Capítulo 03 - Interpretação Eletrocardiográfica e Valor Diagnóstico

Benjamin E. Victorica

O eletrocardiograma de 12 derivações continua sendo um importante instrumento diagnóstico em cardiologia. A maioria dos médios tem conhecimento sobre os princípios da eletrocardiografia. Entretanto, interpretar um eletrocardiograma pode ser uma tarefa difícil e estressante, particularmente para aqueles não rotineiramente envolvidos nesta atividade. Interpretar eletrocardiogramas é como quaisquer outras habilidades, a capacidade é desenvolvida e mantida pelo exercício regular.

Os pediatras e outros médicos que cuidam de bebês e crianças não devem assumir que a interpretação eletrocardiográfica de rotina em seu hospital ou comunidade seja tão acurada quanto quando realizada por médico especialista em crianças. Em muitos hospitais, a interpretação eletrocardiográfica é feita apenas por cardiologistas treinados em cuidados com adultos. Os cardiologistas de adulto estão interessados principalmente em doença cardíaca adquirida e a maioria tem pouca experiência com doença cardíaca congênita, particularmente em recém-nascidos e bêbes. Acreditamos que, baseado em experiência com numerosos indivíduos, um médico interessado em doença cardíaca em crianças pode se tornar um recurso valioso para a comunidade pela aquisição da habilidade em interpretar eletrocardiogramas pediátricos.

Em muitos hospitais os eletrocardiogramas são atualmente fornecidos com uma interpretação gerada por um programa de computador. Esta leitura pode ser satisfatória para criança mais velha ou adolescente, mas estes programas têm utilidade limitada quando aplicados em bebês e crianças novas. Programas de leitura pediátrica computadorizados são úteis, mas todos apresentam limitações e nenhum é confiável sem a revisão de um médico experiente.

É importante para o pediatra de cuidados primários ser capaz de distinguir entre eletrocardiogramas normais e anormais. Sutilezas na interpretação e anormalidades específicas podem não ser reconhecidas, porém as variações principais em relação ao normal devem ser indentificadas.

Conceitos Básicos

Não há necessidade de ser um estudante de eletrofisiologia para aprender a interpretar eletrocardiogramas. Este capítulo, por isso, não revê a ciência básica da eletrocardiografia. Aqueles interessados na leitura acerca deste assunto devem consultar livros textos clássicos de fisiologia, eletrocardiografia ou cardiologia, pois apenas alguns fundamentos são revistos aqui.

O coração se contrai em resposta a um sinal elétrico que normalmente é gerado no nódulo sinusal, localizado no átrio direito. O Cap. 11 revê os princípios de geração e distribuição do impulso.) Este sinal elétrico despolariza o átrio e os ventrículos em sucessão, criando um impulso que pode ser registrado por eletrodos aplicados sobre a pele. Este registro é o eletrocardiograma. A configuração do sinal depende de onde os eletrodos são aplicados no corpo. Estas posições diferentes são definidas como derivações específicas do ECG. O mesmo sinal elétrico aparece de forma diferente dependendo da derivação onde é registrado.

Por padrões internacionais, um impulso elétrico que se move em direção ao eletrodo é registrado como uma deflexão positiva a partir da linha de base no papel de registro, e um impulso que se afasta do eletrodo se inscreve como uma deflexão negativa. Este princípio se aplica a todas as ondas eletrocardiográficas: P, QRS e T.

A onda P representa a despolarização atrial. A despolarização do átrio direito precede a do átrio esquerdo, mas a diferença de tempo é tão curta que a onda P geralmente é lisa e não se observa despolarização independente dos dois átrios. A repolarização atrial raramente é registrada no eletrocardiograma standard, pois esta onda é pequena no QRS mais largo. Entretanto, é possível que uma onda P grande seja seguida por uma chamada T de P.

O QRS representa a despolarização ventricular. Este pode iniciar com uma deflexão negativa ou positiva. Por convenção, se o QRS começa com uma deflexão negativa, esta é designada onda Q. Se o QRS começa com uma deflexão positiva, esta é chamada de onda R. A primeira deflexão negativa após a onda R é designada onda S. Uma segunda deflexão positiva é chamada de R e uma segunda deflexão negativa de S. A onda T representa a repolarização ventricular. Esta pode ser bifásica (isto é, parcialmente positiva, parcialmente negativa), mas ainda assim é considerada como uma unidade.

Teoricamente, não há limite para o número de derivações que podem ser obtidas, embora a maioria dos instrumentos seja programada para registrar 12 derivações geralmente em grupos de três simultaneamente. Para o eletrocardiograma standard, os eletrodos são colocados em todas as quatro extremidades. Estes eletrodos registram as derivações standard bipolares, designadas I, II, e III, que representam os seguintes pares de eletrodos: derivação I, braço direito/braço esquerdo; derivação II, braço direito/perna esquerda; e derivação III, braço esquerdo/perna esquerda. Os eletrodos dos membros também registram as derivações aumentadas dos membros aVR, aVL, e aVF. Estas derivações representam os eletrodos unipolares do braço direito, braço esquerdo e perna esquerda, respectivamente. Seis eletrodos adicionais, colocados em torno do tórax, são denominados derivações precordiais unipolares V. É útil para o médico conhecer onde os eletrodos devem ser colocados para registrar as derivações V, uma vez que a habilidade dos técnicos de eletrocardiograma varia, particularmente nas equipes de meio expediente. Os eletrocardiogramas de adulto e alguns eletrocardiogramas pediátricos registram as derivações precordiais de V1 a V6, assim posicionadas:

V1 = quarto espaço intercostal no bordo esternal direito
V2 = quarto espaço intercostal no bordo esternal esquerdo
V3 = no meio entre V2 e V4
V4 = quinto espaço intercostal esquerdo na linha hemiclavicular.
V5 = quinto espaço intercostal esquerdo na linha axilar anterior.
V6 = quinto espaço intercostal esquerdo na linha axilar média


Muitos eletrocardiogramas pediátricos são registrados substituindo duas outras derivações V que estendem o registro do tórax mais para a direita e para a esquerda. A derivação V3R é colocada no tórax direito em posição análoga ao V3, à esquerda. Derivação V7 é colocada no quinto espaço intercostal na linha axilar posterior. Muitos aparelhos de eletrocardiograma permitem o registro de apenas seis derivações V, neste caso V3 e V5 podem ser omitidas para que se use V3R e V7.

É útil pensar nestas 12 derivações como dois grupos de seis. As derivações dos membros e as derivações aumentadas dos membros podem ser consideradas como sendo a atividade elétrica do coração em frente ao paciente — daí a denominação de plano frontal. A direção das forças elétricas é para direita ou esquerda e superior ou inferior.

As derivações do tórax vêm da atividade elétrica no plano horizontal, ou seja, de cima. Logo, a direção da atividade elétrica é esquerda ou direita e anterior ou posterior. Na maioria das vezes as derivações V do lado direito V3R e V1 refletem melhor as forças elétricas no ventrículo direito, e as derivações do lado esquerdo V6 e V7 ilustram melhor as forças elétricas do ventrículo esquerdo.

O eletrocardiograma geralmente é registrado em um papel com velocidade de 25 mm/segundo. É essencial que o traçado contenha um sinal de calibração de forma que a magnitude das ondas possam ser avaliadas. Todo eletrocardiograma deve ser realizado com calibração de deflexão de 10 mm igual a 1 mV. Se algumas ondas eletrocardiográficas forem muito grandes, o traçado pode ser também registrado com metadol da sensibilidade, ou deflexão de 5 mm igual a 1 mV. O sinal de calibração apropriado deve ser registrado a fim de indicar esta mudança na sensibilidade durante esta porção do registro.

Leitura Eletrocardiográfica

A interpretação eletrocardiográfica requer uma abordagem ordenada passo a passo desenvolvida a partir de bons hábitos. Estes hábitos são melhor obtidos seguindo um modelo que força o interpretador a preencher todos os espaços em branco, projetar o eixo do QRS e prestar atenção a detalhes específicos de cada componente. Desta maneira as chances de esquecer achados significativos são diminuídas. Existem vários tipos de modelo de leitura. Um tipo adaptado para interpretação pediátrica é mostrado na Fig. 3-1. Os itens de 1 a 8 na Fig. 3-1 são discutidos em detalhe nesta seção.

O cabeçalho do modelo deve conter os dados de identificação do paciente. Posteriormente, deve-se proceder de forma ordenada para analisar, medir e documentar cada componente do traçado.

Ritmo

O ritmo se refere à origem do batimento cardíaco e à sua regularidade. A maioria dos traçados demonstra ritmo sinusal, manifesto pela presença de uma onda P à frente de cada complexo QRS com eixo médio de P normal (ondas P positivas nas derivações I e aVF) e intervalo PR normal. A maior parte dos ritmos é razoavelmente regular: isto é, os batimentos ocorrem em intervalos iguais de tempo.

A onda P que for negativa na derivação I e positiva em aVF deve ser considerada anormal. A causa mais comum desta anormalidade é um erro técnico devido à troca das derivações dos braços esquerdo e direito. Neste caso a derivação aVR também está o inverso do normal. Se a colocação das derivações estiver correta, deve-se considerar a possibilidade de situs inversus com imagem espelho. O restante do traçado deve fornecer informação de apoio, se for este o caso. Se o marcapasso supraventricular estiver localizado em outro local que não o nódulo sinusal, a onda P geralmente reflete esta origem anormal. Por exemplo, ondas P negativas nas derivações II, III, e aVF indicam um marcapasso atrial ectópico. A ausência de ondas P com complexos QRS normais pode indicar a presença de ritmo juncional. O Cap. 11 fornece informação adicional sobre estas condições.

A causa mais comum de ritmo irregular sem alteração do intervalo PR ou da configuração de P e QRS é a arritmia sinusal respiratória. A inspiração aumenta a freqüência cardíaca e a expiração a diminui. Logo, o eletrocardiograma mostra um alentecimento e uma aceleração regulares da freqüência cardíaca com o tempo necessário para completar um ciclo alentecimento-aceleração consistente com a freqüência respiratória do paciente. Se o paciente estiver disponível para o exame físico durante a realização do eletrocardiograma, esta explicação pode ser facilmente confirmada. Arritmia sinusal é um achado, mesmo se acentuada. A diminuição da freqüência cardíaca durante a expiração pode ser suficiente para permitir o aparecimento de um batimento que não apresenta onda P ou que tenha uma onda P logo à frente do QRS com um intervalo PR distintamente curto. Este padrão denota escape juncional durante a fase bradicardíaca da arritmia sinusal respiratória.

Freqüência Cardíaca

Uma estimativa aproximada da freqüência pode ser determinada dividindo 300 pelo número de quadrados grandes no papel do eletrocardiograma entre duas ondas P ou entre dois complexos QRS (Quadro 3-1). Este método é adequado para a interpretação eletrocardiográfica de rotina. Se for necessário um cálculo mais acurado da freqüência ventricular (e.g., em um paciente com marcapasso artificial), dividi-se 1.500 pelo número de quadrados pequenos no papel do eletrocardiograma entre dois complexos QRS (Quadro 3-2).

Intervalos
Intervalo PR


O intervalo PR (Fig. 3-2) representa a despolarização atrial mais o tempo necessário para o impulso atravessar o tecido de condução atrioventricular especializado (nódulo atrioventricular, feixe de His, ramos). Este é medido do início da onda P ao início do complexo QRS, independente de como o complexo QRS começa: se com uma onda Q ou com uma onda R. A duração do intervalo PR é inversamente relacionado com a freqüência cardíaca e é afetado pela idade do paciente. Um guia útil para os limites superiores normais em várias idades (considerando a freqüência cardíaca normal para a idade) é o seguinte:

Recém-nascidos 0,11 segundos
Criança 0,14 segundos
Adolescentes 0,16 segundos


O prolongamento do intervalo PR é definido como bloqueio cardíaco de primeiro grau. Este termo é útil, embora sugira a presença de um distúrbio de condução que pode, de fato, não estar presente. Apesar de um intervalo PR prolongado poder ser causado por um retardo na condução através do sistema de condução atrioventricular especializado, também pode ser devido ao aumento do átrio direito, especialmente dilatação. Além disso, o prolongamento do intervalo PR pode ser causado por um processo inflamatório como febre reumática, embora esta observação não possa ser considerada um critério para diagnóstico de cardite na febre reumática (veja Cap. 10). A terapia com digital prolonga o intervalo PR, assim como os efeitos de cirurgia com coração aberto. O encurtamento do intervalo PR com onda P normal pode ser encontrado nas síndromes de pré-excitação, como na Síndrome de Wolff-Parkinson-White (veja Cap. 11) ou na doença do armazenamento do glicogênio (doença de Pompe tipo II). O encurtamento do intervalo PR com onda P com direção anormal sugere um marcapasso supraventricular ectópico.

Intervalo QRS

O intervalo QRS (Fig. 3-2) representa a despolarização ventricular. É medido do início ao final do complexo QRS. O intervalo deve ser menor que 0,10 segundos. A duração aumentada do QRS sugere condução ventricular retardada. O retardo na condução do ventrículo direito provoca um alentecimento da porção terminal do QRS, e com esta porção direcionada para o ventrículo direito de forma a produzir uma alta voltagem, R é alargado nas derivações precordiais V3R e V1. Se o QRS tiver configuração semelhante mas a duração for de 0,12 segundos ou mais, o problema pode ser usualmente qualificado como bloqueio de ramo direito (Brd). Este padrão é visto freqüentemente em pacientes de pós-cirurgia cardíaca, especialmente após cirurgia envolvendo o ventrículo direito. O bloqueio de ramo esquerdo (BRE) causa o alentecimento da porção média do complexo QRS, resultando em 100% de onda R alargada e moderadamente alta nas derivações precordiais V6 e V7. Um BRE verdadeiro é raro em crianças, podendo ocorrer com cardiomiopatia ventricular esquerda e após cirurgia no trato de saída do ventrículo esquerdo; o padrão de BRE é simulado em pacientes com Síndrome de Wolff-Parkinson-White do tipo em que há ativação precoce do ventrículo direito; e é produzido por um marcapasso ventricular artificial implantado no ventrículo direito.

Intervalo QT.

O intervalo QT (Fig. 3-2), medido do início do complexo QRS ao final da onda T, é inversamente proporcional à freqüência cardíaca. A correção para freqüência cardíaca deve ser feita dividindo-se o intervalo QT medido pela raiz quadrada do intervalo RR precedente. Esta medida corrigida é referida como intervalo QTc. Tabelas padronizadas devem ser consultadas para as durações máxima e mínima do intervalo QTc em recém-nascidos e crianças. Entretanto, em torno do primeiro mês de vida, a duração QTc normalmente não é maior que 0,45 segundos.

O prolongamento do intervalo QTc pode ser encontrado em algumas formas de cardite ativa, com hipocalcemia, ou após administração de quinidina. O amento do intervalo QTc também pode ser observado em algumas síndromes associadas à morte súbita, como Romano-Ward e Lange e Jervell-Nielson, discutidas brevemente no Cap. 17. Nestes pacientes o intervalo QTc é marcadamente aumentado, e não causa preocupação, pois são variações de poucos centésimos de segundo. O encurtamento do intervalo QTc ocorre após administração de digital e na presença de hipercalcemia.

Eixo do QRS

As forças elétricas representadas pelo QRS apresentam uma magnitude e direção média que podem ser inscritas por um vetor. Quando construído a partir das seis derivações dos membros, este vetor representa o eixo médio do QRS como visto no plano frontal. O cálculo exato do eixo do QRS médio é mais uma tarefa de consumo de tempo, já que tem pouco valor adicional — colocar o eixo do QRS frontal em quadrantes é mais que adequado para os objetivos clínicos. Para esta abordagem simples e prática, a relação R/S nas derivações I e aVF e utilizada (Fig. 3-3). A derivação I registra o potencial elétrico entre os braços direito e esquerdo, com o braço esquerdo sendo designado como pólo positivo. Logo, em pacientes normais, um complexo QRS positivo na derivação I (onda R ou R dominante) indica que o eixo está direcionado à esquerda da linha vertical. Por outro lado, se o complexo QRS for predominantemente negativo na derivação I (onda S dominante), o eixo está orientado para a direita da linha vertical. A relação R/S na derivação aVF determina se o eixo médio do QRS está direcionado superior ou inferiormente. Esta derivação de membro unipolar e aumentada vê a atividade elétrica do coração a partir da perna esquerda, com a direção do impulso voltada para perna considerada positiva. Logo, um complexo QRS positivo em aVF (onda R dominante) determina o eixo médio do QRS como sendo inferior à linha horizontal, enquanto que um complexo QRS negativo (onda S dominante) na derivação aVF indica que o eixo está direcionado superiormente à linha horizontal.

O eixo do QRS no plano frontal normalmente está direcionado entre 0 e + 90 graus; isto é, no quadrante inferior esquerdo (Fig. 3-3). O eletrocardiograma mostra complexos QRS predominantemente positivos nas derivações I e aVF (N). O termo desvio do eixo para direita é aplicado quando o eixo do QRS está direcionado entre + 90 graus e + 180 graus (ou mais). O eletrocardiograma mostra complexos QRS que são predominantemente negativos na derivação I e positivos em aVF. O eixo médio do QRS cai no quadrante inferior direito, ou desvio do eixo para direita (DED). O desvio de eixo para direita pode ser encontrado em pacientes com lesões cardíacas caracterizadas por hipertrofia do ventrículo direito, como na tetralogia de Fallot, transposição de grandes artérias, estenose pulmonar, defeito de septo atrial, ou doença pulmonar (isto é, cor pulmonale). Tenha em mente que o DED é um achado normal em recém-nascidos e lactentes, uma vez que a espessura das paredes ventriculares são iguais no nascimento. Ocasionalmente, uma criança ou um adulto jovem normal apresenta leve DED.

Desvio do eixo para esquerda (DEE) indica que o eixo do QRS está direcionado entre 0 e - 90 graus. Os complexos QRS são positivos na derivação I, mas negativos em aVF, e o eixo médio do QRS está localizado no quadrante superior esquerdo. Este eixo é encontrado tipicamente em pacientes com defeito do coxim endocárdico ou com atresia da válvula tricúspide; é também característico da anomalidade de condução chamada hemibloqueio anterior esquerdo, que pode ocorrer após cirurgia intracardíaca. De fato, a explicação para este padrão em pacientes com defeito do coxim endocárdico é provavelmente a ausência ou hipoplasia da divisão anterior esquerda do ramo esquerdo, o equivalente congênito do hemibloqueio anterior esquerdo adquirido. Quando os complexos QRS são negativos nas derivações I e aVF, o eixo está direcionado para o quadrante superior direito (S) (isto é, entre - 90 e +/ - 180 graus). Um eixo neste quadrante pode ser devido a grande desvio do eixo tanto para a direita quanto para a esquerda. A distinção entre essas duas possibilidades geralmente é possível pela análise da configuração do QRS na derivação aVL. Se o complexo QRS em aVL apresentar um padrão rS, existe grande desvio do eixo para a direita (> + 180 graus). Este desvio extremo do eixo para a direita pode ser encontrado em recém-nascidos com grave hipertrofia ventricular direita como, por exemplo, na síndrome hipoplásica do coração esquerdo. Se o complexo QRS em aVL mostra um padrão qR, há grande desvio do eixo para a esquerda (> - 90 graus), como o encontrado em pacientes com defeito do coxim endocárdico, como canal atrioventricular completo com hipertrofia ventricular direita dominante.

Os termos DED e DEE graves são usados com cautela. O eixo frontal tem de ser esquerdo ou direito e não realmente mais esquerdo do que esquerdo ou mais direito do que direito. O que é indicado por desvio do eixo para a esquerda ou grande desvio para direita na realidade é o desvio do eixo para esquerda e superior ou desvio para direita e superior.

Certas síndromes dismórficas (por exemplo, Síndrome de Noonan, embriopatia pós-rubéola) podem causar a localização do eixo do QRS nos quadrantes superiores direito ou esquerdo na ausência de uma significativa anormalidade anatômica cardíaca subjacente. Como sempre, a informação clínica deve ser disponível para a interpretação mais eficaz do eletrocardiograma. É importante obter um eletrocardiograma e localizar o eixo do QRS em um recém-nascido com Síndrome de Down. Se hover um eixo de QRS distintamente superior, deve-se suspeitar que o bebê tenha um defeito do coxim endocárdico.

Aumento Atrial (Ondas P)

O próximo passo durante a interpretação de um eletrocardiograma é a avaliação do aumento de câmaras específicas. A despolarização atrial começa na junção veia cava superior — átrio direito e se espalha para a parte inferior do átrio direito e para o átrio esquerdo. A onda P é o resultado desta atividade elétrica. A onda P normal é formada pela soma das despolarizações atriais direita e es querda. Alterações na morfologia da onda P podem refletir aumento ou dilatação atrial (Fig. 3-4). Ondas altas (>2,5 mm) e apiculadas indicam aumento atrial direito. Este padrão é visto melhor na derivação II e no nível precordial de V2. A definição "apiculada" é arbitrária. Nós sempre ensinamos que a P que tenha forma sobre a qual não se deseja sentar é apiculada.

Ondas P prolongadas, achatadas, ou entalhadas, particularmente nas derivações I, aVF, e V6, refletem aumento de átrio esquerdo. Também pode ser encontrada uma onda P positiva/negativa na derivação precordial V1. Se a fase negativa tem um quadrado de largura (0,04 segundos) e um quadrado de profundidade (1 mm), o aumento de átrio esquerdo está presente.

Forças Septais (Ondas Q)

Uma das diferenças mais importantes entre a interpretação de eletrocardiogramas pediátricos e de adultos é a análise das forças septais ventriculares. Estas forças septais apresentam significado particular no grupo de idade pediátrica. Uma vez que o impulso elétrico atravessa o tecido atrioventricular especializado e atinge os ventrículos, a primeira área a ser despolarizada é o septo ventricular. A despolarização septal forma um vetor elétrico que se origina no lado ventricular esquerdo do septo e é, depois, direcionado para a direita e anteriormente em direção à superfície ventricular direita do septo. Este vetor, se afastando do ventrículo esquerdo, resulta na inscrição de uma pequena deflexão negativa (onda q) nas derivações precordiais esquerdas V6 e V7. Uma onda q normal em qualquer uma dessas derivações indica a presença do septo ventricular (e, logo, a presença de dois ventrículos funcionantes) e sugere uma posição ventricular normal. Esta informação é particularmente importante quando se interpretam traçados de recém-nascidos. A menos que haja uma onda q em V6 e V7, não se pode determinar adequadamente se existe um ventrículo esquerdo ou se as ondas R nestas derivações representam de fato forças ventriculares esquerdas.

Por outro lado, a presença de ondas q nas derivações precordiais direitas V3R e V1 sugere inversão da inscrição das forças septais. Este achado é anormal e representa hipertrofia ventricular direita ou inversão ventricular.

Hipertrofia Ventricular (Complexos QRS)

A inscrição das forças septais é imediatamente seguida por uma rápida despolarização das paredes livres ventriculares. Os vetores elétricos resultantes de ambos os ventrículos têm direções mais ou menos opostas. Os vetores do ventrículo direito são direcionados anteriormente e para direita, enquanto que os vetores do ventrículo esquerdo, normalmente predominantes, são direcionados posteriormente e para a esquerda. Estas forças elétricas simultaneamente competitivas inscrevem o restante do complexo QRS, isto é, as principais forças do QRS. As derivações precordiais V3R e V1 estão mais próximas do ventrículo direito e são as derivações que mais provavelmente ilustram o aumento ventricular direito. As derivações V6 e V7 são análogas para o ventrículo esquerdo.

Todas as derivações precordiais estão "olhando" para a mesma força elétrica. Como esta força aparece em qualquer das derivações, depende de onde esta esteja colocada. Em uma criança normal, como o ventrículo esquerdo é dominante, a maioria das forças do QRS se afasta das derivações precordiais direitas, resultando em um padrão de r pequeno e S dominante em V3R e V1, e em direção ao ventrículo esquerdo, resultando em ondas R dominantes em V6 e V7. (O tamanho relativo das ondas R e S está indicado no texto pelo uso de letras minúsculas para ondas pequenas e letras maiúsculas para ondas maiores, por exemplo, rS ou qRs.) As derivações precordiais normalmente mostram uma progressão mais ou menos gradual das ondas S dominantes em V3R e V1 para ondas R dominantes em V6 e V7.

Alterações na relação normal entre as forças ventriculares são refletidas nas derivações precordiais. É importante avaliar configuração, extensão, e direção das forças do QRS em todas as derivações precordiais antes de se esboçar conclusões. O critério de voltagem isoladamente pode ser enganoso, uma vez que o tamanho dos complexos QRS precordiais podem ser afetados não só pela magnitude das forças elétricas, mas também por outros fatores como a presença de derrame pericárdico espessamento da parede do tórax, contato eletrodo-pele, e sensibilidade ao equipamento.

Hipertrofia Ventricular
Hipertrofia Ventricular Direita


Veja Figs. 3-8, 3-9 e 3-10, 3-14, 3-15 e 3-16, 3-18, 3-19, 3-20, 3-21 e 3-22.

As derivações precordiais V3R e V1 "olham" diretamente para o ventrículo direito e ilustram melhor a presença de hipertrofia e dilatação ventricular direita. É necessário, obviamente, conhecer o que é normal antes de identificar o anormal. Este ponto é particularmente verdadeiro em relação ao ventrículo direito, devido à evolução normal da massa relativa e absoluta do ventrículo direito que ocorre ao longo dos primeiros meses de vida. Antes do nascimento os ventrículos estão em paralelo, ambos se esvaziando na aorta, o ventrículo esquerdo diretamente e o ventrículo direito via ductos arteriosus. Logo, a pressão sistólica nos dois ventrículos é idêntica e a espessura de suas paredes é aproximadamente a mesma. Ao nascimento, o ventrículo direito é eletricamente dominante por ser anterior ao ventrículo esquerdo e, logo, está mais próximo do eletrodo colocado na parede do tórax. Como resultado, as derivações precordiais direitas V3R e V1 demonstram uma onda R dominante, e as derivações precordiais esquerdas V6 e V7 mostram uma onda S dominante. Hipertrofia ventricular direita é excessivamente diagnosticada em recém-nascido, a menos que sejam seguidos critérios específicos durante a interpretação do traçado (Quadro 3-3).

No recém-nascido normal existe um padrão Rs em V3R e V1. A onda S é causada por forças terminais e direitas do QRS que, de fato, são geradas pela despolarização do trato de saída do ventrículo direito. As ondas R e S são geralmente de baixa voltagem (< 10 mm). A hipertrofia ventricular direita pode ser diagnosticada quando há um R ou rR "puro" em V3R e V1 (quase 100). E a hipertrofia ventricular direita também está presente quando o R (ou R) é maior do que 20 mm. Um padrão qR em V3R e V1 é uma indicação de hipertrofia ventricular direita. Um padrão rS pode não estar presente em V6 e V7 sem a presença de uma onda q (forças septais). Por outro lado, quando ondas q estão aparentemente presentes em V3R e V1 e em V6 e V7, as forças septais são provavelmente normais e o aparente padrão qR em V3R e V1 é como um rsR com o r inicial isoelétrico e, logo, não registrado de fato, ou com magnitude tão pequena que não é visível.

No recém-nascido normal, a onda T é positiva em V3R e V1. Em torno do terceiro dia de vida estas ondas T se tornam bifásicas e, posteriormente, plenamente negativas em torno de 7 dias de idade. A hipertrofia ventricular direita é indicada quando a onda T permanece positiva em V3R e V1 por volta de 1 semana de vida, desde que a onda T seja também positiva em V6 e V7.

Também se pode suspeitar de hipertrofia ventricular direita se houver desvio de eixo para direita maior que + 180 graus ou importante aumento atrial direito. Entretanto, este último não é válido se o paciente apresenta uma anormalidade primária de valva tricúspide. É útil considerar que existem alguns padrões característicos de hipertrofia ventricular direita que podem estar associados a lesões cardíacas específicas. Estes padrões geralmente representam sobrecarga ventricular tanto de volume quanto de pressão (Fig. 3-5). Hipertrofia ventricular direita do tipo sobrecarga de volume em uma criança é caracterizada por um padrão rsR em V3R e V1. O R é maior do que o r inicial, mas usualmente é menor que 15 mm. O R é freqüentemente largo, simulando retardo de condução ventricular direita. Este padrão de sobrecarga de volume está presente comumente em pacientes com defeito de septo atrial, lesão que causa dilatação ventricular direita sem aumento de pressão no ventrículo direito e sem substancial aumento na espessura da parede ventricular direita. Hipertrofia ventricular direita típica do tipo de sobrecarga de pressão em uma criança é caracterizada por um R ou R alto em V3R e V1. Geralmente, quanto mais alta a onda R, maior é a hipertrofia. Este padrão de sobrecarga de pressão usualmente é encontrado em pacientes com pressão sistólica ventricular direita máxima elevada, como ocorre na estenose de válvula pulmonar. A hipertrofia ventricular direita grave por sobrecarga de pressão pode ser representada por um padrão qR em V3R e V1. A hipoplasia do ventrículo esquerdo também resulta em um padrão de hipertrofia ventricular direita.

Hipertrofia Ventricular Esquerda

Veja Figs. 3-11, 3-17, e 3-23, 3-24, 3-25 e 3-26, mais adiante neste capítulo.

A hipertrofia ou dilatação ventricular esquerda causa aumento das forças esquerdas e posteriores do QRS, normalmente dominantes. Estas alterações são refletidas no eletrocardiograma pela presença de ondas S mais profundas nas derivações precordiais direitas (V3R e V1) e ondas R mais altas nas derivações precordiais esquerdas (V6 e V7). A hipoplasia do ventrículo direito também cria este padrão. Na presença de hipertrofia ventricular esquerda grave, as forças aumentadas do QRS podem estar direcionadas ainda mais posteriormente. Nestas circunstâncias, os complexos QRS em V6 e V7 podem não refletir bem a gravidade da hipertrofia, uma vez que as ondas R podem estar apenas levemente aumentadas. A chave diagnóstica é a presença de ondas S mais profundas do que o normal em V1 e V2 e um desvio para a esquerda da derivação de transição, com rS em vez de um padrão RS isodifásico em V4.

Como a hipertrofia ventricular direita, podem ser considerados padrões de hipertrofia ventricular esquerda como associados com sobrecarga de volume ou pressão (Fig. 3-5). Entretanto, estes padrões são menos fidedignos na presença de hipertrofia ventricular esquerda. Na hipertrofia do ventrículo esquerdo do tipo sobrecarga de volume, freqüentemente há ondas q profundas (> 3 mm) e ondas R altas em V6 e V7. Pode haver leve elevação do segmento ST em V6 e V7 com um segmento ST curvo cuja convexidade é direcionada para baixo ("côncavo"). Ondas T altas, apiculadas, também sugerem sobrecarga de volume. Estas alterações de QRS e STR-T podem ser encontradas em criança com grande ductus arteriosus patente, uma lesão típica de sobrecarga de volume do ventrículo esquerdo. Padrões semelhantes podem ser vistos com outras lesões de sobrecarga de volume do coração esquerdo. Uma excessão particular, entretanto, é encontrada em pacientes com doença cardíaca reumática por regurgitação mitral, regurgitação aórtica, ou ambas — anormalidades hemodinâmicas que causam dilatação ventricular esquerda. Nestes pacientes, as ondas q em V6 e V7 são pequenas, a onda R é geralmente alta e as ondas T são de baixa voltagem, um padrão total simulando sobrecarga de pressão do ventrículo esquerdo. Acreditamos que a diferença seja devida ao fato de que pacientes com doença cardíaca reumática apresentam envolvimento miocárdico significante em adição à dilatação de câmara.

Na hipertrofia ventricular esquerda do tipo sobrecarga de pressão, o padrão do QRS é caracterizado por ondas q pequenas e ondas R altas em V6 e V7. As ondas T são freqüentemente de menor amplitude do que o esperado pela altura das ondas R. Estes achados eletrocardiográficos estão presentes, por exemplo, em pacientes com estenose de válvula aórtica, uma lesão de sobrecarga de pressão do ventrículo esquerdo. Duas variações deste padrão de sobrecarga de pressão do ventrículo esquerdo podem ser notadas. A primeira é em pacientes com cardiomiopatia hipertrófica. Esta condição, na qual pode ocorrer obstrução ao trato de saída do ventrículo esquerdo, é incomum em crianças. É caracterizada por espessamento marcante do septo ventricular. Como resultado, o eletrocardiograma geralmente reflete esta anatomia mostrando ondas q profundas (forças septais) em V6 e V7. Estas ondas q são usualmente mais alargadas do que em pacientes com sobrecargas de volume. A segunda variação ocorre em crianças com coarctação da aorta. Nestes pacientes, que apresentam sobrecarga de pressão do ventrículo esquerdo como resultado da hipertensão, o eletrocardiograma geralmente demonstra rSr em V3R e V1. A explicação para o r nesta situação, indicando que as forças terminais doQRS estão direcionadas para direita, é desconhecida.

Hipertrofia Biventricular

Veja Figs. 3-12, 3-18 e 3-27, adiante do capítulo.

Há poucos critérios absolutos para o diagnóstico de hipertrofia biventricular, mas esta pode ser sugerida em termos relativos. Por exemplo, se um eletrocardiograma mostra critério definido para hipertrofia ventricular direita, espera-se encontrar ondas S dominantes ou ondas R pequenas (ou ambas) em V6 e V7. Se, entretanto, houver ondas R relativamente altas ou dominantes em V6 e V7, isto pode ser considerado evidência de hipertrofia ventricular esquerda adicional. De forma semelhante, se existe critério definido para hipertrofia ventricular esquerda, ondas R maiores do que o esperado em V3R e V1 sugerem a presença de hipertrofia ventricular direita associada. Pode-se suspeitar também de hipertrofia biventricular quando os complexos QRS das precordiais médias (V2 e V4) apresentarem grande amplitude (>50 mm), com ondas R e S de amplitudes aproximadamente iguais. A voltagem, isoladamente, é um critério diagnóstico fraco, já que um paciente normal com parede torácica fina também pode apresentar complexos QRS amplos nas precordiais médias.

Repolarização Ventricular (Segmento ST e Ondas T)

A análise detalhada do segmento ST e da onda T pode ser importante no diagnóstico da hipertrofia ventricular. Recém-nascidos e crianças normais devem ter ondas T negativas em V3R e V1. Em torno dos 8 a 10 anos de idade, estas ondas T se tornam positivas e permanecem assim até a fase adulta. Ondas T positivas entre as idades de 1 semana e 8 a 10 anos são indicativas de hipertrofia ventricular direita, desde que a onda T seja também positiva nas derivações V6 e V7. Se o paciente apresenta grave hipertrofia ventricular esquerda, gerando ondas T negativas em V6 e V7, a onda T pode ser "empurrada" em direção ao lado direito, criando uma onda T positiva nas derivações V3R e V1. Nesta situação, isto não indica hipertrofia ventricular direita.

A configuração da onda T nas derivações V3R e V1 também pode auxiliar a avaliação da gravidade da hipertrofia ventricular direita, particularmente na de tipo sobrecarga de pressão. Em presença de elevação leve e moderada da pressão ventricular direita, estas ondas T são geralmente positivas. Em pacientes com pico de pressão sistólica do ventrículo direito em nível sistêmico (igual àquela do ventrículo esquerdo), as ondas T nas derivações V3R e V1 tornam-se bifásicas e de baixa amplitude. Quando a pressão ventricular direita é supra-sistêmica, pode haver depressão do segmento ST e ondas T negativas nas derivações V3R e V1. Este padrão é referido como strain do ventrículo direito, um termo mal definido mas razoavelmente significativo.

Em pacientes com hipertrofia ventricular esquerda é também importante avaliar a configuração de ST-T. Um segmento ST plano em V6 e V7, resultando em um ângulo ST-T mais agudo ou baixa voltagem, onda T negativa e achatada (ou ambos), são sinais que podem ser chamados "sobrecarga (strain) ventricular esquerda", que implica disfunção ventricular; provavelmente representa uma forma de isquemia miocárdica, relativa ou absoluta.

Características Eletrocardiográficas

Uma série de eletrocardiogramas normais e anormais para recém-nascidos, lactentes e crianças são descritos nesta seção. Ao invés de mostrar todo o traçado, enfocamos as derivações que mais auxiliam a interpretação. As derivações I e aVF são utilizadas para situar o eixo médio do QRS dentro de um quadrante específico. As derivações precordiais V3R e V1 refletem principalmente as forças do ventrículo direito, e V6 e V7 as forças do ventrículo esquerdo. A derivação percordial intermediária V4 mostra as forças de transição entre os ventrículos direito e esquerdo.

As Figs. 3-6, 3-7, 3-8, 3-9, 3-10, 3-11 e 3-12 ilustram os padrões de recém-nascidos. As Figs. 3-13, 3-14, 3-15, 3-16, 3-17 e 3-18 são traçados de lactentes. As Figs. 3-19, 3-20, 3-21, 3-22, 3-23, 3-24, 3-25, 3-26, 3-27 e 3-28 são de eletrocardiogramas de crianças. O primeiro traçado de cada grupo etário é normal.

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