Capítulo 22 - Distúrbios Eletrolíticos e Ação Medicamentosa
Capítulo 22 - Distúrbios Eletrolíticos e Ação Medicamentosa
José Hallake
Introdução
Tudo que estudamos até aqui foi baseado na existência de um meio iônico corporal ideal, isto é, concentrações iônicas normais. Mas, é claro que, na prática clínica, isso nem sempre ocorre. Vimos no Capítulo1 que o potencial transmembrana de ação depende, em última análise, dos fluxos iônicos através da membrana celular. É fácil entender que, havendo alterações nas concentrações iônicas, haverá modificações na curva de potencial de ação com repercussões no ECG. Antes de estudarmos as alterações eletrocardiográficas dos distúrbios eletrolíticos, há vantagem em revermos a curva de potencial transmembrana de ação.
Distúrbios do Potássio
As alterações eletrocardiográficas não são determinadas diretamente pelos níveis sangüíneos de potássio, mas principalmente pela relação entre as concentrações intra e extracelulares desse ionte. Ainda mais, sendo o potássio 98% intracelular, o nível sangüíneo desse ionte nem sempre espelha com exatidão a quantidade total de potássio do organismo. Contudo, a partir de determinados níveis sangüíneos de potássio, o ECG revela alterações características que permitem inferir o grau do distúrbio eletrolítico, aproximadamente.
Hiperpotassemia
Havendo hiperpotassemia, haverá diminuição da relação K intracelular/K extracelular, levando o potencial transmembrana de repouso para níveis mais próximos de zero. Acima de um nível crítico, haverá redução da velocidade de entrada de sódio para a célula e, conseqüentemente, da velocidade de ascensão do potencial durante a fase zero. Isso resulta em alargamento do QRS.
Em caso de hiperpotassemia, há maior velocidade de saída de potássio da célula devido a um mecanismo ainda não totalmente conhecido e aparentemente paradoxal já que, nessa eventualidade, há diminuição do gradiente químico desse íon entre os meios intra e extracelular. Essa maior velocidade determina, também, maior velocidade de inscrição da fase 3, com evidente diminuição em seu tempo de inscrição. A conseqüência final é que ocorrerá uma diminuição da duração total do potencial transmembrana de ação e a onda T será de base estreita, ampla, simétrica, "em tenda". Pelo mesmo mecanismo, o intervalo QT será menor, desde que haja alargamento significativo do QRS.
Pelos mesmos mecanismos já estudados, a hiperpotassemia determina uma diminuição da condutibilidade no sistema His-Purkinje, com redução da velocidade de condução sinoventricular e, daí, aumento do intervalo PR (Fig.22-1). (Convém assinalar que níveis de hiperpotassemia mais próximos do limite superior da normalidade aceleram essa condução, podendo levar a pequenas reduções do intervalo PR.) Do mesmo modo, ocorre um bloqueio da condução sinoatrial, com diminuição da voltagem, aumento de duração e, finalmente, desaparecimento da onda P.
Na prática, são conhecidas as alterações eletrocardiográficas nos diferentes níveis de hiperpotassemia, aproximadamente, pelas razões já expostas:
5,5 a 6 mEq/l: |
Ondas T apiculadas. QTc tende a diminuir por
encurtamento da duração da onda T (Fig.22-2).
|
6,5 mEq/l: |
Alargamento do QRS e o QTc pode ser maior
que o normal. |
7 a 8,5 mEq/l: |
Diminuição da amplitude e aumento da
duração da onda P, freqüentemente acompanhada de aumento do intervalo PR, pela
diminuição da velocidade de condução AV (Fig.
22-3A e Fig. 22-3B). |
>8 mEq/l: |
Desaparecimento da onda P. |
9 a 10 mEq/l: |
Complexos QRS de menor voltagem, difusamente
alargados, simulando, às vezes, morfologias de bloqueios de ramo ou de hemibloqueios (Fig. 22-4). |
>11 mEq/l: |
Desnivelamentos de ST (simulando às vezes
corrente de lesão) e arritmias, as mais variadas (Fig. 22-5). |
12 a 14 mEq/l: |
No homem, fibrilação ventricular ou parada
cardíaca. |
Hipopotassemia
A hipopotassemia, de uma maneira geral, determina alterações inversas às estudadas na hiperpotassemia, com intensidades proporcionais à diminuição desse ionte.
Há menor velocidade de saída de potássio do meio intra para o extracelular, determinando uma diminuição da velocidade da fase 3, com evidente aumento no tempo de sua inscrição. Isso leva a uma diminuição da amplitude da onda T, com aumento de sua duração. Existe uma depressão do segmento ST, com infradesnivelamento do ponto J, devido provavelmente ao aumento da velocidade de inscrição da fase 2.
Admite-se que, havendo maior duração da repolarização ventricular, a repolarização das fibras de Purkinje possa exteriorizar-se com maior nitidez, gerando assim a onda U. Como existem diminuição da amplitude da onda T e aparecimento de uma onda U, que pode às vezes ter amplitude maior que a onda T, devemos ficar atentos ao medir o intervalo QT, para evitar que ele seja confundido com o tempo decorrido entre o início do QRS e o término da onda U.
Havendo hipopotassemia, haverá aumento da relação K intracelular/K extracelular, levando o potencial transmembrana de repouso para níveis mais afastados de zero. Isso leva a um aumento da amplitude do complexo QRS.
A hipopotassemia leva também a uma maior duração do complexo QRS. Admite-se que seja conseqüente à maior diferença entre o potencial diastólico máximo e o potencial limiar de excitabilidade, consumindo mais tempo para que se produza essa variação de potencial nas fibras ventriculares. A hipopotassemia tende a aumentar a amplitude da onda P. Exemplos de hipopotassemia são mostrados nas Figs. 22-6, Fig. 22-7 e Fig. 22-8.
Distúrbios do Cálcio
Hipercalcemia
A hipercalcemia determina diminuição da duração da fase 2 do potencial transmembrana de ação. O ECG mostra diminuição ou desaparecimento do segmento ST e, conseqüentemente, encurtamento do intervalo QT (Fig. 22-9). Evidentemente existe aumento da duração do QRS e da amplitude da onda U. Podem ocorrer bradicardia ou outras arritmias graves, principalmente se o paciente estiver em uso de digitálicos.
Hipocalcemia
A hipocalcemia determina aumento da duração da fase 2 do potencial transmembrana de ação. O eletrocardiograma mostra aumento da duração do segmento ST, que tende a se manter na linha de base (Fig. 22-10). A onde T é geralmente positiva, pontiaguda, de voltagem algo diminuída e de duração normal. Eventualmente, a onda T pode estar aumentada, simulando hiperpotassemia, ou mesmo pela associação deste distúrbio eletrolítico (Fig. 22-11). O intervalo QT aumenta à custa do segmento ST.
As alterações eletrocardiográficas habitualmente ocorrem quando os níveis de cálcio sangüíneo são inferiores a 7,5 mg%.
Distúrbios do Magnésio
Os estudos de Larcan e Huriet mostraram que, mesmo havendo níveis plasmáticos bem maiores que o normal, as alterações eletrocardiográficas são muito discretas. Nesses casos há, habitualmente, alterações de outros íons que então alteram o ECG.
Digital
Os digitálicos, em doses terapêuticas, determinam as seguintes alterações:
1. Encurtamento da fase 2 do potencial transmembrana de ação ventricular, determinando um infradesnivelamento do ponto J e do segmento ST, que se torna encurtado e côncavo para cima. Esse aspecto é conhecido como "colher de pedreiro" (Fig. 22-12). A direção do desnível do segmento ST habitualmente é oposta ao QRS.
2. Aumento da duração da fase 3 do potencial transmembrana de ação, determinando uma diminuição da amplitude da onda T. Essa alteração é mais precoce do que a alteração do segmento ST. A onda T pode tornar-se isoelétrica ou mesmo negativa, englobada pelo segmento ST.
3. Como a diminuição da fase 2 é maior que o alongamento da fase 3, temos encurtamento do intervalo QT.
4. Devido ao alongamento da onda T, observa-se acentuação da onda U, provavelmente por melhor exteriorização.
5. Devido a sua ação vagotônica e/ou antiadrenérgica, a digital diminui a velocidade de despolarização diastólica da fase 4, diminuindo a freqüência cardíaca.
6. A digital diminui a velocidade de condução do estímulo na junção AV, determinando aumento do intervalo PR. O habitual é que, em doses terapêuticas, tenhamos no máximo bloqueio AV de 1º grau e, nos casos de intoxicação, bloqueios AV de 2º e 3º graus (Fig. 22-13).
7. Em doses tóxicas, a digital aumenta a velocidade de despolarização diastólica da fase 4 nas fibras de Purkinje e desvia para níveis mais próximos de zero o potencial transmembrana imediatamente anterior ao início da fase 0 seguinte. Essas alterações geram arritmias as mais variadas.
A extra-sistolia ventricular é a arritmia mais freqüentemente associada ao uso de digitálicos. O bigeminismo é comum na intoxicação digitálica. Eventualmente temos trigeminismo (Fig. 22-14).
Quinidina
A quinidina retarda a entrada de sódio durante a fase 0 e a saída de potássio durante a fase 3 do potencial transmembrana de ação. A primeira alteração determina diminuição da velocidade de ascensão e da intensidade da variação do potencial transmembrana durante a fase 0 de todas as fibras cardíacas. Assim, em doses terapêuticas, podemos observar aumento do intervalo PR e da duração da onda P. Doses maiores aumentam a duração do QRS.
A diminuição da velocidade de fluxo do potássio durante a fase 3 determina evidentemente aumento de sua duração, tanto nos átrios como nos ventrículos. A exteriorização eletrocardiográfica são as alterações da onda T, que diminui de voltagem, torna-se entalhada, difásica (menos-mais), ou às vezes negativa; o segmento ST pode tornar-se infradesnivelado e côncavo para cima; o intervalo QT aumenta e a onda U torna-se mais nítida (Fig. 22-15).
A quinidina diminui a velocidade de despolarização diastólica da fase 4 das fibras de Purkinje, reduzindo, assim, o seu automatismo. Em doses acima das habituais, deprime também a excitabilidade e a condução no nódulo sinusal, facilitando o aparecimento de arritmias mais graves.
Derivados da Procainamida
Em doses terapêuticas, determinam alterações eletrocardiográficas semelhantes às observadas pelo uso da quinidina, pórem menos intensas.
Lidocaíne
Doses tóxicas podem determinar diminuição da freqüência cardíaca e, em alguns casos, bloqueios sinoatriais.
Difenil-Hidantoína
Essa substância produz aumento da velocidade de ascensão da fase 0 nas fibras atriais, sistema de condução intra-atrial e nas fibras de Purkinje. Também reduz a velocidade de ascensão da despolarização diastólica.
Eventualmente, pode ocorrer diminuição da velocidade de condução pelo nódulo AV. Quando há retardo na condução AV, por ação digitálica, curiosamente a difenil-hidantoína pode corrigir essa situação.
A difenil-hidantoína pode determinar diminuição da voltagem da onda T e diminuição do intervalo QT.
Bibliografia
1. Cooksey, J. D.; Dunn, M. & Massie, E. Clinical Vectorcardiography and Electrocardioography. 2. ed., 1977. Year Book Medical Publishers, Inc.
2. Marriott, H. J. L. Practical Eletrocardiography. 7. ed., Williams & Wilkins, 1983.
3. Tranchesi, J. Eletrocardiograma Normal e Patológico. 4. ed., 1972. Atheneu Editora São Paulo S. A.
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