Capítulo 25 - Mecanismos Produtores de Arritmias
Capítulo 25 - Mecanismos Produtores de Arritmias
Roberto M. da Silva Sá
Introdução
Estudos recentes das arritmias cardíacas têm produzido uma enorme quantidade de novas informações, referentes aos seus mecanismos eletrofisiológicos, reconhecimento eletrocardiográfico e manuseio.
Cada vez mais, torna-se imperativa a necessidade de se conhecer os mecanismos eletrofisiológicos que possam desencadear e/ou perpetuar uma determinada alteração do ritmo cardíaco para se ter uma abordagem mais racional e criteriosa do mesmo.
As arritmias cardíacas podem ser decorrentes de anormalidade na geração ou na condução do estímulo elétrico, ou de ambos.
O Quadro 25-1 mostra os principais mecanismos eletrofisiológicos implicados na gênese das arritmias.
A ativação cardíaca normal é iniciada no nó sinusal, onde as células marcapasso disparam a intervalos regulares e com uma freqüência dependente das influências autonômicas e das necessidades hemodinâmicas do corpo.
Existem duas maneiras pelas quais um estímulo elétrico pode ser espontaneamente iniciado: 2
1. Automatismo de fase 4 ou
2. Atividade deflagrada
Automatismo é a capacidade de uma célula de se despolarizar espontaneamente, atingir o potencial limiar e iniciar um potencial de ação.
O automatismo não é, em condições normais, uma propriedade das fibras miocárdicas comuns. No entanto, tem sido demonstrado3 que, se o potencial de repouso dessas células for reduzido a -60 mV ou se o coração estiver doente,4 pode aparecer um automatismo anormal, mesmo em fibras musculares banais atriais e ventriculares, sob a forma de um potencial de ação do tipo resposta lenta. Entende-se, portanto, que automatismo anormal refere-se à despolarização diastólica espontânea que ocorre em níveis de potencial de repouso muito baixos, em uma célula que apresenta, em situações normais, níveis mais elevados dos mesmos. Os potenciais de ação gerados por esse mecanismo são predominantemente cálcio-dependentes.
A segunda maneira pela qual estímulos elétricos podem ser iniciados em células cardíacas é através de atividade deflagrada por pós-potenciais. Definese atividade deflagrada (triggered activity) como sendo aquela na qual um potencial de ação não-espontâneo é gerado por pós-potenciais que atingiram o potencial limiar, sendo causado pelo potencial de ação prévio. Uma fibra passível de desenvolver atividade deflagrada mantém-se em repouso até ser estimulada por um potencial de ação produzido no local, ou por um proveniente de outro local, que se prolonga até atingir a fibra. Um ritmo ativo pode ser sustentado por esse mecanismo, se cada potencial de ação desencadeado após o primeiro for produzido por um pós-potencial causado pelo potencial de ação precedente.5
Os pós-potenciais podem ocorrer antes ou após a completa repolarização de fibra. Consideram-se pós-potenciais precoces (PPP) as despolarizações secundárias, que ocorrem antes do término da repolarização. Caracteristicamente, a despolarização secundária começa com níveis de potencial de ação que estão próximos aos obtidos na fase de platô, na fase 2 ou na fase 3.1 Os chamados pós-potenciais tardios (PPT) são despolarizações secundárias que ocorrem após o completo término da repolarização. As Figs. 25-1 e 25-2 ilustram os dois tipos: PPP e PPT.
A diferença fundamental entre um foco automático (ou seja, que apresenta despolarização espontânea de fase 4) e um foco com atividade deflagrada é que o primeiro é auto-sustentado e auto-induzido e o segundo é auto-sustentado, mas não é auto-induzido, pois depende do batimento anterior, e é geralmente precedido por hiperpolarização .6
As arritmias cardíacas também podem ser produzidas por uma ativação recirculante, iniciada por um estímulo prévio. O termo reentrada é bastante apropriado; implica que um estímulo, após ativar um segmento de tecido, retorna e o ativa novamente. Essa proposta como mecanismo arritmogênico foi formulada em 1906 pelos experimentos de Meyer, Mines e Garrey,2 que demonstraram uma atividade elétrica rítmica sustentada, que durou vários dias, mantida por movimento circular ao redor de anéis de tecidos cortados de medula e de ventrículo de tartarugas. Representa atualmente um dos principais mecanismos arritmogênicos. Várias propriedades normais e anormais do coração podem produzir arritmias através desse mecanismo (condução decremental, bloqueio unidirecional, retardos de condução etc.). Geralmente, retardo significativo de condução (condução lenta) é a anormalidade que permite a ocorrência de reentrada. Existem basicamente quatro pré-requisitos para haver reentrada:
a. Disponibilidade de um circuito.
b. Bloqueio unidirecional.
c. Condução lenta.
d. Estímulo desencadeante.
A reentrada pode ocorrer em vários locais do coração. De acordo com o tamanho do circuito envolvido, alguns autores2 usam a terminologia microrreentrada (vizinhança do nódulo sinusal, dentro do nódulo AV, Purkinje distal) e macrorreentrada (através do nódulo AV e via anômala, ramos e feixe de His etc.).
A Fig. 25-3A ilustra o fenômeno de reentrada em movimento circular: o ramo à direita apresenta um bloqueio unidirecional. Ao completar-se o trajeto, ocorre penetração retrógrada do potencial nesse ramo. Havendo condução suficientemente lenta, o potencial poderá reexcitar o ramo à esquerda, já recuperado, induzindo nova resposta. A Fig. 25-3B mostra o fenômeno de reentrada por reflexão: o estímulo é bloqueado em seu trajeto, podendo retornar retrogradamente e reexcitar as regiões previamente despolarizadas. Finalmente, a Fig. 25-4 mostra como ocorre reentrada intranodal AV.
Achamos oportuno conceituar alguns eventos relativamente freqüentes:
Aberrância de Condução
Refere-se à propagação intraventricular anormal de um estímulo de origem supraventricular, produzindo um complexo QRS diferente daquele do ciclo básico.
Wellens e cols.7 encontraram 70% de episódios de aberrância como distúrbio de condução pelo ramo direito, por apresentarem uma maior duração em seu potencial de ação quando comparados com o ramo contralateral. Como o ramo esquerdo recupera-se mais precocemente e o início da ativação ventricular (1º vetor) é dele dependente, observa-se freqüentemente que o complexo aberrante mostra os seus 30 ms iniciais semelhantes aos do ciclo básico. Este é um excelente elemento de análise para o diagnóstico.8
Batimento Recíproco
É um batimento que despolariza um determinado segmento de tecido e, devido a um mecanismo reentrante, volta a ativar esse mesmo tecido. Por exemplo, uma extra-sístole ventricular sobe retrogradamente para os átrios e retorna, estimulando os ventrículos.
Captuea e Fusão
Durante um período de dissociação AV, ocasionalmente, dentro do ciclo diastólico, poderá ocorrer uma "janela", permitindo a penetração do potencial gerado pelo comando superior (sinusal) nos ventrículos. Quando essas cavidades forem despolarizadas integralmente pelo ritmo superior, diz-se que há uma captura; quando for parcial, ocorre uma fusão.8
Condução Oculta
Um potencial elétrico, ao se propagar, poderá produzir uma série de modificações regionais da condução, porém dedutíveis a partir do próximo ou dos próximos ciclos, pelas suas repercussões. Chama-se a esse fenômeno condução oculta.8,9
Condução Supernormal
Na verdade, não seria uma condução superior à normal, apenas melhor que o esperado. A condução é melhor precocemente no ciclo do que tardiamente, quando se esperaria retardo de condução (bloqueio). Condução supernormal seria uma resposta "paradoxalmente" melhor que a esperada para as circunstâncias e relacionada com o período supernormal.10 Esse período representa uma fase curta e precoce do ciclo cardíaco, cujos requerimentos excitatórios estão diminuídos por haver um menor gradiente entre o potencial limiar e o potencial de repouso.2
Bibliografia
1. Hoffman, B. F. Mechanisms of antiarrhythmic action. In: Zipes, D. P. & Jalife, J. Cardiac Eletrophysiology and Arrhythmias. Orlando, Grune and Stratton, Inc., 1985.
2. Marriott, H. J. L. & Conover, M. H. Advanced Concepts in Arrhythmias. The CV Mosby Company, St. Louis, 1983.
3. Imanishi, S. & Surawicz, B. Automatic activity in depolarized guinea pig ventricular myocardium: characteristics and mechanisms. Cir. Res., 39:751, 1976.
4. Gadsby, D. C. & Wif, A. L. Normal and adnormal eletrophysiology of cardiac cells. In: Mandel, W. J. (ed.). Cardiac Arrhythmias: their Mecanisms, Diagnosis and Management. Philadelphia, JB Lippicott Co., 1980.
5. Cranefield, P. F. & Aronson, R. S. Initiation of sustained rhythmic activity by single propagated action potentials in canine Purkinje fibers exposed to sodim-free solution orto ovabain. Circ. Res., 34:477, 1974.
6. Zipes, P. D. Genesis of cardiac arrhythmias: eletrophysiological considerations. In: Braunwald, E. Heart Disease. A Textbook of Cardiovascular Medicine. 4. ed. Philadelphia, W. B. Saunders Company, 1992.
7. Wellers, H. J. J.; Bar, F. W. H. M. & Lie, KI. The valve of the eletrocardiogram in the diferential diagnosis of a tachycardia with a widened QRS complex. Am. J. Med., 64:27, 1978.
8. Maia, I. G. ECG nas arritmias. Ed. Cultura Médica, Rio de Janeiro. 1989.
9. Moe G. K.; Abildskov, .J. A. & Mendez. An experimental study of conceled conduction. Am. Heart J., 67:338, 1964.
10. Spear, J. F.; Neil Moore, D. V. M. Supernormal excitability and conduction. In: Wellens, H. J. J.& Lie, KI & Janse, M. J. The Conduction of the Heart. Leider, Stenfert-Kroese, p. 111, 1976.
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