar, onde
seus seios suportam os folhetos da valva pulmonar, indo até a bifurcação, onde se
originam as artérias pulmonares direita e esquerda (figuras 1.23a, 1.23b). Dois dos seios valvares são
adjacentes à aorta, enquanto que o terceiro é não
adjacente (veja figuras 1.21a, 1.21b, 1.21c). Na circulação fetal, o canal
arterial se estende a partir do tronco pulmonar até a aorta descendente, servindo também
para demarcar o istmo aórtico entre a emergência da artéria subclávia esquerda e a
inserção aórtica do canal (figura 1.24).
Após o nascimento, o canal se fecha, tornando-se o ligamento arterial.
Referências
Bibliográficas
1 . Anderson RH, Becker AE. Cardiac. Anatomy. An
Integrated Text and colour Atlas. London: Gower Medical Publishing, 1980.
2. Ho SY, Anderson RH. Conduction tissue in congenital
heart surgery. World J Surg 1985; 9:550-567.
3. Hagen PT, Scholz DG, Edwards WD. Incidence and size of
patient foramen ovale during the first 10 decades of life: an autopsy study of 965 normal
hearts. Proc Staff Meet Mayo Clin 1994; 59:1489-1494.
4. Sharma S, Devine W, Anderson RH, Zuberbuhler R. The
determination of atrial arrangement by examination of appendage morphology in 1842 heart
specimens. Br Heart J 1988; 60:227-231.
5. Soto B, Becker AE, Moulaert AJ, Lie, JT, Andersen RH.
Classification of ventricular septal defects.Br Heart J 1980; 43:332-343.
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