Capítulo 39 - Holter
Capítulo 39 - Holter
Roberto M. da Silva Sá
Introdução
O estudo das arritmias cardíacas e da insuficiência coronariana teve todo o seu alicerce sedimentado através da eletrocardiografia. Evidentemente, a informação que se pode obter através desse método apresenta grandes limitações, principalmente em situações de distúrbios transitórios do ritmo cardíaco e de episódios intermitentes de isquemia miocárdica, pois as chances de que se dispõe para detectar tais eventos de caráter fugaz e espaçados são muito pequenas através do ECG convencional.
A possibilidade de se realizar o registro contínuo do eletrocardiograma, por um tempo prolongado, em indivíduos durante suas atividades diárias, veio acrescentar um enorme subsídio ao estudo das arritmias cardíacas, permitindo ao médico detectar distúrbios do ritmo cardíaco, mesmo os intermitentes, quantificar sua freqüência, analisar sua complexidade, correlacioná-los com os sintomas do paciente e avaliar o efeito da terapêutica antiarrítmica empregada. Mais recentemente, tais registros permitem avaliar também as alterações da repolarização ventricular, e se chegar com razoável acuidade ao diagnóstico de isquemia miocárdica.
A primeira demonstração de que era viável transmitir o eletrocardiograma por meio de radiofreqüência foi feita em 1949 pelo Dr. Holter. Pesquisas posteriores, feitas por ele e por seus colaboradores, permitiram a criação da primeira unidade de registro utilizando fita magnética.
O registro contínuo, de longa duração do ECG (24 ou 48 horas), constitui a chamada eletrocardiografia dinâmica ou Sistema Holter. Essa tecnologia emprega pequenos gravadores (com baterias recarregáveis ou descartáveis - p. ex., de 9V), que registram, através de derivações bipolares, os parâmetros eletrocardiográficos em dois canais, utilizando fita magnética cassete tamanho standard ou fita de rolo. O tamanho e o peso pequenos permitem que o paciente transporte confortavelmente o gravador como uma bolsa a tiracolo ou atado ao cinto. A fita magnética, após o término do registro programado, é analisada através de um sistema computadorizado. O programa de computação (software) permite que seja reconhecido o ritmo normal (ritmo de base do paciente), e que seja identificado qualquer padrão anormal, podendo ainda fornecer médias horárias da freqüência cardíaca, quantificar os eventos anormais (extra-sístoles supraventriculares e ventriculares separadamente, episódios de taquicardia etc.) e as variações do segmento ST.
Modernamente surgiram novos sistemas de análise que fornecem o chamado full disclosure, que permite um rastreamento mais rápido e preciso dos eventos. Essa técnica permite também um playback completo da fita em cerca de 240 vezes a velocidade de registro, produzindo um relato com coordenadas de tempo. Esse relato fornece uma visão global dos traçados (cada folha abrange uma hora de traçado contínuo em tamanho reduzido), permitindo: (1) rever a qualidade do exame; (2) identificar todos os eventos anormais; e (3) selecionar as amostras desejadas para serem impressas em tamanho normal, em dois canais, de ECG convencional. (Atualmente, dispõe-se de impressora a laser acoplada ao sistema.) São fornecidos ainda gráficos em barra mostrando a incidência dos eventos arrítmicos e histograma de freqüência cardíaca e das flutuações do segmento ST. Surgem, com bastante rapidez, novos avanços em informática e cada vez mais dispomos de softwares com mais recursos para análise do Holter.
O Sistema Holter constitui o método atual mais sensível para detectar arritmias cardíacas de ocorrência espontânea. Por ser uma técnica não-invasiva, pode ser aplicada a grandes grupos de indivíduos com ou sem doença cardíaca.
Indicações Para o Holter de 24/48 Horas
O Sistema Holter apresenta uma ampla aplicação clínica, especialmente em duas grandes áreas: avaliação de arritmias cardíacas e da repolarização ventricular (pesquisa de isquemia miocárdica).
Com relação às arritmias cardíacas, podem-se distinguir três áreas principais de atuação: (1) seu valor diagnóstico na avaliação de sintomas; (2) seu valor prognóstico na identificação de fatores de risco em populações específicas de pacientes; e (3) na avaliação de procedimentos terapêuticos.
No Quadro 39-1 fornecemos as principais indicações que julgamos ser válidas para o estudo com o Sistema Holter.
A monitoração cardíaca através do Holter representa hoje a técnica mais amplamente utilizada na avaliação de pacientes com sintomas suspeitos de serem decorrentes de arritmias cardíacas. Queixas de palpitações, lipotimia ou episódios de síncope podem perfeitamente ser devidas a distúrbios do ritmo cardíaco, porém é imperativo correlacionar simultaneamente a ocorrência de tais sintomas com as alterações eletrocardiográficas. É sempre benéfico para a correta avaliação do paciente, que esse seja examinado por um período de 24 ou 48 horas para se definir o seu ritmo de base e detectar eventuais distúrbios do ritmo e/ou de condução que possam estar por trás.
A Fig. 39-1 é de um paciente de 68 anos, que vinha apresentando episódios de lipotimia de etiologia até então não esclarecida. Submetido a estudo com Holter de 24 horas, registrou-se, no final do jantar, períodos de alto grau de BAV com FC de 32 bpm.
A Fig. 39-2 é de uma senhora de 55 anos, sem evidência clínica de doença cardíaca prévia, que vinha apresentando há algumas semanas queixas de palpitações. O seu ECG revelou ritmo sinusal e raras extra-sístoles ventriculares. O Holter de 24 horas mostrou importante instabilidade elétrica ventricular por extra-sístoles freqüentes (cerca de 6.780 ectopias nas 24 horas) e curtos períodos de taquicardia ventricular não-sustentada, demonstrada nesse traçado.
É digno de nota que, em pacientes com função ventricular normal, a presença de taquicardia ventricular com freqüência cardíaca em torno de 150 bpm pode não produzir repercussões hemodinâmicas significativas e, portanto, não ser evidenciada clinicamente.
Sempre que se fizer necessário o uso de medicação antiarrítmica, é importante que se estabeleça parâmetros de eficácia terapêutica. O Holter representa um excelente método para esse tipo de avaliação, pois permite quantificar os eventos anormais antes e após o tratamento, além de fornecer informações adicionais sobre possíveis efeitos tóxicos da droga. Admite-se como sendo eficaz a ação de uma droga antiarrítmica, quando esta produz uma redução de 80% da incidência de uma determinada arritmia (p. ex., extra-sístoles ventriculares), comparando-se dois registros de 24 horas (antes e após a terapêutica).
Uma outra área bastante importante de aplicação da monitoração pelo Sistema Holter está relacionada ao aspecto profilático de arritmias ventriculares. Na última década, têm sido feitas tentativas de selecionar grupos de pacientes tidos como sendo de alto risco para morte súbita. Esses grupos incluem pacientes com passado de infarto do miocárdio (IAM), principalmente os que apresentam bloqueios de ramo associado, os submetidos à cirurgia cardíaca e os portadores de miocardiopatia hipertrófica ou dilatada. Tem sido proposto que o Holter deva ser realizado em todos esses pacientes antes da alta hospitalar e, posteriormente, pelo menos de 6 em 6 meses.
Pacientes portadores de cardiopatia isquêmica apresentam, com muita freqüência, um amplo espectro de sintomas clínicos. No entanto, existem sabidamente momentos em que pode não haver qualquer manifestação clínica da doença, porém, ao ECG, surgem alterações bastante sugestivas de isquemia miocárdica, hoje já muito bem documentadas através de registros de Holter, sendo chamadas de "isquemia miocárdica silenciosa". Inúmeros trabalhos têm demonstrado que, em uma população geral de indivíduos do sexo masculino acima de 45 anos, 2 a 4% apresentam isquemia miocárdica ao Holter sem sintomas. Nos pacientes com passado de IAM, 30 a 40% apresentam isquemia assintomática. Dos indivíduos com episódios de dor precordial associados às alterações no ECG, mais de 80% apresentam também episódios isquêmicos assintomáticos no registro de eletrocardiografia dinâmica. Por esses dados fica patente a real importância de se pesquisar essa entidade na prática clínica diária.
A Fig. 39-3 representa um caso típico de alterações de ST-T compatível com isquemia miocárdica, em indivíduo assintomático.
O Sistema Holter firmou-se como um método de enorme importância prática na clínica diária, por ser de simples realização e altamente informativo.
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