Capítulo 10 - Taquicardia Atrioventricular Reentrante Nodal Capítulo 10 - Taquicardia Atrioventricular Reentrante Nodal

Jacob Atié
Washington Maciel
Eduardo Andréa
Marco Aurélio Pierobon


Durante os últimos 20 anos, foi conseguido um grande progresso na compreensão dos diferentes tipos de taquicardia supraventricular. Até há alguns anos, diferentes tipos de taquicardias eram agrupados como sendo "taquicardias paroxísticas supraventriculares". Graças ao entendimento dos mecanismos de cada uma dessas arritmias, obtidos através do estudo eletrofisiológico, elas hoje são classificadas separadamente.

A taquicardia paroxística AV nodal (TAVN) é a taquicardia paroxística supraventricular mais freqüente: ocorre em 50% dos pacientes que chegam à emergência com arritmias paroxísticas. O conhecimento das propriedades eletrofisiológicas do circuito responsável pela TAVN, a terapêutica farmacológica e as intervenções não-farmacológicas, nos ensinaram muito a respeito desta patologia, permitindo que atualmente a ablação seletiva de uma das vias possa ser realizada através de um simples procedimento para a obtenção da cura desta arritmia.

Histórico

A taquicardia paroxística foi inicialmente descrita por Lewis 1 em 1909 antes mesmo do conceito de reentrada ter sido descrito por Mines em 1913.2 Apenas 10 anos após (1923) é que Iliescu et al.3 postularam a hipótese de que a taquicardia supraventricular era devida ao mecanismo de reentrada.

Barker em 19434 sugeriu pela primeira vez que alguns tipos de arritmias supraventriculares eram originados no nódulo AV utilizando o mecanismo de reentrada. Passaram-se aproximadamente 30 anos para esta confirmação ocorrer, através do trabalho de Goldreyer e Bigger5, em 1971. Neste mesmo ano, Goldreyer e Damato,6 relataram pela primeira vez o papel das propriedades eletrofisiológicas da dupla via nodal para a indução da taquicardia AV nodal.

Após estes trabalhos pioneiros, rapidamente outras investigações foram relatadas com demonstração das curvas de dissociação do nódulo atrioventricular,7-9 e as evidências eletrofisiológicas da taquicardia AV nodal.10-12

Caracteristicas Clínicas


A maioria dos pacientes com taquicardia AV nodal não apresenta nenhum tipo de cardiopatia estrutural, no entanto verificamos que existe uma prevalência maior em pacientes que apresentam prolapso de valva mitral.

A relação de sexo é de 3:1 com predomínio do sexo feminino.

Os pacientes com taquicardia paroxística secundária à taquicardia AV nodal tem sintomatologia de início e término súbito, semelhante à grande maioria das taquicardias paroxísticas, porém, geralmente relatam que as palpitações se apresentam mais na base do pescoço e na fúrcula esternal do que no precórdio, diferente das outras formas de taquicardia paroxística que geralmente são mais sentidas no precórdio.13

Bases Eletrofisiológicas da Taquicardia Paroxística Atrioventricular Nodal


A taquicardia AV nodal é o melhor exemplo de taquicardia por reentrada.

Pacientes com taquicardia AV nodal tem uma dissociação longitudinal eletrofisiológica do nódulo AV, existe portanto uma dupla via nodal. Há atualmente comprovação eletrofisiológica de que a dupla via nodal é formada por uma via de condução lenta e período refratário curto (via alfa) e outra de condução rápida e período refratário longo (via beta) (Fig. 10-1A).

Não está comprovado, até o momento, que as vias rápida e lenta anterógradas são as mesmas vias rápidas e lentas retrógradas.

Sempre se acreditou que as duas vias nodais estariam contidas no nódulo AV, porém atualmente tem surgido novas teorias que levantam dúvidas se as vias nodais estão inteira ou parcialmente contidas no nódulo AV.14

Para efeito didático, consideramos que as duas vias estariam contidas no nódulo AV.

Do ponto de vista eletrofisiológico, os átrios e os ventrículos não são necessários para perpetuar a taquicardia, diferente do que ocorre na taquicardia circular ortodrômica e antidrômica por vias acessórias.

A taquicardia AV nodal é um exemplo típico de arritmia por reentrada. Para ocorrer uma arritmia de reentrada, são necessários quatro fatores:

1. a existência do circuito;
2. uma zona de condução lenta;
3. bloqueio unidirecional do circuito; e
4. um estímulo desencadeante.

No caso do paciente com dupla via nodal, existe o circuito, a zona de condução lenta (via lenta), bastando para tanto o aparecimento de uma extra-sístole supraventricular que induz o bloqueio unidirecional e inicia a taquicardia.

Início da Taquicardia

O impulso sinusal ao chegar no nódulo AV, se propaga pela via rápida e lenta simultaneamente. Este alcança o feixe de His pela via rápida e retorna retrogradamente pela via lenta se anulando ao encontrar o impulso descendo por essa via (Fig. 10-1B).

Uma extra-sístole atrial se apresentando no momento em que a via rápida está refratária (o período refratário anterógrado da via rápida é quase sempre maior que da via lenta), fará com que o impuso elétrico alcance o feixe de His pela via lenta (Fig. 10-1C). O impulso então irá retornar retrogradamente pela via rápida, iniciando a taquicardia reentrante AV nodal (Fig. 10-2A). Este é o tipo mais comum de taquicardia AV nodal.

Em um baixo número de pacientes, podemos também encontrar um outro tipo de taquicardia AV nodal: a TAVN reversa ou incomum (Fig. 10-2B). Neste tipo de taquicardia, o impulso alcança o feixe de His pela via rápida e retorna pela via lenta, produzindo uma taquicardia. Esta taquicardia tem sempre um PR curto e um intervalo RP’ longo, diferente do que ocorre com a taquicardia AV nodal comum.

Taquicardia AV Nodal Comum

Nesta taquicardia, os impulsos reentrantes envolvem a via lenta anterogradamente (na direção átrio-feixe de His) e a via rápida retrogradamente (na direção feixe de His-átrio) (Fig. 10-1C).

Nestes pacientes, durante estimulação elétrica programada atrial, verificamos que o período refratário anterógrado da via rápida é mais longo que da via lenta. Quando se introduz extra-estímulos decrementais, existe um prolongamento do intervalo AH gradativo até se atingir o período refratário da via rápida, quando, subitamente, existe um prolongamento de mais de 50 mseg chamado de salto de onda ou "jump" anterógrado. A partir deste momento, com a continuação da estimulação decremental, permanece o aumento gradual do intervalo AH, até se atingir o período refratário da via lenta. Esta curva de refratariedade nodal é a mais típica dos pacientes com dupla via nodal (Fig. 10-3).

Durante estimulação decremental anterógrada no átrio, ao alcançarmos o período refratário da via rápida (ocorrência do jump), podemos verificar a presença de um eco nodal (Fig. 10-4A) ou o início da TAVN (Fig. 10-4B).

A diferença em milissegundos entre o período refratário da via rápida e o período refratário da via lenta, é a "janela" de indução da taquicardia AV nodal. Quanto maior for a janela, mais facilmente será a indução da taquicardia e mais sintomático será o paciente, porém, as propriedades eletrofisiológicas em relação a condutibilidade das vias também são importantes para a indução da taquicardia.

É possível se verificar a ocorrência de um "salto" anterógrado durante estimulação atrial fixa.

Alguns pacientes podem apresentar mais de um "salto" anterógrado, demonstrando a existência de múltiplas vias nodais (Fig. 10-5).4 Na nossa experiência pessoal, os pacientes com múltiplas vias nodais compreendem em torno de 10% da população que apresenta taquicardia AV nodal. Esses pacientes são geralmente muito sintomáticos e, durante o tratamento curativo através da ablação por radiofreqüência, necessitam de um maior número de aplicações de radiofreqüência, quando comparados com os pacientes que apresentam taquicardia AV nodal com dupla via nodal (um único "salto"). Esses pacientes podem ter mais de um tipo taquicardia intranodal, pois, além da possibilidade do mecanismo da taquicardia do tipo lenta-rápida, podem também apresentar uma taquicardia do tipo lenta-lenta.15

Conforme já exemplificado, o início da taquicardia AV nodal comum, ocorre geralmente após um complexo atrial prematuro que bloqueia a condução pela via rápida (período refratário maior) conduzindo anterogradamente pela via lenta. No momento em que o impulso completa o seu curso pela via lenta, a via rápida já recuperada do bloqueio inicial, permite a condução retrógrada do impulso e se inicia a TAVN (Fig. 10-4B). Geralmente durante a estimulação elétrica programada é possível induzir a taquicardia com um único extra-estimulo no átrio direito. Ocasionalmente, na dependência das propriedades eletrofisiológicas da via nodal rápida, da via nodal lenta e do átrio, são necessários dois ou três extra-estímulos para a indução da taquicardia. Quando há dificuldade na indução da taquicardia, pode-se utilizar drogas que alteram a refratariedade e condutividade das vias com o intuito de facilitar a indução como, por exemplo, a isoprenalina e a atropina.

Estimulação Ventricular

Durante estimulação elétrica programada ventricular com extra-estímulos decrementais, verificamos que geralmente o período refratário retrógrado da via rápida é maior que o da lenta, ocorrendo também um "salto" retrógrado; enquanto que na grande maioria dos pacientes com taquicardia AV nodal encontra-se um "salto" anterógrado, em menos de 50% dos pacientes o "salto" retrógrado é encontrado. Nos pacientes que apresentam curva de refratariedade retrógrada com "salto", é possível demonstrar a presença de ecos nodais reversos, porém a indução de taquicardia AV nodal reversa é muito rara e quando ocorre é induzida por estimulação ventricular (Fig. 10-6), diferente da taquicardia AV nodal comum, que raramente é induzida por estimulação ventricular.

Para ocorrer uma taquicardia AV nodal comum com estimulação ventricular, é necessário que o período refratário da via lenta seja mais longo que o da rápida, ou então que através de mais de um extra-estímulo possamos bloquear retrogradamente a via lenta e conduzir pela rápida.

Extra-Estímulos Durante a Taquicardia

Durante a taquicardia, geralmente as ondas A retrógradas registradas em átrio direito alto, His e seio coronário (átrio esquerdo), são praticamente simultâneas e estão temporalmente dentro ou no final do complexo QRS.

Durante a taquicardia, um extra-estímulo ventricular aplicado na ponta do ventrículo direito, no momento em que o His é refratário não avança a taquicardia, ou seja, o AA permanece fixo (Fig. 10-7). Isto significa, que enquanto o His é refratário, não podemos penetrar na taquicardia, já que o mecanismo desta utiliza exclusivamente o nódulo AV como circuito. Esta é a forma mais clássica de diferenciar uma taquicardia AV nodal de uma taquicardia ortodrômica utilizando uma via anômala médio-septal.

Bloqueios Distal, Proximal e de Ramos

Geralmente durante a taquicardia AV nodal encontramos um complexo QRS estreito com menos que 120 mseg, como na grande maioria das taquicardias supraventriculares. No entanto eventualmente podemos encontrar uma taquicardia com bloqueio de ramo esquerdo ou direito. Esses bloqueios de ramo podem ocorrer espontaneamente, ou induzidos por uma extra-sístole ou extra-estímulo durante um estudo eletrofisiológico.

É importante notar que em pacientes com taquicardia AV nodal, o ciclo da taquicardia não se altera com bloqueio de ramo direito (Fig. 10-8A) ou esquerdo (Fig. 10-8B), pois os ramos não participam do circuito da taquicardia. Este fenômeno difere nos pacientes com bloqueio de ramo funcional ipsilateral à uma via anômala durante uma taquicardia circular ortodrômica, em que o ciclo da taquicardia aumenta durante o bloqueio.

Durante a TAVN é possível, em algumas ocasiões, encontrar um bloqueio 2:1 a nível hissiano, neste caso verifica-se a presença de duas ondas A para um único complexo QRS (Fig. 10-9). Evidentemente, ao se encontrar este tipo de arritmia, devemos sempre confirmar que não se trata de uma taquicardia atrial.(Fig 10-10)

Para confirmar a presença de uma taquicardia AV nodal, além da presença de dupla via nodal e de extra-estímulos ventriculares durante a TAVN, conforme já exemplificados, devemos também aplicar extra-estímulos atriais durante a taquicardia, sem modificar o intervalo H-H’, comprovando que o átrio não participa do circuito (Fig. 10-11).

Durante a taquicardia AV nodal é também possível se encontrar uma taquicardia com bloqueio retrógrado 2:1 a nível atrial. Miles et al. publicaram recentemente o estudo eletrofisiológico de um paciente que apresentava estas características.14

Término da Taquicardia


A taquicardia AV nodal pode ser interrompida espontaneamente. Isto pode ocorrer como resultado de um bloqueio anterógrado na via lenta (Fig. 10-12A) ou do bloqueio retrógrado da via rápida (Fig. 10-12B). O término espontâneo da TAVN freqüentemente é acompanhado por variações de seu ciclo. Em alguns casos observamos um aumento progressivo do tempo de condução na via rápida retrógrada (VA aumentando progressivamente), até total interrupção da taquicardia. A manobra vagal geralmente termina a taquicardia com o prolongamento e bloqueio da via lenta (condução anterógrada) (Fig. 10-12A).

Os impulsos prematuros também podem interromper a TAVN, produzindo um bloqueio anterógrado ou retrógrado no circuito reentrante. Tipicamente, a TAVN é interrompida por um bloqueio anterógrado durante a introdução de impulsos atriais prematuros em momentos críticos, ou por um bloqueio retrógrado durante introdução de impulsos ventriculares prematuros. Entretanto, complexos prematuros ventriculares também podem interromper a taquicardia por um bloqueio anterógrado, se o impulso prematuro retrógrado conduzido pela via rápida alcançar a via lenta anterogradamente durante o seu período refratário.

Taquicardia AV Nodal Reversa

Esta taquicardia, ao contrário da forma comum, clinicamente é uma taquicardia extremamente rara.

Nesta taquicardia, os impulsos reentrantes envolvem a via rápida anterogradamente (na direção átrio-feixe de His) e a via lenta retrogradamente (na direção feixe de His-átrio) (Figs. 10-2B e 10-6). Nestes pacientes, durante estimulação elétrica programada ventricular, verificamos que o período refratário retrógrado da via rápida é mais longo que o da via lenta. Geralmente esta taquicardia reversa é induzida com extra-estímulos ventriculares (Fig. 10-6).

Eletrocardiograma

O eletrocardiograma em ritmo sinusal de pacientes com dupla via nodal pode ser totalmente normal ou apresentar um intervalo PR curto. Uma outra característica que pode ser eventualmente observada é a presença de uma alternância do intervalo PR, ora normal, ora aumentado simulando um bloqueio AV de primeiro grau.

A síndrome de Lown-Ganong-Levine, caracterizada pela presença de um intervalo PR curto ao ECG (Fig. 10-13), por apresentar clinicamente episódios de palpitações, foi descrita como secundária a uma via anômala atrionodal.15 No entanto, hoje sabemos que a grande maioria destes pacientes apresentam, na realidade, uma dupla via nodal associado a taquicardia AV nodal reentrante.

O eletrocardiograma obtido durante taquicardia dos pacientes com TAVN é bastante típico. Em 50% dos casos não observamos onda P retrógrada, pois a onda P na realidade coincide com o complexo QRS (Fig. 10-14). Em torno de 45% dos pacientes, a onda P ocorre no final do complexo QRS, simulando um bloqueio de ramo direito (onda R terminal em V1 e aVR) (Fig. 10-15). Raramente o intervalo RP’ é superior a 120 mseg.

Nos pacientes com taquicardia AV nodal do tipo incomum, encontramos sempre o intervalo RP’ maior que o intervalo PR , nesses casos deve-se fazer o diagnóstico diferencial com taquicardia ortodrômica atrioventricular utilizando uma via acessória com condução lenta (taquicardia de Coummel).

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