Capítulo 01 - Uso do Sinal Eletrocardiográfico para Avaliação do Sistema Nervoso Autônomo Cardíaco Capítulo 01 - Uso do Sinal Eletrocardiográfico para Avaliação do Sistema Nervoso Autônomo Cardíaco

Com o desenvolvimento tecnológico atual, pode-se através de programas específicos inseridos no Holter, determinar as variações contínuas que ocorrem nos valores dos ciclos cardíacos normais. Reflexos eferentes simpáticos e parassimpáticos atuando sobre o nódulo sinusal produzem modificações constantes dos ciclos P-P do eletrocardiograma, (Figura 1-1) expressão dos efeitos modulatórios autonômicos sobre o marca-passo principal do coração. Aceita-se que o sistema parassimpático, através de seus efeitos colinérgicos, seja o maior responsável pela variabilidade dos ciclos P-P normais. Corroborando esta afirmativa é a observação de que as drogas que produzem exarcebação dos efeitos vagais, como por exemplo os beta-bloqueadores, aumentam de forma evidente e significativa as flutuações dos ciclos cardíacos, e as que abolem como a atropina, produzem imediato efeito inverso (redução da variabilidade da freqüência cardíaca - VFC). Assim, a quantificação das flutuações dos ciclos P-P normais permite, de forma indireta, uma avaliação do perfil autonômico cardíaco. Quanto maiores os efeitos parassimpáticos maiores serão as flutuações. Uma baixa variabilidade indica a existência de depressão da atividade vagal e/ou exarcebação da atividade simpática cardíaca.

Importância da definição do perfil autonômico cardíaco: os reflexos autonômicos exercem um papel fundamental sobre todos os mecanismos regulatórios cardíacos. As propriedades eletrofisiológicas, a dinâmica cardíaca e a função contrátil são profundamente influenciadas por eles. Podem alterar de forma importante os mecanismos de doença, facilitando o aparecimento de eventos arrítmicos graves e muitas vezes fatais como a morte súbita. O sistema simpático exerce um nítido efeito arritmogênico tendo o parassimpático uma ação inversa, protetiva. A maioria dos eventos cardíacos maiores acompanham-se momentaneamente de um aumento da atividade simpática cardíaca. Assim, é possível como veremos posteriormente, que a análise do perfil autonômico cardíaco represente um elemento importante para a estratificação de risco em algumas doenças cardíacas.

Métodos de determinação da VFC

Dois métodos são normalmente utilizados para definição da VFC. Um utiliza domínio de tempo, usando índices extraídos das variações temporais dos ciclos (ms) ou dos percentuais de flutuação observados em ciclos subjacentes (%). O outro define e separa, por análise espectral, as diversas respostas de freqüência (Hz) observadas nas variações do sinal eletrocardiográfico (domínio de freqüência).

VFC em domínio de tempo:

A partir das variações dos ciclos cardíacos considerados normais, são extraídos índices para quantificação da VFC usando o tempo como variável. Representam valores que englobam todo o período de gravação ou parte do mesmo (registros horários por exemplo). Na maioria dos programas esses índices somente são avaliados a partir de um mínimo de cem ciclos sucessivos, mensurados por períodos de cinco minutos, desprezando-se automaticamente variações bruscas dos mesmos com valores superiores a 25% do precedente. Assim, hipoteticamente são abolidas as alterações conseqüentes as ectopias supraventriculares e ventriculares.

Os índices normalmente utilizados são (Figura 1-2):

NNs: número de intervalos P-P considerados normais. No exemplo da figura 1-2A seu valor encontra-se em 123.021.

NN: média de todos os ciclos cardíacos avaliados, representando a freqüência cardíaca média no período de registro (ms). Para transformar ciclo em freqüência, divide-se 60.000 pelo valor do mesmo. No exemplo da figura 1-2A seria 60.000 dividido por 692 ms correspondendo a uma freqüência cardíaca média de 86 bpm.

SDNN: desvio padrão de todos os ciclos P-P mensurados durante o registro (ms). No exemplo da figura 1-2 temos os valores globais de 124 ms, de 56 ms durante o dia e de 85 ms durante a noite (A,B,C).

SDANN: desvio padrão da média de todos os segmentos de cinco minutos avaliados durante o registro (ms). No exemplo da figura 1-2 seu valor global encontra-se em 114 ms, em 45 ms durante o dia e 62 ms durante o período noturno (A,B,C).

SDNN índex: média do desvio padrão de todos os segmentos de cinco minutos determinados no registro (ms). No exemplo da figura 1-2A, B, C, observamos um valor global de 46 ms e de 31 e 53 ms para o dia e a noite respectivamente.

NNNs: número de intervalos normais adjacentes durante o registro. No exemplo citado de 122.484 para todo o período de registro e de 24.991 e 17.345 para o dia e noite respectivamente (A,B,C).

rMSSD: raiz quadrada da media da soma do quadrado das diferenças entre ciclos adjacentes durante o registro (ms). No exemplo da figura 1-2 A, B, C, temos os valores de 24, 14 e 32 ms para todo o período de registro, dia e noite respectivamente.

pNN50: percentual de variação > 50 ms entre os ciclos normais sucessivos durante o registro (%). No exemplo observamos valores de 3,81, 0,14 e 10,25 % para o total do registro, dia e noite respectivamente (A,B,C).

Como veremos posteriormente o SDANN é um índice utilizado para estratificação de risco no pós-infarto do miocárdio. O rMSSD e o pNN50 representam índices com uma excelente expressão da VFC, são muito semelhantes, mostrando uma correlação linear próxima de um. Definem de forma bastante adequada as flutuações da atividade vagal.

O exemplo da figura 1-2 representa o sumário do relatório de Holter emitido pelo sistema DMI que usamos. Estão descritos os valores da VFC em domínio de tempo. Em A os globais das 24 horas, em B e C os mesmos durante o dia e a noite respectivamente e em D os valores horários de cada índice. A distribuição horária dos mesmos permite uma aferição temporal das flutuações autonômicas cardíacas como mostrado na figura 1-3, em relação ao pNN50, extraída do mesmo exemplo da figura 1-2. Nota-se como esperado, um progressivo aumento dos valores do índice (aumento da VFC) do período diurno para o noturno (a partir das 21 horas) expressão dos efeitos progressivos da modulação vagal. Com o despertar (8 para 9 horas) ocorre uma queda súbita da curva por redução da modulação parassimpática e conseqüente aumento da simpática.

Estratificação de risco usando-se índices em domínio de tempo: alguns índices de VFC em domínio de tempo têm sido amplamente utilizados para estratificação de risco no pós-infarto do miocárdio. Na maioria dos pacientes observa-se nas primeiras 48 horas de evolução do processo agudo uma progressiva redução da VFC por depressão da atividade vagal. A manutenção deste estado, ou seja, a não recuperação de um equilíbrio autonômico cardíaco adequado na fase crônica da doença modifica o seu prognóstico. O índice mais amplamente utilizado é o SDANN.

Em um total de 808 pacientes pós-infarto do miocárdio com seguimento clínico médio de 31 meses, Kleiger e col observaram uma mortalidade de 34,4% em 125 pacientes que apresentavam valores do SDANN < 50 ms; de 13,8% em um total de 472 pacientes com o índice > 50 e < 100 ms e de 9,0% em 211 pacientes com o SDANN > 100 ms. Assim, um corte < > 50,0 ms parece estratificar esta população específica (Kleiger RE et al: Am J Cardiol vol 59 – Fevereiro de 1987). Outros trabalhos posteriores confirmaram esses achados.

VFC em domínio de freqüência (figura 1-4): em 1920 o Barão francês Jean Baptiste J Fourier demonstrou que os sinais estão compostos de ondas sinusoidais com diferentes amplitudes, fases e freqüências (hertz) e que cada sinal periódico poderá ser desdobrado em suas respectivas ondas. Este é o princípio da chamada transformada rápida de Fourier que, quando aplicada às flutuações do sinal eletrocardiográfico, o desdobrará em suas diversas respostas de freqüência. Outros métodos poderão ser utilizados como o modelo matemático autoregressivo. Captando-se os sinais e os transformando obtém-se curvas espectrais que diferenciam as bandas de resposta como observado na figura 1-4. As curvas do espectro encontram-se assim distribuídas:

1. Componente de muito baixa freqüência (CMBF) abrangendo as respostas de freqüência entre 0,001 e 0,04 Hz. Representa o maior componente espectral sendo o seu significado não totalmente compreendido. Provavelmente relaciona-se com mecanismos de termo-regulação e renina-angiotensina.
2. Componente de baixa freqüência (CBF) englobando as respostas de freqüência entre 0,05 e 0,15 Hz. Representa a atividade simpática modulada pela parassimpática.
3. Componente de alta freqüência (CAF) abrangendo as respostas entre 0,15 e 0,40 Hz. Representa a modulação vagal.
4. Relação entre CBF/CAF expressa o balanço autonômico simpático vagal.
5. Energia total do espectro (ETE), define a variança espectral observada durante o período de registro.

A figura 1-4 nos mostra um exemplo de curvas espectrais obtidas por modelo autoregressivo ordem automática de um mesmo paciente e em momentos distintos (23 e 01 horas). Superiormente observa-se uma ETE de 1627 ms2 com um CBF (LF) de 266 e CAF (HF) de 158 ms2. Em função de um progressivo aumento da atividade vagal observa-se um incremento do CAF que passou para 421 ms2, com elevação simultânea do CBF e redução do CMBF (curva inferior). Essas modificações expressam a dinâmica constante da modulação autonômica sobre o coração, tendo este método a vantagem de poder separar os dois componente principais reguladores (simpático e vago).

Análise da dinâmica simpático/vagal: modificações posturais produzem rápidas transformações entre os componentes de baixa e alta freqüência por ativação de mecanismos baro-reflexos. A figura 1-5 nos mostra um exemplo dessa dinâmica. Superiormente, com o paciente deitado, nota-se que o CAF (B3) ocupa 65,9% do total do espectro (indicando dominância vagal – vagotonia). Com a inclinação do paciente para 90 graus (ato de sentar), observa-se uma imediata modificação no padrão da curva. A alteração postural reduziu expressivamente o componente vagal (B3 – 20,4% do espectro) e acentuou de forma expressiva o simpático (B2 – 75% do espectro). Este mecanismo ocorreu por rápida ativação do baro-reflexo que quando alterado favorece o aparecimento de quadros sincopais de origem vaso-vagal. Pacientes no pós-infarto do miocárdio com alterações do baro-reflexo têm seus prognósticos evolutivos agravados.

VFC em algumas doenças cardíacas: embora a maioria dos trabalhos de literatura sobre VFC relacionem-se com a doença coronária, já existem hoje subsídios para definir os padrões de VFC em algumas condições clínicas, inclusive parece ser o método apropriado para estratificação de risco em algumas condições, como por exemplo, a morte súbita cardíaca de caráter arritmogênico bem como definir padrões prognósticos naquelas doenças que evoluem com progressiva depressão do sistema nervoso autônomo como no caso do diabete melitus. A tabela que segue procura resumir esses achados principais: (Quadro 01-01)

Aplicações clínicas da VFC:

1.Estratificação de risco no paciente pós-infarto do miocárdio. Esta representa no momento a maior aplicação do método, inclusive sendo utilizado para avaliação de pacientes propensos a desenvolver morte súbita cardíaca arritmogênica.
2.Avaliação da neuropatia diabética.
3.Análise do perfil de fármacos em relação as suas ações sobre o SNA cardíaco. Teoricamente drogas que aumentam a atividade vagal como os beta-bloqueadores, os inibidores da ECA, exerceriam um maior efeito protetivo em termos de arritmogênese ventricular.
4.Como auxiliar no esclarecimento dos mecanismos indutores de síncope, em especial na forma do tipo neurogênica.
5.Como importante instrumento de pesquisa clínica.

Bibliografia Recomendada

1. Heart rate variability. Standards of measurement, physiological interpretation and clinical use. Task Force of the European Society of Cardiology and North American Society of Pacing and Electrophysiology. Eur Heart J 1996;17:354-381.

2. Malik M; Camm AJ: Heart Rate Variability – Futura, 1995.

3. Bigger JT; Fleiss JL; Steinman RC et al: Correlation among time and frequency domain measures of heart period variability two weeks after acute myocardial infarction. Am J Cardiol 1992;69:891.

4. Malik M; Camm AJ: Components of heart rate variability – What they really mean and what we really measure. Am J Cardiol 1993;72:821.

5. Castro CLB; Nóbrega ACL; Araujo CGS: Testes autonômicos cardiovasculares. Uma revisão crítica. Arq Bras Cardiol 1992;59: 75 e 151.


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