Ira H. Gessner
A insuficiência cardíaca é uma síndrome clínica
caracterizada pelo desempenho cardíaco inadequado sob condições de trabalho existentes.
Em outras palavras, o coração mostra-se incapaz de bombear sangue suficiente para suprir
as necessidades metabólicas do corpo. A condição pode ser avaliada em termos simples,
seja como uma anormalidade primária do músculo cardíaco de modo que o coração não
possa enfrentar até mesmo uma carga razoável de trabalho (por exemplo, uma
cardiomiopatia dilatada primária) ou uma carga excessiva de trabalho que não possa ser
cumprida mesmo por um miocárdio intrinsecamente normal (por exemplo, um grande defeito
ventricular septal). Ela pode até mesmo resultar de uma combinação das duas
situações. O coração e o corpo tentam se adaptar a esse conjunto de circunstâncias
por diversos meios, inclusive dilatação e hipertrofia cardíacas. A congestão venosa
sistêmica e pulmonar se instala, produzindo os sintomas e sinais clínicos primários
que, em conglomeração, são intitulados insuficiência cardíaca congestiva.
Este capítulo examina os conceitos fisiológicos gerais
da insuficiência cardíaca, apresentação clínica, princípios de tratamento e
etiologia, nessa ordem. Algumas anormalidades cardíacas específicas que produzem
insuficiência cardíaca congestiva são examinadas como entidades clínicas. Finalmente,
classes específicas de drogas são analisadas, e tabelas de dosagens para agentes mais
comumente usados são fornecidas. Os problemas com que se defronta o pediatra são o
reconhecimento da presença da insuficiência cardíaca, a avaliação e o tratamento
iniciais e a monitorização do status do paciente com insuficiência cardíaca
crônica.
Fisiologia de Insuficiência Cardíaca
É importante ter uma compreensão geral da base
fisiológica da insuficiência cardíaca. Este conhecimento pode ajudar a compreender os
diversos condicionamentos clínicos em que a insuficiência cardíaca é observada em
lactentes e crianças e pode tornar medidas terapêuticas mais significativas. A
apresentação detalhada deste assunto complexo poderia ser excessiva para o corpo deste
livro. O leitor interessado pode examinar capítulos apropriados em diversos livros de
referência1-3.
O problema inicial que ocorre na insuficiência cardíaca
é o débito sistêmico inadequado para atender às demandas metabólicas do corpo. O
coração pode realmente estar bombeando uma quantidade total excessiva de sangue, mas o
montante que alcaça o corpo não é suficiente para as demandas metabólicas. Essa
situação ocorre em um lactente com um grande shunt da esquerda para a direita
(por exemplo, um grande defeito septal ventricular). Neste caso, o músculo cardíaco não
é a causa primeira do problema. A incapacidade do miocárdio para funcionar, por outro
lado, ou a insuficiência primária de bombeamento, resulta em baixo débito cardíaco.
O débito cardíaco é controlado por vários fatores: (1)
volume de enchimento ventricular, ou pré-carga; (2) força que age sobre o músculo
ventricular durante a sístole, ou pós-carga; (3) estado contratilidade ventricular; e
(4) freqüência cardíaca. Dois estados de insuficiência cardíaca já foram sugeridos,
e eles descrevem a maioria das insuficiências cardíacas clínicas em pacientes
pediátricos. A chamada insuficiência de alto débito origina-se de condições que
produzem excessiva carga de volume (como, por exemplo, no caso de grande defeito
ventricular septal ou grave regurgitação de válvula atrioventricular). As câmaras
afetadas estão dilatadas e a pressão diastólica final ventricular (pressão de
enchimento) está elevada. Medidas da contratilidade miocárdica podem estar razoavelmente
normais, e a fração de ejeção pode estar aumentada4. As condições que
afetam a perfusão sistêmica, tais como a insuficiência primária de bombeamento e a
absorção cardíaca, também demonstram pressão de enchimento ventricular elevada, mas a
contratilidade ventricular está diminuída e a perfusão sistêmica está má.
A presença de uma ou outra das demandas hemodinâmicas
excessivas, uma anormalidade miocárdica primária, ou de ambas, resulta em várias
respostas de adaptação. As de maior importância são (1) o mecanismo Frank-Starling,
que estabelece que um aumento na pré-carga (volume diastólico final ventricular) importa
aumento do volume de ejeção; (2) hipertrofia miocárdica, algumas vezes com dilatação
ventricular; e (3) eventos adrenérgicos ocorridos pela liberação aumentada de
catecolaminas. Cada uma dessas áreas é brevemente discutida seguida de alguns mecanismos
adaptativos adicionais.
Um aumento no volume ventricular diastólico final resulta
em débito sistólico aumentado, embora a fração de ejeção possa decrescer. Por
exemplo, um ventrículo com um aumento de 30 por cento no volume diastólico final (ou
seja, de 100 ml a 130 ml) pode decrescer sua fração de ejeção de 60 por cento a 50 por
cento e ainda aumentar seu débito cardíaco de 60 ml para 65 ml. Manter a pressão
ventricular sistólica, entretanto, requer um aumento do esforço da parede e na demanda
miocárdica de oxigênio. Necessário notar que o coração do recém-nascido possui menos
reserva diastólica do que o coração do adulto e tem menor resposta às variações de
condições, ambos fatores limitantes à sua adaptabilidade.
A hipertrofia miocárdica desenvolve um mecanismo de
adaptação para manter o esforço sistólico da parede dentro de limites normais.5,6
Estudos em pacientes adultos com insuficiência compensada do coração esquerdo em
virtude seja de sobrecarga de pressão seja de sobrecarga de volume demonstram que o
esforço sistólico ventricular esquerdo, a pressão diastólica final e a massa estão
aumentados de forma aproximadamente igual em ambos os grupos.7 A geometria ventricular
(espessura da parede e raios da câmara) muda de modo a manter o esforço sistólico
dentro de limites normais. A hipertrofia miocárdica é um importante mecanismo
compensatório para manter o esvaziamento sistólico do ventrículo sobrecarregado, mas
como resultado pode haver interferência com a capacidade do ventrículo em inflar; a
conseqüência pode ser uma disfunção diastólica. Insuficiência sistólica e
diastólica são conceitos importantes e serão examinados adiante.
A insuficiência cardíaca, seja devida à sobrecarga
ventricular ou disfunção miocárdica, ativa o sistema nervoso simpático. Catecolaminas
dos terminais sinápticos estimulam a freqüência cardíaca à contratilidade e regulam o
tônus vascular, aumentando assim o débito cardíaco e mantendo pressão sangüínea
satisfatória. Um decréscimo na perfusão renal estimula a produção de renina, que por
sua vez provoca a produção de angiotensina II e aldosterona, levando à vasoconstrição
sistêmica e à retenção renal de sal e água. Esta alteração provoca aumento do
volume intravascular, o que, pelo mecanismo Frank-Starling, inicialmente melhora a
contratilidade e o débito cardíacos. Os efeitos indesejáveis dessas respostas
neurohumorais incluem congestão pulmonar e sistêmica, aumento do esforço da parede e
maior exigência de energia miocárdica.
Outras conseqüências de adaptação da insuficiência
cardíaca podem ser mencionadas. A insuficiência cardíaca causa um incremento de
2,3-difosfoglicerato resultando em um desvio para a direita da curva de dissociação
oxigênio-hemoglobina8 (vide Fig. 5-1).
Por este mecanismo o depósito de oxigênio nos tecidos é facilitado, alargando a
diferença do oxigênio arteriovenoso. O reptídeo natriurético atrial (ANP) é liberado
da parede atrial em resposta ao esforço do átrio. O ANP promove a perda urinária de
sódio e água. Como vasodilatador, reduz a taquicardia pela alteração da função
baroreceptora.9 No caso da insuficiência cardíaca crônica o ANP é também sintetizado
nos ventrículos.10
A insuficiência cardíaca pode ser considerada, como o
fez Parmley, como resultado final de uma série de alterações hemodinâmicas e de
mecanismos compensatórios intrínsecos.11 Esses mecanismos compensatórios
são inicialmente benéficos, mas com freqüência excedem os limites de melhora,
ensejando efeitos deletéricos. Tais resultados nocivos são aqueles que detectamos
clinicamente como sintomas e sinais de insuficiência cardíaca congestiva. O Quadro 7-1 relaciona as alterações
hemodinâmicas que são comuns na insuficiência cardíaca. Pacientes com insuficiência
cardíaca devida primariamente a doença miocárdica mais do que a sobrecarga excessiva
poderiam também apresentar pressão sangüínea diminuída e fração de ejeção
reduzida.
Os mecanismos compensatórios estão relacionados no Quadro 7-2. Um aumento da freqüência cardíaca,
uso do mecanismo Frank-Starling e os efeitos benéficos das catecolaminas na
contratilidade miocárdica dão eventualmente lugar à pressão e ao volume ventricular
diastólico final aumentados como também ao aumento da resistência vascular sistêmica,
à medida que o sistema é sobrecarregado. A hipertrofia miocárdica se densenvolve
rapidamente e inicialmente é proveitoso, embora enventualmente a hipertrofia crônica
leve à redução da contratilidade.
Se o resultado final dessas interações supera os
mecanismos compensatórios, a insuficiência cardíaca se instala, e, se não interrompida
por via terapêutica, tende a se autoperpetuar. A compensação para a função
ventricular diminuída e para o débito sangüíneo sistêmico por um aumento de
resistência vascular sistêmica se acresce sobre a carga do coração. O sistema
renina-angiotensina provoca rentenção de sal e água e vasoconstrição sistêmica,
redundando em excessivo volume intravascular e assim induzindo à acumulação de fluidos
nos tecidos. A terapia médica na insuficiência cardíaca congestiva é direcionada,
conseqüentemente, ao esforço dos efeitos compensatórios benéficos e à neutralização
dos efeitos danosos.
Disfunção Sistólica e Diastólica
A disfunção sistólica, caracterizada por um ventrículo
esquerdo dilatado com reduzida fração de ejeção, é a síndrome de insuficiência
cardíaca mais comum. A disfunção diastólica é caracterizada pelo enchimento
ventricular restrito com preservação da fração de ejeção. Reconhece-se atualmente
que a disfunção diastólica é também uma síndrome de insuficiência cardíaca comum,
embora se deva menos freqüentemente a deficiências cardíacas congênitas do que a
doença cardíaca adquirida. Um exemplo típico de disfunção diastólica é a
cardiomiopatia hipertrófica, na qual existe acentuada hipertrofia ventricular, cavidade
ventricular esquerda reduzida e fração de ejeção incrementada. A hipertrofia,
entretanto, é uma resposta comum na insuficiência cardíaca por qualquer causa, e,
conseqüentemente, um componente da disfunção diastólica ocorre em quase todos os
pacientes com disfunção sistólica. A complacência ventricular (relação entre a
tensão da parede e o volume da câmara) diminui com a hipertrofia ventricular.12
À medida que o volume também aumenta, a pressão ventricular diastólica também
aumenta, causando pressões atrial esquerda e venosa pulmonar mais elevadas e promovendo
posterior congestão pulmonar.
O ventrículo do recém-nascido tem função diastólica
decrescida em comparação com o ventrículo do adulto.13 Essa característica
pode fazer com que o recém-nascido seja mais suscetível à insuficiência cardíaca.
O enchimento diastólico do ventrículo é também
limitado pela taquicardia e pelo volume sistólico final, que pode sobrevir pela
deficiência da bomba. Nota-se que a interação da função ventricular sistólica e
diastólica está presente em virtualmente todos os pacientes com insuficiência
cardíaca.
Aspectos Clínicos
História
No recém-nascido a história é raramente útil para
o diagnóstico de insuficiência cardíaca, já que a sua apresentação é usualmente
aguda e severa, como se analisa no Cap. 6.
Entretanto, o conhecimento de que o parto foi penoso ou de que a mãe é diabética pode
ser importante. O lactente com insuficiência cardíaca tem uma história que reflete
predominantemente dificuldades de amamentação. Os pais relatam que o lactente parece ter
fome e suga vigorosamente, mas tem dificuldades em face da respiração acelerada e parece
cansar-se rapidamente. Descansa com freqüência, prolongando a amamentação, e adormece,
então, para despertar após um intervalo mais curto do que o normal e repetir todo o
processo. O resultado é a absorção calórica inadequada e, em conseqüência, pequeno
ganho de peso. Tal situação cria ansiedade e frustração para a mãe, aumentando a
dificuldade de amamentação. Sudorese excessiva e sono durante a amamentação comuns.
Sibilos e tosse não produtiva são freqüentemente
notados em lactentes com insuficiência cardíaca, particialrmente naqueles com um átrio
esquerdo aumentado e pressão atrial esquerda elevada, ou seja, condições associadas à
deficiência ventricular esquerda. Esta deficiência conduz ao aumento da pressão atrial
esquerda e da pressão venosa pulmonar, que conduzem edema pulmonar intersticial e pequena
compressão do ar, resultando em respiração sibilante. A criança com insuficiência
cardíaca congestiva fornece uma história de reduzida tolerância ao exercício, fadiga,
apetite diminuído e dificuldades respiratórias, tais como a freqüência rápida e o
desconforto ao estar deitada.
O ataque agudo de insuficiência cardíaca na criança,
como pode acontecer na doença cardíaca reumática aguda, na miocardite viral ou na
endocardite bacteriana, tem aspectos históricos pertinentes à etiologia discutida nos capítulos 10, 12 e 15.
O surgimento bastante abrupto de sintomas respiratórios, tais como ortopnéia, tosse,
fadiga e evidência de acumulação de fluidos pode ser reportado.
Lactentes e crianças com insuficiência cardíaca
crônica que estejam sob tratamento médico podem desenvolver sintomas de agravamento da
moléstia quando afetados por uma doença infecciosa aguda. Isto é particularmente
verdadeiro para as infecções respiratórias, às quais esses pacientes são
especialmente suscetíveis.
Exame Físico
Os destaques da insuficiência cardíaca congestiva ao
exame físico são taquipnéia, taquicardia, cardiomegalia e hepatomegalia. Esse achados
são tão comuns que a ausência de qualquer um deles demanda explicação sempre que um
diagnóstico de insuficiência cardíaca congestiva seja feito por outros meios.
O lactente com insuficiência cardíaca congestiva respira
aceleradamente; e se houver congestão venosa pulmonar significativa pode demonstrar
batimento das asas do nariz, retrações intercostais e um gemido expiratório. Este
último é uma tentativa do lactente para criar pressão final expiratória positiva como
o médico poderia querer fazer através da ventilação mecânica. Estertores são
raramente ouvidos. A cianose é poucas vezes aparente, embora o infante possa parecer
pálido, e as extremidades frias e mosqueadas, se a perfusão periférica estiver má. Os
pulsos arteriais estão reduzidos em amplitude se o fluxo de sangue sistêmico tiver
decrescido. Eles podem parecer aumentados em amplitude em função do volume do débito
sistólico ventricular esquerdo elevado em um paciente com um grande defeito septal
ventricular em que a insuficiência não seja severa. O edema periférico não ocorre,
embora a inchação das pálpebras possa ser notada. A freqüência cardíaca está
elevada e tende a se fixar em consonância com a respiração. A ausculta cardíaca
reflete a particular doença ou defeito cardíaco. Os sons diastólicos, sejam S3 e S4 ou
um somatório do som S3-S4, estão presentes. A ausência de todo o som diastólico seria
inusitada em um lactente com insuficiência cardíaca.
O aumento do fígado ocorre em todos os lactentes com
insuficiência cardíaca se a causa for excessivo volume de carga ou função miocárdica
inadequada. É importante distinguir entre o fígado de tamanho normal que está deslocado
para baixo no abdômen por pulmões hiperinflados e um fígado que esteja engorgitado pela
congestão venosa. O fígado normal tem a borda suave e bem marcada, e sua massa pode ser
empurrada com leve pressão de baixo para cima. O fígado dilatado tem uma borda firme e
arredondada e não pode ser empurrado por mais de 1 a 2 cm.
A evidência da insuficiência cardíaca na criança é
similar a essa que acabamos de examinar. A criança pode ter veias dilatadas no pescoço e
é propensa a ter estertores. A consistência macia do fígado pode estar aparente e edema
periférico pode ocorrer.
Exames Laboratoriais
A radiografia do tórax demonstra a cardiomegalia, com
raras exceções. Em todos os pacientes com insuficiência cardíaca é normal. Se o
coração está de todo dilatado, sua forma pode ser anormal. A vascularização pulmonar
(arterial, venosa ou ambas) é anormal; e as anormalidades do parênquima pulmonar, tais
como atelectasia difusa ou infiltrados são comuns. Pode haver líquido cervical e
hiperinflação dos pulmões; o fluido pleural é raramente visto na criança. O padrão
do edema pulmonar pode ser visto com insuficiência cardíaca esquerda severa.
Um eletrocardiograma é útil para avaliar um lactente ou
criança com suspeita de insuficiência cardíaca congestiva. Se a insuficiência estiver
presente, o eletrocardiograma não é normal. Além de revelar o alargamento da câmara, o
eletrocardiograma pode sugerir doença miocárdica ou doença pericárdica.
A ecocardiografia é vital para a avaliação de um
paciente pediátrico com insuficiência cardíaca congestiva; mas como mencionado em algum
ponto (veja Caps. 4 e 8), a ecocardiografia não é parte da
responsabilidade de avaliação do médico pediátra. Há uma exceção a essa afirmativa:
o lactente em quem há suspeita de pericardite purulenta aguda com tamponamento iminente
(examinado mais adiante neste capítulo).
Exames adicionais de laboratório podem ser proveitosos
para a avaliação inicial de um lactente ou criança com insuficiência cardíaca
congestiva, particularmente se o paciente se encontra instável. Gasometria, pH e
determinação do ácido láctico são importantes, como se viu no Cap. 6. O soro com eletrólitos ajuda a tratar o
paciente com insuficiência crônica, em particular aquele que esteja recebendo terapia
diurética. A glicemia deve ser medida em todos os lactentes com insuficiência cardíaca,
uma vez que uma hipoglicemia não identificada pode ter efeitos devastadores. O cálcio
sérico deve ser também testado no neonato ou no lactente. A hipocalcemia pode ser a
chave para a Síndrome de DiGeorge ou para a diabetes na mãe. O tratamento da
insuficiência cardíaca congestiva pode ser impedido se o cálcio se encontrar baixo.
Hemoglobina, hematócrito e leucograma também podem fornecer informações úteis. A
anemia agrava a insuficiência cardíaca, e qualquer que seja sua etiologia, a
insuficiência pode causar leucocitose. A urinálise pode demonstrar albuminúria e
hematúria microscópicas. O volume total de urina se reduz na insuficiência cardíaca e
a gravidade específica da urina é alta.
Princípios
da Conduta e Etiologia da Insuficiência Cardíaca Congestiva em Lactentes e Crianças
A insuficiência cardíaca congestiva tem muitas causas na
faixa de idade pediátrica, mas todas têm uma das duas trilhas finais comuns:
insuficiência miocárdica ou demandas excessivas de trabalho. Moléstias ou defeitos
específicos variam com a idade do paciente e são aqui apresentadas na forma devida. Os
princípios de tratamento pertinentes à terapia inicial pelo médico pediatra são
examinados simultaneamente com a etiologia da insuficiência cardíaca congestiva
ocorrendo com o feto, na primeira semana de vida, no lactente e na criança ou no
adolescente. Esses pacientes devem ser transferidos para um centro cardiopediátrico de
cuidados terciários. A sobrevivência, especialmente do lactente, pode depender do
tratamento de emergência bem-sucedido e da pronta transferência.
Insuficiência Cardíaca no Feto
A insuficiência cardíaca pode ocorrer e ocorre no feto.14
Ocorre também, sem dúvida, no embrião, caso em que a morte e o aborto espontâneo são
provavelmente o resultado. Métodos para reconhecer e tratar a insuficiência cardíaca no
feto já existem, e o pediatra deve estar ciente disso. O Quadro 7-3 relaciona exemplos das causas de
insuficiência cardíaca congestiva no feto. Lembre-se que a circulação fetal é um
circuito paralelo. Ambos os lados do coração enviam o seu volume sangüíneo à aorta, o
lado direito via o ductos arteriosus. É possível, em conseqüência, que qualquer
dos lados esteja faltando ou severamente obstruído. Como resultado, essas anormalidades
ordinariamente não afetam a estabilidade hemodinâmica do feto.
A taquicardia supraventricular conduz à insuficiência
miocárdica no feto se ela persistir da mesma forma como faz no lactente (ver cap. 11). O obstetra pode reconhecer o
problema pela contagem da freqüência cardíaca fetal (usualmente > 300
batidas/minuto) ou pelo reconhecimento de polihidramnio. A ecocardiografia fetal revela o
diagnóstico. Administração de digitalis à mãe tem sido usada com sucesso para
conveter o feto ao ritmo sinusal normal.15
Para tratamento de um feto com insuficiência cardíaca, o
papel do pediatra é atuar como consultor de obstetra. Se possível, a mãe deve ser
transferida para o parto em uma instalação para gravidez de alto risco, onde a consulta
à cardiopediatria esteja imediatamente disponível.
Insuficiência Cardíaca Durante a Primeira Semana de
Vida
As condições que causam insuficiência cardíaca durante
a primeira semana de vida podem ser divididas naquelas que dependem da desobstrução do ductus
arteriosus para a sobrevivência e aquelas que redundam em insuficiência cardíaca
não obstante o estado ductal (Quadro 7-4).
A etiologia e o tratamento de emergência das condições
que são dependentes da permeabilidade ductal para o fluxo do sangue sistêmico foram
discutidos no Cap. 6. A restauração da
permeabilidade ductal pela administração da prostaglandina venosa E1 é a
única terapia de valor significativo. A obstrução cardíaca direita severa ou completa
se manifesta pela hipoxemia crítica quando o duto fecha, caso em que o lactente sucumbe
à hipoxemia antes que a insuficiência cardíaca se instale.
O Quadro 7-4
relaciona diversas condições que não requerem desobstrução ductal para
sobrevivência. Princípios de tratamento primário são dirigidos para o diagnóstico
específico.
O retorno venoso pulmonar total anômalo para a veia aorta
se manifesta como obstrução venosa pulmonar severa porque a veia pulmonar comum deve
descer através do diafragma, e, ao fazê-lo, se estreita. Ademais, uma vez que o duto
venoso feche, o sangue venoso pulmonar deve seguir com o sangue venoso portal através do
fígado. O resultado é angústia respiratória severa, hipoxemia e insuficiência
cardíaca. Essa condição, entretanto, é uma das poucas em que a insuficiência
cardíaca está associada com o tamanho cardíaco normal na radiografia do tórax. (ver fig. 2-30). Distinguir essa condição de
doença primária do pulmão requer ecocardiografia especializada. Esses pacientes, embora
não dependentes do ductos anteriosus para sobreviver, podem se beneficiar da
manutenção da desobstrução ductal, que permite um shunt da direita para
esquerda do tronco pulmonar para a aorta, melhorando assim o fluxo de sangue sistêmico.
Ventilação mecânica com ar ambiente e alguma pressão positiva expiratória final são
recomendáveis.
Uma malformação arteriovenosa cerebral no recém-nascido
pode causar grave insuficiência cardíaca. Medidas terapêuticas estão disponíveis mas
dependem, para seu sucesso, de diagnóstico e transferência rápidos. O lactente
apresenta insuficiência cardíaca manifestada pela dilatação das quatro câmaras
cardíacas, sopros não específicos com sons diastólicos proeminentes e hepatomegalia
maciça. A radiografia do tórax mostra cardiomegalia generalizada com proeminência
vascular venosa e arterial, e o eletrocardiograma demonstra aumento generalizado da
câmara. A chave do diagnóstico encontra-se no exame físico. Os pulsos arteriais são
uniformemente fracos em todas as quatro extremidades na presença da insuficiência
cardíaca congestiva, mas estão aumentados em amplitude no pescoço. A ausculta sobre a
cabeça revela um sopro contínuo. A mensagem está clara. O exame físico de um neonato
com insuficiência cardíaca congestiva deve incluir a palpação dos pulsos no pescoço
bem como a ausculta do coração. Não há terapia inicial válida para essa condição a
não ser a ventilação mecânica.
Anormalidades que ocorram na proximidade do nascimento
podem afetar o coração fetal ou neonatal, resultando na síndrome de disfunção
miocárdica. Primeiro descrita por Rowe e Hoffman em 1972,16 esta síndrome
afeta o coração inteiro e é freqüentemente caracterizada pela regurgitação da
válvula tricúspide, como descrita em primeiro lugar pelas Divisões de Cardiologia e
Neonatologia da Universidade da Flórida. A insuficiência cardíaca pode ocorrer com
evidência eletrocardiográfica de isquemia global (outra vez mais aparente no ventrículo
direito) e elevação da creatina fosfoquinase da área miocárdica. A síndrome parece
estar relacionada com significativo stress hipoglicêmico ou hipoxêmico (ou
ambos). A terapia inicial inclui a correção de qualquer hipoglicemia ou hipocalcemia que
possa estar presente. A inspiração suplementar mínima de oxigênio é útil, porém a
ventilação mecânica raramente se faz necessária. O princípio de evitar tratamento
excessivo é importante, uma vez que a condição é autolimitada e quase todos os
pacientes se recuperam sem seqüelas.
A taquicardia supraventricular é examinada no Cap. 11. Um lactente que esteja hemodinamicamente
instável deve receber cardioversão elétrica.
A sépsis não é um diagnóstico cardíaco, mas é tão
importante no diagnóstico diferencial de um neonato criticamente doente, que deve ser
mencionada para que se mantenha vigilância sobre essa possibilidade.
Insuficiência Cardíaca no Lactente
A insuficiência cardíaca começando depois da primeira
ou segunda semana de vida pode se dever a uma severa obstrução do coração esquerdo. A
coartação da aorta é de particular importância. As anormalidades que aumentam o fluxo
sangüíneo pulmonar (shunts da esquerda para a direita ou le-sões mistas, vêm a
ser a causa mais comum da insuficiência cardíaca no lactente). A anormalidades
miocárdicas são responsáveis por um pequeno número desses pacientes (Quadro 7-5).
A coartação severa da aorta manifesta-se pela
insuficiência cardíaca congestiva, que pode começar à altura da primeira semana de
vida mas muitas vezes não é reconhecida até mais adiante, quando se torna mais grave. O
lactente vai para casa no segundo dia de vida parecendo estar bem, mas começa a mostrar
respiração rápida, irritabilidade e dificuldade de amamentação. O reconhecimento de
que esse lactente, que não está "passando bem" e que mostra sintomas vagos,
pode estar com insuficiência cardíaca congestiva é a chave absoluta para o
reconhecimento oportuno de severa coartação da aorta. O exame físico pelo pediatra no
primeiro atendimento é crítico para chegar a esse diagnóstico. O exame físico deve
incluir cuidadoso exame dos pulsos arteriais em todas as quatro extremidades, avaliação
do tamanho do fígado e criteriosa ausculta cardíaca. Os sons diastólicos e a
taquicardia podem estar presentes, mas um sopro cardíaco significativo não é ouvido.
Lembre-se de que uma insuficiência cardíaca severa o bastante para reduzir
substancialmente o fluxo de sangue sistêmico pode obscurecer uma diferença na amplitude
do pulso e na pressão sangüínea entre braços e pernas. Quanto menor o débito
cardíaco, menor é a diferença. Se a pressão sangüínea sistólica no braço direito
é de apenas 60 mm Hg, uma pressão sangüínea sistólica de 50 mm Hg nas pernas pode
representar uma diferença significativa. Uma vez tendo o tratamento de suporte e o fluxo
de sangue sistêmico tenha melhorado, essas pressões devem elevar-se para 100 mm Hg e 60
mm Hg, respectivamente. Tenha em mente que os achados físicos não são absolutos. Eles
devem ser interpretados no contexto do quadro total do paciente. O tratamento inicial do
lactente com insuficiência cardíaca por coartação é orientado para a estabilização
antes da transferência para um centro cardiopediátrico. Se o aparecimento dos sintomas
tiver sido repentino e o lactente estiver nas primeiras semanas de vida, o fechamento
recente do ductus arteriosus deve ter ocorrido, caso em que a administração da
prostaglandina E1 pode ser valiosa. A hipoglicemia deve ser corrigida e um
diurético intravenoso é indicado. Não dê digitalis. O lactente criticamente doente
deve ser assistido com ventilação mecânica e agentes intravenosos, como discutido no Cap. 6. A transferência deve ser diligenciada.
Lesões com shunt da esquerda para a direita causando
insuficiência cardíaca são exemplificadas por um grande defeito septal ventricular, um
defeito do septo atrioventricular (particularmente canal atrioventricular de forma
completa) e um grande ductus arteriosus aberto. O aparecimento de sintomas e sinais de
insuficiência cardíaca nesses pacientes é gradual, começando poucas semanas após o
nascimento à medida que a resistência vascular pulmonar decresce e o fluxo de sangue
pulmonar total aumenta. Pontos importantes dessa história já foram descritos. Os dados
físicos podem ser sutis. A ausculta cardíaca no lactente, seja com um grande e
irrestrito defeito septal ventricular ou com um canal atrioventricular completo sem
regurgitação da válvula atrioventricular, pode revelar apenas sopros no fluxo, sons
diastólicos e acentuação do componente pulmônico de S2. Taquicardia, taquipnéia,
atividade precordial aumentada e hepatomegalia estão habitualmente presentes.
Lesões combinadas são aquelas que manifestam
insuficiência cardíaca devido ao fluxo sangüíneo pulmonar excessivo em adição à
cianose branda causada por mistura intracardíaca de retorno venoso sistêmico e pulmonar
(sem obstrução venosa pulmonar), vários tipos de ventrículo único (sem obstrução
significativa de artéria ou válvula pulmonar), transposição das grandes artérias com
um grande defeito septal ventricular e truncus arteriosus. Se os pais notam a
cianose branda, isto se dá pela constatação de coloração escura perioral, talvez mais
severa com choro prolongado. Os achados físicos refletem os defeitos específicos.
Ausculta cardíaca anormal e hepatomegalia estão uniformemente presentes.
Infecções respiratórias são comuns nesses lactentes,
embora a variação em grau da insuficiência cardíaca possa ser responsável por alguns
sintomas julgados infecciosos. As radiografias de tórax em lactentes com fluxo
sangüíneo pulmonar aumentado estão ilustradas nas Figs. 2-2, 2-27 e 2-28. O eletrocardiograma demonstra
tipicamente as dilatações atrial e ventricular com voltagens QRS significativamente
aumentadas. Pontos específicos do diagnóstico, tais como um eixo frontal superior em um
defeito do septo atrioventricular (Ver Fig. 3-8)
podem ser notados.
O tratamento inicial da insuficiência cardíaca por fluxo
pulmonar excessivo é similar, não obstante o diagnóstico específico. O tratamento em
fase aguda consiste no uso de um agente diurético, em evitar a hipoglicemia e corrigir a
anemia, se grave. A administração de oxigênio umidificado supera as anormalidades de
ventilação-perfusão produzidas pela acumulação de fluido pulmonar intersticial e
alveolar. O lactente com severa insuficiência cardíaca congestiva devido a um shunt
em rede da esquerda para a direita pode ser significativamente ajudado pela ventilação
mecânica com pressão positiva expiratória final; ela reduz o esforço respiratório e
força o fluido pulmonar à circulação.
O tratamento do lactente com insuficiência cardíaca
crônica por excessivo fluxo de sangue pulmonar é um empreendimento conjunto pelo centro
de cardiopediatria e o pediatra. O diagnóstico definitivo e os planos de tratamento devem
ser estabelecidos pelo centro de comunicados ao pediatra e à família do paciente. Uma
insuficiência cardíaca branda a moderada pode ser tratada com digoxina e diuréticos.
Drogas vasodilatadoras podem ser benéficas, particularmente para aqueles pacientes que
têm também uma significativa regurgitação de válvula atrioventricular, como pode
acontecer com alguns defeitos de base endocárdica. A dieta do lactente com insuficiência
cardíaca congestiva crônica é importante. A restrição de sal é difícil, uma vez que
as fórmulas de baixo sódio não foram bem-sucedidas em termos de aceitação pelo
paciente e crescimento adequado. O pediatra encontra-se em posição de responsabilidade
pela monitorização dia a dia da condição do paciente. Doenças infecciosas
intercorrentes devem ser identificadas e apropriadamente tratadas. O crescimento adequado
deverá estar acontecendo; se não estiver, medidas serão tomadas para assegurar que
aconteça, como, por exemplo, de fortalecimento através do aumento das calorias por grama
e pela adição de carboidratos e gorduras. Se o crescimento inadequado persistir, o
centro de cardiopediatria deve ser estimulado a adotar uma ação mais agressiva para
modificar o problema subjacente, se for possível. O pediatra está também na posição
de supervisionar a tolerância do paciente. Esse médico conhece a família e deve saber
se o envolvimento e o cuidado dos pais são adequados ou se problemas sociais e
financeiros estão interferindo no tratamento apropriado do paciente.
O tratamento do lactente com anormalidades miocárdicas
foi discutido em outro ponto. A taquicardia supraventricular foi examinada no Cap. 11 e no começo deste capítulo. Miocardite,
cardiomiopatia e artéria coronária esquerda anômala foram revistas no Cap. 12. A doença de Kawasaki, uma causa rara de
insuficiência cardíaca congestiva, é analisada no Cap. 13. A endocardite bacteriana é quase
desconhecida no lactente que não tenha sofrido cirurgia cardíaca ou instrumentação
intravascular crônica.
A causa da insuficiência cardíaca aguda no lactente mais
velho, que exige esforços combinados do pediatra e do especialista, é a pericardite
purulenta aguda. Um lactente que antes estava bem apresenta uma súbita angústia
respiratória severa, incapacidade de alimentar-se e febre. Sintomas de infecção
respiratória superior podem ter sido notados durante um ou dois dias. O exame físico
demonstra sinais de insuficiência cardíaca com algum aumento do fígado. Os tons do
coração são fracos. Ocorre marcada taquicardia, desproporcional ao grau da febre ou
insuficiência cardíaca, e essa desproporção pode ser a chave para o diagnóstico. A
radiografia de tórax demonstra uma grande silhueta cardíaca e evidência de pneumonite.
O eletrocardiograma pode mostrar voltagens diminuídas em todas as derivações e
elevação em ST. O aparecimento de uma doença aguda febril severa com sugestões de
insuficiência cardíaca em um lactente conhecido como normal anteriormente deve alertar o
médico para a possibilidade desse diagnóstico. A rápida confirmação do diagnóstico e
o tratamento imediato são essenciais, de vez que o tamponamento pericárdico e a morte
são ameaças distintas. Se o lactente parece hemodinamicamente instável (isto é, com
sinais de baixo débito cardíaco ver Cap.
6), poderá não haver tempo para transferência para um centro de cuidados
terciários. Uma ecocardiografia de qualquer fonte deve ser realizada sem demora. Uma
significativa efusão pericárdia deve ser prontamente identificável, caso em que a
drenagem de emergência está indicada. A simples aspiração por agulha poderá não ser
bem-sucedida na presença de pus espesso. A remoção de 20 a 30 ml de fluido (pus, neste
caso) pode salvar a vida. Deve-se fazer a cultura do fluido, iniciar a antibioticoterapia
(de preferência por via intravenosa) e o paciente deve ser transferido com emergência
para um centro de cuidados terciários onde a drenagem aberta do pericárdio possa ser
completada. Não faça nada que possa descrever a freqüência cardíaca (por exemplo,
administração de digoxina) ou amentar o volume intravascular (administração de fluido
intravenoso para "hipotensão"), pois qualquer um dos dois pode precipitar
agudamente o tamponamento fatal. Poucos eventos no campo da cardiologia pediátrica são
tão dramáticos quanto este.
Insuficiência Cardíaca na Criança e no Adolescente
Insuficiência cardíaca apresentada pela primeira vez na
criança mais velha ou no adolescente implica doença cardíaca como a etiologia mais
provável. Complicações de doença cardíaca congênita, ocorrendo naturalmente no
paciente ou como resultado de cirurgia, são também causas importantes (Quadro 7-6). A febre reumática é discutida no Cap. 10, miocardite e cardiomiopatia no Cap. 12 e endocardite bacteriana no Cap. 15. A doença de Lyme é uma causa rara de
miocardite.
Doenças neuromusculares tais como a ataxia de Friedreich
e a distrofia muscular podem afetar o coração, causando a insuficiência cardíaca
congestiva. Ao tempo que o coração esteja significativamente envolvido, o processo da
doença primária se encontra há muito manifesto. A terapia do câncer com drogas
cardiotóxicas como a doxorubicina e a daunorubicina constitui agora uma causa relevante
de cardiomiopatia na criança, para a qual o transplante cardíaco é o único tratamento
eficiente (ver Cap. 18). A insuficiência
cardíaca pode aparecer anos após o término da terapia de câncer; não há certeza de
que exista algum limite de tempo após o qual a deterioração miocárdica não mais
ocorra. Manifestações cardíacas da síndrome de imunodeficiência adquirida não são
vistas com freqüência na faixa de idade pediátrica. Miocardite não tem sido relatada
com freqüência, e a endocardite é rara exceto nos usuários de drogas intravenosas.
O abuso de substâncias, como álcool e cocaína, podem
causar deterioração miocárdica, embora seja causa rara especialmente nos jovens.
Cardiomiopatia álcool-induzida leva ordinariamente anos para se desenvolver. É muito
mais provável que a cocaína possa conduzir à morte súbita ou infarto do miocárdio do
que a uma cardiomiopatia crônica no indivíduo jovem.
O clínico deve estar alerta para alterações em
pacientes que sofreram cirurgia para doença cardíaca complexa (ver Caps. 18 e 19). Pacientes que tenham correção tipo Fontan
para algum caso de ventrículo único nunca devem ser considerados estáveis.
Complicações, inclusive insuficiência cardíaca congestiva por deterioração
miocárdica, são indefinidamente possíveis. Pacientes cuja cirurgia incluiu um
transplante, tal como correção de uma tetralogia de Fallot complexa e truncus
anteriosus, bem como aqueles com válvulas protéticas devem também ser considerados
em risco pelo resto de suas vidas.
Os princípios de tratamento desses pacientes pelo
pediatra não diferem substancialmente daqueles descritos para o lactente. A
identificação e a remoção oportuna, seja dos pacientes que se encontravam bem, seja
daqueles com agravamento de doença estabelecida, são os pontos mais importantes.
Insuficiência cardíaca aguda e severa com instabilidade hemodinâmica é rara nesse
grupo etário. Ela requer opções agressivas de tratamento primário, inclusive
diuréticos, ventilação mecânica com adição de oxigênio, agentes inotrópicos
intravenosos e vasodilatadores intravenosos.
O tratamento de insuficiência cardíaca crônica neste
grupo de idade inclui usualmente digitalis, diuréticos e vasodilatadores.
Betabloqueadores são benéficos para alguns pacientes.
Terapia
Específica com Drogas
O tratamento da ICC tem dois objetivos. A eliminação da
causa é da maior importância, se for possível. Em segundo lugar está a terapia
farmacológica destinada a melhorar as conseqüências das alterações hemodinâmicas e
mecanismos compensatórios examinados no começo do capítulo. A eliminação da causa da
ICC está implícita na etiologia específica; o melhor tratamento da ICC causada por um
grande defeito septal ventricular é o fechamento cirúrgico do defeito septal
ventricular. O tratamento com drogas é examinado aqui de acordo com tipos específicos:
digitalis, agentes inotrópicos parenterais, vasodilatadores, diuréticos e
betabloqueadores.
Digitalis
A digoxina continua a ser ministrada a lactentes e
crianças com ICC. Seus benefícios mais significativos parecem resultar de seu efeito
inotrópico, qual seja, a sua capacidade de aumentar a força e a velocidade da
contração ventricular. A digoxina também melhora o tonus simpático, diminuindo a
resistência vascular sistêmica pela vasodilatação que acarreta, e desacelera a
freqüência cardíaca. Ambas estas ações são economizadoras de energia para o
coração deficiente19. Digitalis pode não ser benéfico e até mesmo ser
prejudicial quando ministrado a lactentes com obstrução aguda do coração esquerdo e
baixo fluxo de sangue sistêmico, como pode ocorrer na coartação da aorta. Esses
lactentes parecem extremamente sensíveis ao digitalis; os efeitos tóxicos agudos,
inclusive fatal perturbação de ritmo, podem ocorrer. Parece ser verdadeiro que o
digitalis, provavelmente, em sentido literal, não salve vidas, mas o oposto pode
acontecer. A dosagem da digoxina varia com o tamanho do paciente, como indicado no Quadro 7-7. Metade da dose total de
digitalização é dada pela boca ou por via intravenosa (não use digoxina por via
intramuscular), seguida por um quarto da dose total 8 a 12 horas mais tarde, e o quarto
final 8 a 12 horas depois dessa última. Um curto traçado eletrocardiográfico é
recomendado antes da dose final de um quarto, para avaliar ritmo e intervalos cardíacos.
A dose de manutenção é um quarto da dose total de dititalização e é dada em doses
divididas a cada 12 horas, começando 8 e 12 horas depois do último quarto da dose
inicial de digitalização. A monitorização do nível de digoxina sérica não é
necessária a não ser que haja razão específica para acreditar que um fator ou evento
de complicação esteja presente. O nível terapêutico de digoxina em lactentes é de 1 a
3 ng/ml quando a amostra de sangue é extraída aproximadamente 12 horas depois da última
dose oral.
Muitos pais aprendem prontamente a usar o conta-gotas
fornecido com a digoxina comercial. Uma seringa de 1cc pode ser preferível para a pequena
dose requerida pelos recém-nascidos, especialmente os prematuros. Os pais devem ser
informados para não repetir a dose caso o lactente vomite logo após a administração.
É preferível errar do lado do muito menos do que ocorrer o risco de dar muito mais. A
interrupção da terapia com digoxina parece ser fortuita. Um grupo de cardipatas parece
relutar em descontinuar a droga, sob a alegação de que muitos lactentes que tomam
digoxina enventualmente excedem suas doses. Em algum momento, alguém finalmente determina
que a dose de manutenção é menos do que terapêutica, que o paciente está passando
bem, e a droga é suspensa. Parece provável que muitos pacientes acima de 1 ano de idade
tomando digoxina para tratamento de problemas de sobrecarga de volume passariam igualmente
bem sem ela.
Na população adulta, há atualmente evidência de que as
drogas inotrópicas podem ser prejudiciais para o tratamento de insuficiência cardíaca
crônica.20 É possível que agentes inotrópicos, por aumentarem o dispêndio
de energia, podem agravar o dano às células miocárdicas. A literatura sobre adultos
sugere que agentes inotrópicos puros reduzem a sobrevida em pacientes com ICC crônica21.
Se essas observações podem ser estendidas aos pacientes pediátricos, é ainda questão
a ser determinada.
Agentes Inotrópicos Parenterais
Insuficiência cardíaca congestiva severa no lactentes ou
na criança pode requerer terapia inotrópica aguda mais agressiva (Quadro 7-8). Diversos agentes estão disponíveis
para administração parenteral em infusão constante. A dobutamina é um agente
simpaticomimético que tem efeito predominantemente inotrópico, aumentando a
contratilidade com pequeno efeito sobre a freqüência cardíaca. Ela causa aumento do
débito cardíaco e redução da resistência vascular sistêmica.22
A dopamina é uma catecolamina precursora de epinefrina.
Em pequenas doses (<5 mg/kg/min) ela atua primariamente para aumentar o fluxo de sangue
renal, promovendo perda de sódio e água23. Em doses de 10 a 20 mg/kg/min, a
dopamina tem inicialmente efeitos inotrópicos, mas pode causar perturbações de ritmo.
Por esta razão, não é aconselhável usar a dopamina como agente inotrópico.
Uma nova classe de agentes inotrópicos tem-se mostrado
benéfica para o tratamento de insuficiência cardíaca severa, particularmente aquela
devida a anormalidade miocárdica24. Essas drogas, das quais a amrinona é a
mais conhecida, são quimicamente diferentes de quaisquer glicosídios digitálicos ou
agentes simpaticomiméticos. A amrinona atua pela inibição da atividade da
fosfodiesterase, resultando na formação da adenosina monofosfato cíclica (AMP
cíclica). Esta ação parece ser responsável por ambos os efeitos positivos dessa droga,
inotrópicos e vasodilatadores. No miocárdio, a AMP cíclica resulta em cálcio
intracelular, aumentando, intensificando, assim, a contratilidade. Como mencionado acima
na análise do digitalis, agentes que aumentam os níveis celulares da AMP cíclica
aumentam o dispêndio de energia pela célula e, a longo prazo, podem ser nocivos. A
amrinona tem também notórios efeitos colaterais, inclusive trombocitopenia e toxidez
hepática, demandando estreita monitorização. Não obstante essas advertências, a
amrinona tem-se comprovado um agente excepcionalmente valioso para o tratamento agudo da
ICC severa.
Vasodilatadores
Agentes vasodilatadores de ação direta têm sido de
considerável utilização para o tratamento da insuficiência cardíaca congestiva aguda
ou crônica. A terapia vasodilatadora inclui a dilatação arterial, que diminui a
pós-carga e assim aumenta o débito cardíaco, e a dilatação venosa, que faz decrescer
a pré-carga, reduzindo, assim, a congestão pulmonar.
Uma importante classe de vasodilatadores são os
inibidores da enzima conversora da angiotensina (ACE), exemplificados pelo captopril e
enalapril25 (Quadro 7-9). Esses
agentes inibem a formação da angiotensina II, que é o resultado final do mecanismo
adaptativo renina-angiotensina; a angiotensina II é um poderoso vasoconstritor. Tal
inibição também diminui e secreção de aldosterona, razão por que promove a
secreção renal de sódio e água. O captopril diminui a resistência vascular sistêmica
e aumenta a capacitância venosa, aumentando o débito cardíaco. O enalapril tem sido
relatado como mais eficiente em suas ações renais.26 Os inibidores ACE
parecem ter efeitos benéficos no adulto, que vão além de sua atividade vasodilatadora.
Como o benefício ocorre e se ele é útil ao tratar o jovem paciente não está
determinado. Supervisão médica com o paciente em repouso no leito é indispensável no
início do uso desses agentes, porquanto ocasionalmente ocorra severa hipotensão.
Outros agentes vasodilatadores tais como nitroglicerina,
hidralazina e bloqueadores do canal de cálcio não serão discutidos aqui. O leitor
interessado deve recorrer aos manuais de cardiopediatria para descrição adicional.1-3
Diuréticos
Os diuréticos são aplicados para promover a excreção
de sal e água, cuja retenção é uma conseqüência dos mecanismos adaptativos colocados
em movimento pelo aparecimento da ICC (Quadro
7-10). A diurese é promovida pela melhora do fluxo sangüíneo renal, como foi
descrito sob o título "Vasodilatadores". O fluxo aumentado libera sal e água
para os túbulos renais, e os agentes diuréticos atuam diretamente para promover sua
perda.
Furosemia é o diurético mais comumente usado no grupo
pediátrico. Ele é um diurético de alça que age sobre a alça ascendente de Henle para
bloquear a reabsorção de sódio e água livre. A furosemida tem entretanto o efeito
indesejável de acarretar a perda de potássio, tornando-se necessária sua reposição.
Diuréticos de tiazida também impedem a reabsorção de
sódio e promovem perda de água livre. A perda de potássio também ocorre com esses
agentes.
Spironolactona é um antagonista específico da
aldosterona. Ela reduz a reabsorção de sódio e a secreção de potássio; assim sendo,
a perda de potássio não é uma conseqüência de seu uso. A Spironolactona é eficiente
somente se os níveis de aldosterona estiverem aumentados. Ela não promove a perda de
água livre. Seu uso é mais comumente associado a outros diuréticos que causam perda de
potássio.
A terapia com diuréticos remove sal e água com sucesso,
mas a diurese eficiente em pacientes com insuficiência cardíaca congestiva severa pode
produzir significativa depleção de volume, resultando em baixo débito cardíaco que
pode conduzir à insuficiência renal e hepática. Eletrólitos séricos, uréia
sangüínea e creatinina devem ser avaliados regularmente. A hiponatremia é um risco se o
paciente ingerir água em excesso. A perda de potássio intensifica a perda de íons de
hidrogênio, o que pode conduzir à alcalose metabólica. A hiponatremia e a alcalose
metabólica podem ser tratadas de forma conservadora, através da suspensão do diurético
e permitindo alguma ingestão adicional de sal por uns poucos dias. A elevação rápida
do sódio pela administração intravenosa de solução hipertônica de sal não deve ser
empreendida. Aqui, uma vez mais, é importante conhecer o paciente e não simplesmente
reagir a um lado laboratorial.
Terapia com Betabloqueadores
Betabloqueadores têm sido usados para tratamento de
insuficiência cardíaca associada a disfunção diastólica, como pode ocorrer na
cardiomiopatia hipertrófica obstrutiva. Há evidência de que os betabloqueadores são
benéficos em pacientes adultos com insuficiência cardíaca sistólica crônica, tal como
a cardiomiopatia dilatada.27 Com efeito, Katz sugeriu que os betabloqueadores
podem se tornar os mais importantes agentes para tratar a insuficiência cardíaca
congestiva branda no adulto e naqueles com disfunção ventricular esquerda severa que
possam tolerar essa forma de terapia.20 Katz destacou que betabloqueadores
tornam mais lento o consumo de energia nas células miocárdicas e podem reduzir o
crescimento de células miocárdicas mal adaptadas por neutralizar a estimulação da AMP
cíclica. Também neste caso a utilidade desta terapia em pacientes pediátricos está
ainda para ser determinada.
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