Capítulo 33 - Dissociação Atrioventricular Capítulo 33 - Dissociação Atrioventricular

Márcio Luiz Alves Fagundes
Fernando Eugênio dos Santos Cruz Filho


Introdução

Durante muitos anos houve confusão ao se relacionar uma definição precisa para o conceito de dissociação atrioventricular (DAV). Alguns autores1,2 procuram diferenciar o bloqueio atrioventricular (BAV) total de uma DAV completa simplesmente referindo que os átrios teriam uma freqüência mais rápida do que os ventrículos no primeiro caso e vice-versa na última condição. Tal definição é errônea, visto que o BAV total é uma das importantes causas de DAV completa e a relação de freqüência, acima mencionada, nem sempre é verdadeira.1

A DAV é um termo inespecífico que decorre de um distúrbio do ritmo não-específico em que dois marcapassos (MP) ativam o coração concomitante, mas independentemente. Um dos MP tem origem nos átrios (geralmente de origem sinusal, mas podendo ser ectópico) e ativa os átrios predominantemente; já o outro MP origina-se na junção atrioventricular (JAV) ou nos ventrículos e ativa estes predominantemente. Cada MP tem seu próprio ritmo intrínseco e, dessa forma, os dois ritmos são dissociados e essencialmente independentes entre si. Em função disso, observa-se, ao ECG, que as ondas P e os complexos QRS não têm relação entre si. O fenômeno poderá estar restrito a um ou poucos ciclos ou adquirir uma forma mais sustentada.3

A DAV é, portanto, um fenômeno eletrofisiológico secundário, nunca uma condição primária.2

Existem duas condições básicas que determinam o aparecimento da DAV:4

1. Distúrbio na formação do impulso.
2. Distúrbio na condução do impulso.

No primeiro caso - distúrbio na formação do impulso - relaciona-se com a existência de dois MP de comando, funcionando com freqüências próximas, ou o MP inferior, com uma freqüência mais elevada, havendo sistematicamente um encontro, em algum segmento do trajeto AV, dos potenciais elétricos propagados por ambos. Quando isso ocorre, os impulsos desses MP "colidem", o que impede que cada um siga o seu curso natural. Esse impedimento é denominado interferência e a DAV resultante é denominada DAV por interferência (Fig. 33-1B).

No segundo caso -distúrbio na condução do impulso - existe, freqüentemente, um transtorno orgânico da condução AV, levando a uma interrupção no enlace AV, o que pode determinar o aparecimento de um segundo MP para comandar o segmento distal, não havendo, portanto, uma colisão das frentes de onda de propagação elétrica, como ocorre no primeiro caso. A esse fenômeno denominamos DAV por bloqueio (Fig. 33-1A). Esse termo, entretanto, é pouco utilizado na prática.

Dissociação AV por Interferência (DAVI)

Como dito anteriormente, nessa condição pressupõem-se haver dois MP funcionando simultânea e independentemente, com freqüências sincrônicas ou próximas ou, ainda, o MP inferior sendo o mais rápido. Os potenciais propagados por esses MP encontram-se em algum local do trajeto AV, havendo uma colisão entre ambos (Fig. 33-1B).

O mecanismo eletrofisiológico básico decorre de um jogo de refratariedade determinado por cada frente de onda. Dependendo do momento em que os potenciais ocorram, é possível que haja a penetração do MP superior na região ativada pelo inferior, despolarizando-a integralmente (fenômeno de captura Fig. 33-2B) ou parcialmente (fenômeno de fusão - Fig. 33-2A). O inverso, embora menos freqüente, também é possível.3

Nessa forma de DAV as combinações mais comuns são: (a) dissociação entre os ritmos sinusal e um juncional e (b) dissociação entre os ritmos sinusal e um ventricular. Outras combinações são possíveis, mas raramente observadas .4

A instalação da DAV ocorre por dois mecanismos básicos:3

a. Em função do retardo súbito ou progressivo dos potenciais propagados pelo nó sinoatrial (NSA) - como ocorre na bradicardia sinusal ou na arritmia sinusal -, favorecendo o aparecimento de fenômenos de escape (E) de origem juncional ou ventricular, ou seja, o aparecimento de ritmos ditos passivos. É a DAVI por ritmo passivo.

Em certas arritmias primárias, como as formas parciais de bloqueio sinoatrial ou de BAV (p. ex., BAV II), por poderem dar origem a batimentos de escape, a DAV resultante tem sido englobada no conceito da DAVI por ritmo passivo; entretanto, a nosso ver, em função do distúrbio eletrofisiológico básico ser um distúrbio de condução, achamos preferível posicioná-las no grupo da DAV por bloqueio.

b. Em função do aparecimento de um MP com freqüência superior à do ritmo básico, como as extra-sístoles, as taquicardias juncional e ventricular, as parassístole e o flutter ventricular. Essa condição é freqüentemente denominada DAVI por usurpação.

DAVI por Ritmo Passivo

Mecanismo

Em função do retardo na formação do impulso no NSA (p. ex., bradicardia sinusal), a freqüência sinusal pode lentificar de tal forma que se aproxima (ou é inferior) à de um MP secundário (também denominado subsidiário- podendo originar-se na JAV ou nos ventrículos), permitindo, portanto, seu aparecimento.

Captura/Fusão

É possível a sua ocorrência, como já referido, dependendo do momento em que aconteçam as despolarizações dos MP (ou seja, fora dos períodos refratários determinados por eles).

Exemplos

A Fig. 33-3 é um exemplo de uma bradicardia sinusal. Com a lentificação do ritmo sinusal de um ciclo de 1.160* para 1.240, há o aparecimento de um ritmo de escape juncional (QRS similar ao do sinusal) - com pequena aberrância de condução - com ciclo de 1.180. Com a aceleração da freqüência sinusal acima daquela do ritmo juncional, restabelece-se o ritmo sinusal.

DAVI por Usurpação

Mecanismo

Decorre do aparecimento de um segundo MP com freqüência superior à do MP sinusal. Quando isso acontece, o ciclo determinado por esse MP subsidiário ( juncional ou ventricular) aproxima-se do ciclo sinusal. Conseqüente, ambos MP, disparando quase que sincronicamente, condicionam que seus impulsos colidam e, interferindo entre si, impeçamseu curso, resultando na dissociação. Essa DAV pode estar presente por apenas um batimento (como ocorre, p. ex., nas extra-sístoles) ou pode persistir por longos períodos (como, p. ex., em casos de taquicardia ventricular ou juncional).

*Esse número e os demais das figuras e textos estão em ms.

Captura/Fusão

Da mesma forma que na DAVI por ritmo passivo, é possível a observação.

Exemplos

A Fig. 33-4 é um exemplo de DAV em decorrência de um ritmo ventricular acelerado. O ciclo ventricular é ligeiramente inferior (760 = 78,9 bpm) ao do sinusal (780 = 76,9 bmp), ou seja, com uma freqüência de disparo ligeiramente superior, o que condiciona o aparecimento da DAV. Quando dois MP apresentam freqüências muito próximas, é dito ocorrer uma DAV isorrítmica (para maiores detalhes sobre esse fenômeno, sugerimos a leitura dos artigos referidos na bibliografia).4,5

A Fig. 33-5 é outro exemplo de uma DAV em presença de uma taquicardia que é freqüentemente associada ao infarto de parede inferior ou à intoxicação digitálica e denomina-se taquicardia juncional não-paroxística. Nesse caso, ocorreu em presença de um infarto de parede ínfero-posterior (é bem nítida a onda q do infarto na derivação esofágica). O ciclo ventricular de 530 é ligeiramente inferior ao do sinusal, de 560.

A DAV é uma característica freqüente nos casos de taquicardia ventricular (veja o Capítulo 30). Na Fig. 33-6 os traçados superiores correspondem aos registros das 12 derivações do ECG, mostrando o padrão da taquicardia ventricular. A DAV é evidente na derivação esofágica (registro inferior), em que pode ser observado que o ciclo sinusal de 460 é bem superior ao ventricular, de 360.

As Figs. 33-7 e 33-8 são outros exemplos de DAVI por usurpação. Na Fig. 33-7 os ciclos sinusais e os ventriculares da taquicardia juncional são bem próximos e iguais a 760 e 740, respectivamente. A Fig. 33-8 é o registro de outra taquicardia juncional não-paroxística. Os complexos QRS apresentam uma morfologia de bloqueio de ramo esquerdo. Os ciclos da taquicardia são variáveis, havendo dois fenômenos de captura (C) quando as ondas P ocorrem em um momento propício (denominado "janela") no ramo ascendente da onda T. Esses batimentos de captura podem ser diagnosticados quando ocorre um súbito encurtamento do ciclo da taquicardia (640 e 610).

As Figs. 33-9 e 33-10 representam exemplos de DAV por ectopias ventriculares. O fenômeno decorre da condução retrógrada determinada pelas extrasístoles. A Fig. 33-9 é o registro de uma derivação de monitor. Observam-se três extra-sístoles ventriculares. Nas duas últimas, ocorre uma DAVI momentânea em função da colisão entre a condução retrógrada da extra-sístole e a anterógrada sinusal.

Na Fig. 33-10 os três primeiros batimentos são de origem sinusal. Logo após, observa-se uma extra-sístole ventricular e, a seguir, três batimentos de origem juncional dissociados das ondas P sinusais. A partir do oitavo batimento, há o retorno ao ritmo sinusal. Medindo-se o intervalo entre a última onda P antes da extra-sístole (terceiro batimento) e a que aparece junto com o último batimento juncional (sétimo batimento), encontra-se um valor de 3.320, o qual englobaria quatro ciclos sinusais com valor de 830. Esse valor é nitidamente maior do que o ciclo sinusal médio medido entre as últimas ondas P (do sétimo ao décimo batimento): 2.300 = 767 x 3. A explicação seria, então, que a extra-sístole ventricular faria uma condução retrógrada, passando pelo NAV, e atingiria o NSA, despolarizando-o. Como o MP juncional é o primeiro a ser despolarizado retrogradamente e, posteriormente, o sinusal, haverá uma antecipação dos mesmos, assumindo momentaneamente o ritmo cardíaco.

Dissociação AV por Bloqueio

A DAV pode ocorrer como resultado de um retardo ou bloqueio na junção sinoatrial (como nos bloqueios sinoatriais) ou na junção AV (como nos BAV). Esse bloqueio ou retardo permite o escape de um MP subsidiário. No caso de um BAV total, há interrupção completa do enlace AV, obrigando que haja a emergência desse MP secundário, responsável pela despolarização do segmento distal ou pós-bloqueio.

Um exemplo dessa condição é mostrado na Fig. 33-11. Observam-se duas seqüências típicas de um BAV do 2ºgrau tipo Wenckebach, caracterizadas por um prolongamento progressivo do intervalo PR até que uma onda P seja bloqueada. Após as ondas P bloqueadas, ocorrem pausas (1.560 e 1.600) e o aparecimento de escapes juncionais. Como esses batimentos acontecem momentos antes das próximas ondas P (marcadas com *), criaram-se, momentaneamente, ciclos com DAV.

Os BAV do 2ºgrau tipo 2:1 podem determinar o aparecimento de formas particulares de DAV. A Fig. 33-12 é um interessante exemplo dessa arritmia. O ritmo de base é um BAV 2:1. Após cada onda P bloqueada, sempre ocorre um batimento de escape (E) juncional que determina os momentos de DAV. A próxima onda P, após a bloqueada pelo batimento de E, é sempre conduzida. A esse ritmo denominamos escape-captura.6 As pausas determinadas pelas ondas P bloqueadas do BAV 2:1 de 1.160 são o intervalo de escape do ritmo juncional, representando uma freqüência potencial de 52 bpm. Um outro fenômeno interessante que pode ocorrer em casos de BAV 2:1 é que os intervalos PP que englobam os batimentos de captura são menores do que os que não os englobam (p. ex., de 620 no início do traçado e de 820 e 800 no fim). Esse fenômeno, denominado arritmia ventriculofásica, decorre de complexos mecanismos hemodinâmicos e eletrofisiológicos (as explicações detalhadas poderão ser encontradas em livros específicos de arritmias).

Bibliografia

1. Chung, E. K. Y. Diagnosis and clinical significance of atrioventricular (A-V) dissociation. In: Sandoe E.; Flested-Jensen, E.; Olesen, K. H. (eds.) Symposium on Cardiac Arrhythmias. Elsinore, Denmark, April, 1970. Published by A. B. Astra Sodertalje, Sweden, p. 171, 1970.

2. Pick, A. A-V dissociation. A proposal for a comprehensive classification and consistent terminology. Am. Heart J., 66:147,1963.

3. Bergman, L. & Maia, I. G. O conceito de dissociação AV. In: Maia, I. G. (ed.) ECG nas arritmias. Rio de Janeiro, Cultura Médica, 1989. Cap. 15, p. 337.

4. Schamroth, L. The principles and mechanisms of A-V dissociation. In: The disorders of cardiac rhythm. 2 ed. Londres, Blackwell Scientific Publications, 1980. Vol. 1, Cap. 45, p. 275.

5. Schubart, A. F.; Marriott, H. J. L. & Gorten, R. M. Isorhythmic dissociation. Atrioventricular dissociation with synchronization. Am J. Med., 24:209, 1958.

6. Schamroth, L. Escape-capture bigeminy. In: The disorders of cardiac rhythm. 2. ed. Londres, Blackwell Scientific Publications, 1980. Vol. 1, Cap. 53, p. 329.

7. Parsonnet A. F. & Miller, R. J. L. Heart block. The influence of ventricular systole upon the auricular rhythm in complete and incomplete heart block. Am. Heart J., 27:676, 1944.

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