Capítulo 32 - Ritmos de Escape Capítulo 32 - Ritmos de Escape

Ivan G. Maia

Introdução

A manutenção do ritmo sinusal normal deve-se à presença de uma série de fenômenos eletrofisiológicos que permitem uma dominância do comando principal (sinusal) sobre os subsidiários. Entre esses fenômenos, destaca-se a presença de um automatismo mais exacerbado, produzindo uma estimulação mais rápida, e, portanto, de característica mais precoce, e um mecanismo de inibição automática, imposto pela estrutura sinusal aos comandos inferiores. Com relação ao primeiro item exposto, seu substrato é a presença de um fenômeno de despolarização diastólica muito desenvolvido,1 caracterizado por uma rápida ascensão de fase 4 do potencial de ação transmembrana, induzindo uma precoce (em relação aos marcapassos naturais) auto-estimulação, além de também apresentar uma freqüência intrínseca maior (freqüência própria de cada grupo de células automáticas, que independe de suas relações externas). Em relação ao segundo item, demonstra-se clínica e experimentalmente a existência ou presença de um mecanismo próprio de todas as células automáticas, caracterizado por uma inibição transitória do fenômeno automático,1 quando as mesmas são supra-estimuladas. Cada grupo de células apresenta freqüências intrínsecas próprias que, no coração, vão diminuindo à medida que caminhamos do nódulo sinusal para os ventrículos (sistema purkinjeano apresentando os mais baixos valores, em torno de 20 bpm). Ao estimularmos essas células com freqüências maiores que as suas intrínsecas e subitamente pararmos a estimulação, observaremos que as mesmas manifestam-se com freqüências menores, havendo uma progressiva reciclagem até que atinjam suas freqüências intrínsecas próprias. Assim, no coração, o nódulo sinusal, disparando seus estímulos a uma freqüência superior à de todos os marcapassos inferiores, coloca os mesmos em estado de inibição constante. A perda momentânea ou mais permanente desse estado inibitório, por depressão da função sinusal, permitirá o aparecimento dos ritmos de escape. Dessa forma, pode-se entender que esses ritmos são, na realidade, de substituição, passivos e, como conseqüência, acontecem tardiamente na diástole. Quando se manifesta em apenas uma despolarização, constituem um "batimento de escape". Quando se apresentam de forma mais sustentada, são definidos como "ritmo de escape" ou de substituição. Por suas próprias características, têm freqüência mais baixa do que a do ritmo sinusal normal, sendo suas características eletrocardiográficas dependentes do seu local de origem.2

Classificação Quanto à Origem

Ritmos de Escape Atriais

Caracterizam-se pela presença de um comando de escape localizado ou no átrio direito ou no esquerdo, em posição alta ou baixa em relação aos mesmos. No primeiro caso, a ativação dessas cavidades será craniocaudal e no segundo o inverso, ou seja, os átrios se ativarão de baixo para cima, produzindo ondas P negativas nas derivações D2, D3 e aVF, pois o vetor médio de ativação atrial dirige-se para cima. Como a ativação atrial, em virtude da localização do foco, precede a ventricular, teremos no ECG uma onda P ocorrendo antes do complexo QRS, sendo essa característica fundamental para a definição de um ritmo de escape atrial. A morfologia da onda P, analisada principalmente no plano frontal, poderá definir como os átrios estão sendo despolarizados e, assim, permitir uma identificação do foco de origem. Quando essa onda P tem características semelhantes às observadas durante ritmo sinusal, ou seja, positiva em D1 e D2, o foco de origem situa-se próximo ao nódulo sinusal. Quando a mesma mostra-se positiva em D1, porém negativa em D2, D3 e aVF (ativação caudocranial), define-se a presença de um ritmo atrial baixo, na grande maioria das vezes de átrio direito. Uma inversão na polaridade da onda P em D1, indicando uma "troca" na despolarização atrial (da esquerda para a direita), indica a presença de um ritmo de escape atrial esquerdo. Nesse caso, como na quase totalidade deles, a localização do foco é baixa, a negatividade da onda de despolarização atrial também será observada nas derivações D2, D3 e aVF. Raramente a localização do foco é alta, havendo necessidade, quando isso ocorrer, de um diagnóstico diferencial com a dextrocardia. Assim, resumindo o exposto, diagnosticaremos um ritmo de escape atrial quando observarmos uma onda P ectópica tardia, ou um ritmo lento (geralmente inferior a 50 bpm), precedendo o complexo QRS, sendo as características morfológicas dependentes da origem do foco. A Fig. 32-1 mostra-nos exemplos de ritmo de escape de origem atrial.

Ritmos de Escape Juncionais ou Nodais

Nesse caso, o foco de origem encontra-se na junção AV, produzindo sempre uma despolarização atrial caudocranial e, como conseqüência, negativa em D2, D3 e aVF, porém nunca negativa em D1.Como a tendência do vetor médio de ativação atrial retrógrado é de orientar-se levemente para a direita, a onda P será positiva em aVR. Em relação à posição da onda P com referência ao complexo QRS, duas possibilidades estão presentes: a onda P sucede o complexo QRS ou coincide com o mesmo. Ambas vão depender da velocidade de condução retrógrada, na subida do estímulo para despolarizar os átrios, e da anterógrada, em direção aos ventrículos. Quando a condução anterógrada se faz mais rápida que a retrógrada, a ativação ventricular precederá a atrial e, como conseqüência, a onda P ocorrerá após o complexo QRS. Quando as velocidades de condução anterógrada e retrógrada são semelhantes, haverá coincidência nas ativações atrial e ventricular, ficando a onda P mascarada dentro do QRS e não identificável no traçado. Quando a onda P precede o QRS, sugerindo uma velocidade de condução retrógrada mais rápida, definese não mais um ritmo juncional e sim um atrial baixo, pois, como o foco da junção é para-hissiano, tendo que atravessar retrogradamente o nódulo AV, tradicionalmente com condução lenta, esse mecanismo dificilmente ocorrerá, a menos que exista uma condução nodal acelerada. O ritmo de escape juncional é o mais freqüentemente observado, pois representa a substituição natural do ritmo sinusal em função da hierarquia de freqüências observadas no coração. Quando existe depressão da função sinusal associada à da junção AV, o foco de substituição migrará para outros locais, geralmente os ventrículos. A Fig. 32-2 mostra-nos exemplo de ritmo de substituição ou escape de origem juncional.

Ritmos de Escape Atriais e Juncionais Seqüenciais

Uma depressão momentânea do ritmo sinusal, geralmente de ação vagal, poderá produzir uma mudança de ciclo a ciclo na posição do marcapasso de escape, havendo despolarizações sinusal, atrial e juncional sequênciais. Constitui esse fenômeno um ritmo tipo "marcapasso migratório". De ciclo a ciclo, a morfologia e a polaridade da onda P modificam-se sempre em função do seu local de origem. Simultaneamente modifica-se o ciclo R-R, havendo também um progressivo encurtamento do intervalo PR à medida que o foco caminha em direção à junção AV. Ocorre, também de forma cíclica, um retorno às condições iniciais, ou seja, ao ritmo sinusal. Assim, o aspecto eletrocardiográfico torna-se curioso, com a onda P passando da positividade para a negatividade, com morfologias intermediárias. A Fig. 32-3 mostra-nos um exemplo de marcapasso migratório.

Ritmo de Escape-Captura

Quando de forma cíclica, observarmos o aparecimento de um ritmo, na grande maioria das vezes juncional, alternando com o ritmo sinusal, está constituído o chamado ritmo de escape-captura (escape juncional e captura sinusal). Nesse ritmo veremos a alternância de um ciclo longo e um mais curto. No final do ciclo mais longo encontra-se o batimento juncional, e no início do mais curto, o de origem sinusal. A explicação para o fenômeno é simples: ocorre uma despolarização sinusal com a sua seqüência de eventos; a seguir, por depressão momentânea dessa estrutura, ocorre um batimento de escape, sucedido por uma nova despolarização sinusal em um tempo mais curto. O achado poderá ser apenas transitório ou sustentar-se, permitindo registros mais longos, mostrando de forma mais característica a relação ciclo longo-ciclo curto. A Fig. 32-4 mostranos um exemplo do fenômeno de escape-captura

Ritmos de Escape Ventricular

O foco do ritmo de substituição encontra-se em nível ventricular, ou nos fascículos ou no tronco de feixe de His ou, ainda, em uma posição periférica no Purkinje ventricular. Para que ocorra um ritmo de escape ventricular, uma das duas situações que em seguida analisaremos deverá estar presente: ou existe uma depressão simultânea da função marcapasso em níveis sinusal, atrial e juncional, permitindo com isso, e hierarquicamente, uma manifestação ventricular, ou o comando ventricular está livre das interferências impostas pelo ritmo sinusal. Nesse caso, não há enlace atrioventricular, ou seja, o ritmo de substituição ocorre pela existência de um bloqueio AV total. Em ambas as situações o complexo QRS gerado pelo escape tende a ser alargado, pois o padrão de ativação ventricular expressa um processo anormal de despolarização dos ventrículos. Morfologicamente, mimetizará um bloqueio de ramo direito ou esquerdo, na dependência de estar respectivamente localizado no ventrículo esquerdo ou no direito. Quando a origem do foco for fascicular (ramo direito ou esquerdo), embora o complexo QRS gerado também se mostre alargado, o grau de aberrância será menor com uma ativação ventricular (duração do complexo QRS) em torno de 0,12 segundo. Nesse caso também teremos morfologicamente um padrão de bloqueio de ramo direito ou esquerdo. Um ritmo de escape ventricular poderá mostrar um complexo QRS de aspecto normal. Quando isso ocorrer, poderemos deduzir que a ativação ventricular faz-se de forma seqüencial, adequada ou normal. Para que isso ocorra, o foco de origem deverá estar localizado ao nível do tronco do feixe de His, em uma posição alta. Uma despolarização a partir dessa origem produz uma seqüência normal no processo de despolarização ventricular, pois o estímulo oriundo do His penetra por caminhos normais em sua seqüência de despolarização. O exemplo mais típico dessa situação é o bloqueio AV total (BAVT) congênito, cuja interrupção do enlace atrioventricular ocorre entre o nódulo AV e o tronco do feixe de His, permitindo o aparecimento de um ritmo de escape ventricular alto. É importante assinalar que existe uma regra no coração em termos de ritmo de substituição em BAVT. O marcapasso de escape, responsável pela despolarização da porção distal à zona bloqueada, terá uma localização imediatamente abaixo dessa zona. Assim, um BAVT com complexos QRS largos pressupõe a existência de um bloqueio ou a perda do enlace atrioventricular distal ao tronco do feixe de His (pós-hissiano).

A Fig. 32-5 mostra-nos exemplos de escapes ventriculares.

Finalizando, gostaríamos de enfatizar que os batimentos de escape constituem ectopias que não devem ser confundidas com extra-sístoles. O escape, por sua gênese, representa sempre um fenômeno tardio dentro do ciclo cardíaco. Ao contrário, as extra-sístoles, pelo seu caráter ativo, usurpativo, representam eventos precoces, encurtando, como conseqüência, o ciclo cardíaco. Por mais tardia que ocorra uma extra-sístole, o ciclo por ela determinado (batimento sinusal-extra-sístole) não deverá ser maior que o ciclo básico sinusal (Fig. 32-6).

Bibliografia

1. Cranefield, P. F. The Conduction of the Cardiac Impulse. Futura Co., NY, 1975.

2. Maia, I. G. ECG nas Arritmias Cardíacas. Editora Cultura Médica, Rio de Janeiro, 1989.

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