Capítulo 20 - Síndromes Isquêmicas
Capítulo 20 - Síndromes Isquêmicas
Paulo Jorge Moffa
Introdução
Quando há desproporção entre o fornecimento de oxigênio ao músculo cardíaco e o seu consumo, a fibra miocárdica sofre, passando a apresentar alterações que variam com a duração e a intensidade do inadequado aporte de oxigênio. Na interrupção brusca do fluxo, como em casos de oclusão de um dos ramos das artérias coronárias, ocorre habitualmente lesão irreversível das fibras miocárdicas, determinando a necrose celular. Tem-se o infarto agudo do miocárdio, onde podem ser observadas três zonas irregularmente concêntricas, e que surgem de maneira seqüencial após a oclusão aguda. Elas correspondem a graus distintos de isquemia clínica e constituem as áreas anatomoelétricas de isquemia, lesão e necrose.
Sabe-se que as diferenças de potencial da membrana celular em repouso e em atividade, que podem ser obtidas pela técnica de colocação de eletrodos intra e extracelular, denominam-se, respectivamente, potencial transmembrana de repouso (PTR) e potencial transmembrana de ação (PTA). O primeiro, que é representado pela linha isoelétrica no papel de registro, é a expressão da diferença de potencial entre o exterior e o interior da célula. Seu valor absoluto é de 90 mV, admitindo-se que o eletrodo que fica na superfície representa o potencial positivo. Ao se estabelecer a ativação celular, configura-se uma curva de quatro fases (Fig. 20-1), como foi visto no Capítulo 1.
O eletrocardiograma de superfície representa o somatório das infinitas curvas de potencial de ação, cuja integração das diferentes fases dá origem ao complexo QRS (fase zero), ao segmento ST (fases 1 e 2) e onda T (fase 3), após o que, o potencial transmembrana volta à situação de repouso (fase 4). As características assinaladas encontram-se nas fibras de contração atriais e ventriculares e no sistema His-Purkinje.
Podemos admitir que o ECG de superfície seja resultante da soma algébrica do PTA do subendocárdio e do subepicárdio (Fig. 20-2). Sabemos que a despolarização do subendocárdio começa antes que a do subepicárdio, e que o tempo de inscrição do PTA do subendocárdio é maior que o do subepicárdio.
Em algumas células, entretanto, existe repolarização lenta e espontânea durante a fase 4, ao passo que em outras esse processo ocorre nas fases 1 e 2.
Neste capítulo serão analisados, em primeiro lugar, os efeitos, em sentido amplo, da isquemia, da lesão e da necrose sobre o potencial de ação de uma célula ventricular e, posteriormente, suas conseqüências sobre o complexo QRS, a onda T e o segmento ST, nas derivações eletrocardiográficas de superfície.
Área de Isquemia - Vetor de Isquemia
A primeira delas, a zona de isquemia, mais perifericamente situada, é a menos atingida. Nela ocorrem apenas alterações metabólicas e funcionais (contráteis), sem evidências de alterações morfológicas ultra-estruturais, apresentando, por isso, características de reversibilidade.
Em geral se instala após 90 minutos do início da oclusão, e se traduz eletrofisiologicamente por um atraso no processo de repolarização da área comprometida.
Isso se deve à discreta diminuição do potássio intracelular (Ki+) que, por ser mínima, não modifica o potencial transmembrana de repouso (PTR) e que, portanto, mantém-se com valor de -90 mV.
Entretanto, a isquemia determina modificação da fase 3 do potencial transmembrana de ação (PTA), prolongando-a. Portanto, a curva do PTA é de morfologia habitual, porém de maior duração do que aquela registrada em condição normal. (Na fase hiperaguda da isquemia, observa-se encurtamento da fase de repolarização - fase 3 do potencial de ação transmembrana.) (Ver adiante.)
A região isquêmica ativa-se (torna-se negativa) de maneira normal, porém a recuperação das cargas positivas (repolarização) faz-se tardiamente, após outras áreas haverem positivado. Esse fenômeno pode ser representado por um "vetor de isquemia" que se dirige (foge) da zona isquêmica (ainda negativa) para as positivas, já repolarizadas (área normal). Os efeitos elétricos desse vetor anormal, pela sua discreta magnitude, manifestam-se apenas durante a fase da repolarização ventricular global, modificando, portanto, a onda T do eletrocardiograma.
As imagens eletrocardiográficas; de isquemia são distintas segundo o tempo de instalação e o local afetado: se, fundamentalmente, o subepicárdio ou o subendocárdio.
Quando a isquemia é predominantemente subepicárdica (como nos infartos em evolução e nas pericardites), o "vetor de isquemia" "foge" do epicárdio, apontando para o endocárdio. Portanto, nas derivações voltadas para o epicárdio alterado, registram-se ondas T negativas e de morfologia diversa das ondas normais, habitualmente pontiagudas, com ramos simétricos (Fig. 20-3). Na prática, não raramente observamos, nessa eventualidade, ondas T negativas, pontiagudas, mas com ramos assimétricos.
Na isquemia subendocárdica, que freqüentemente ocorre na fase hiperaguda da insuficiência coronária (o subendocárdio é a zona que sofre mais precocemente os efeitos da falta de irrigação), e na angina de Prinzmetal, a região epicárdica será a primeira a se recuperar, como acontece normalmente. Nesses casos, o "vetor de isquemia" tem a mesma orientação dos vetores da repolarização normal e aponta do endocárdio (zona de negatividade) para o epicárdio já repolarizado (positivo). Entretanto, como a repolarização do endocárdio comprometido faz-se mais lentamente, as diferenças de potencial entre a zona isquêmica e o miocárdio normal, como que permanecem mais tempo presentes, aumentando assim a amplitude e a duração das ondas T, que serão altas, pontiagudas e também simétricas (atraso da repolarização do endocárdio) (Fig. 20-4).
Quando a isquemia for transmural, prevalece a imagem de isquemia subepicárdica.
Partindo do princípio de que o ECG clínico é resultante da soma algébrica do PTA do subendocárdio e do subepicárdio (Fig. 20-2), essas morfologias podem também ser deduzidas. Assim, no caso de isquemia subepicárdica, a imagem do ECG corresponde à soma do PTA normal do subendocárdio e do PTA prolongado do subepicárdio (Fig. 20-3). Esse fenômeno pode ser entendido a partir da Fig. 20-2. Se houver isquemia do subepicárdio, o PTA dessa região estará prolongado. Se este apresenta tão-somente um aumento discreto, a onda T será achatada e, caso ele seja mais prolongado, a onda T torna-se negativa (Fig. 20-5). A isquemia subendocárdica também é explicada pela soma algébrica do PTA mais prolongado do subendocárdio com o PTA normal do subepicárdio (Fig. 20-4). Assim, a isquemia subendocárdica também pode ser entendida a partir da Fig. 20-2. Caso haja isquemia do subendocárdio, o PTA dessa região estará prolongado, gerando ondas T mais altas e pontiagudas tendendo à simetria (Fig. 20-6).
Outras Considerações Eletrofisiológicas
Na fase hiperaguda da isquemia, pode-se encontrar, por um determinado espaço de tempo, geralmente nos primeiros minutos, um encurtamento do potencial de ação na área comprometida, o qual termina sua repolarização antes do potencial de ação transmembrana da área normal. Todavia, essas modificações não estão totalmente esclarecidas e aceitas, pois nesse espaço de tempo pode-se observar alternância entre potenciais de ação curtos e longos.
De qualquer forma, pode-se afirmar que o potencial de ação da célula isquêmica apresenta sua fase 3 mais tardia em relação à da célula normal, devido ao começo da repolarização encontrar-se mais atrasado, aliado ao fato de o potencial de ação transmembrana do subendocárdio ser relativamente maior, mesmo na ausência de isquemia.
Assim, o encurtamento do potencial de ação transmembrana nos primeiros minutos explica a onda T positiva no eletrocardiograma extracelular, ao passo que, quando ele se torna prolongado, tem-se COMO conseqüência a onda T negativa na isquemia subepicárdica (Figs. 20-3 e 20-5).
Como já comentado, as imagens eletrocardiográficas de isquemia são distintas conforme se situe o comprometimento isquêmico, fundamentalmente no subendocárdio ou no subepicárdio.
Na primeira situação, a onda T é mais alta e pontiaguda que a normal (a onda T normal habitualmente não excede a 6 mm de altura nas derivações do plano frontal e a 10 mm naquelas do plano horizontal). Na realidade, para se ter o registro da onda T simétrica, o tempo de recuperação do subendocárdio deve ser idêntico ao do subepicárdio, o que teoricamente ocorrerá em 1 de n possibilidades.
Na situação de isquemia subepicárdica, a onda T apresenta-se achatada ou negativa, nem sempre com a morfologia. simétrica, pelos motivos já expostos.
Alguns autores crêem que o predomínio no eletrocardiograma. epicárdico ou precordial de imagem de isquemia ou de lesão subepicárdica em relação à subendocárdica, em situação de comprometimento transmural, deve-se a: (1) presença de maior zona isquêmica ou lesão do subepicárdio e (2) maior proximidade do subepicárdio ao eletrodo explorador.
A repercussão eletrofisiológica da isquemia dita hiperaguda (primeiros minutos do infarto) corresponde à onda T de grande amplitude e, teoricamente, com QT prolongado, embora esta última situação deva ser aceita com reservas, sem que se deva considerá-la. imprescindível para o diagnóstico da isquemia.
No homem, a morfologia dessa onda T pode ser assimétrica com seu ramo ascendente de inscrição mais lenta e morfologia. em cúpula, ou apresentar inscrição simétrica, apiculada, associada a segmento ST algo elevado. Em alguma derivação, ela se manifesta com voltagem normal, porém, nascendo diretamente do ponto J (segmento ST "englobado" pela onda T).
A isquemia subendocárdica da fase hiperaguda do infarto não é tão difícil de ser observada, especialmente nos atendimentos de emergência, e habitualmente vistas nas derivações do plano horizontal, sobretudo de V1 a V4.
Essa característica morfológica da repolarização ventricular muitas vezes constitui a única manifestação patológica eletrocardiográfica observada na fase aguda do infarto.
Muitas vezes ela passa despercebida devido a sua aparente inocuidade, confundindo-se com variantes da normalidade, vagotonia, repolarização precoce, alcoolismo, hiperpotassemia, sobrecarga diastólica de ventrículo esquerdo, entre outras.
Entretanto, a evolução em horas do aspecto eletrocardiográfico para imagem típica de lesão e necrose permite confirmar o diagnóstico correto.
Área de Lesão - Vetor de Lesão
A zona intermediária - zona de lesão - mais internamente situada é a mais atingida em relação à anterior. Instala-se a partir dos 20 minutos após a oclusão, determinando alterações uItra-estruturais evidentes, porém sem necrose celular e, por isso, ainda reversíveis.
A curva do potencial de ação da célula lesada apresenta modificações em suas várias fases. Assim, ocorre diminuição do potencial de repouso, que se torna menos positivo, redução da velocidade da fase 0 e da amplitude da fase 1 e, ainda, encurtamento da curva do potencial de ação, devido à diminuição da duração das fases 2 e 3 (Fig. 20-7). Essas modificações são decorrentes de alterações nos movimentos nos íons sódio, potássio, cálcio e magnésio.
Do ponto de vista eletrofisiológico, diz-se que há "lesão" de uma região do miocárdio quando, pela acentuada queda de Ki+, o PTR torna-se bem menor que - 90 mV, atingindo valor de - 65 mV, traduzindo "despolarização diastólica" espontânea evidente. Retarda-se, por conseguinte, a curva de resposta da membrana, com formação de PTA de má qualidade: fase 0 de ascensão lenta e pequena amplitude, com tendência a diminuir a duração da curva do PTA (Fig. 20-7B).
Pode-se admitir que, em situação de repouso, a área lesada por alteração da permeabilidade da membrana permite, espontânea e parcialmente, migração de cargas elétricas positivas para o interior da célula lesada, neutralizando-se as cargas negativas correspondentes. Dessa forma, embora as várias células lesadas continuem a ser eletricamente positivas, elas o são menos positiva (negativa) em relação à área normal (+).
Assim, na fase de repouso do coração (diástole elétrica), tudo se passa como se no limite das duas áreas surgisse uma diferença de potencial, representada por um vetor que fugisse da região lesada, determinando, na derivação que lhe faz face, abaixamento da linha-base do eletrocardiograma. É o chamado vetor diastólico de lesão, eletrofisiologicamente relacionado à redução do potencial de repouso das células constituintes da região comprometida (Fig. 20-8A).
Na fase de ativação do coração (sístole elétrica média), a dificuldade da região lesada em se despolarizar revela-se como a área eletricamente positiva em relação à normal. Isso dá origem a um vetor que aponta agora para a área comprometida, determinando, nas derivações próximas, supradesnivelamento do segmento ST. É o chamado vetor sistólico de lesão que, em termos eletrofisiológicos, relaciona-se ao encurtamento e à diminuição de amplitude das fases do potencial de ação da região lesada (Fig. 20-8B).
A resultante dessas duas correntes de lesão é a inscrição, no eletrocardiograma, de supradesnivelamento do segmento ST (vetor ST de lesão) nas derivações vizinhas à área lesada. Esse fenômeno é, portanto, conseqüência tanto do infradesnivelamento da linha-base do eletrocardiograma, que ocorre na fase de repouso do coração (vetor diastólico de lesão - Fig. 20-8A), quanto do supradesnivelamento do segmento ST, que se faz durante a ativação cardíaca (vetor sistólico de lesão - Fig. 20-8B). Como no eletrocardiograma o nível da linha-base é arbitrário, o deslocamento provocado pela primeira situação não é habitualmente registrado como um evento isolado, por ser quase impossível surpreender o exato momento de instalação da lesão miocárdica. Esta, no entanto,, pode ser observada através do eletrocardiograma obtido em cães durante a instalação de lesão miocárdica, mostrando que o supradesnivelamento relativo do segmento ST faz-se à custa, fundamentalmente, do infradesnivelamento do segmento TQ, como pode ser observado na Fig. 20-9.
De fato, não está totalmente esclarecido qual das duas correntes de lesão é a mais importante. Entretanto, em registros obtidos em magnetocardiógrafo, a corrente diastólica mostrou-se mais evidente, pelo menos nos casos em que ela era de instalação recente.
Em resumo, pode-se dizer que, inicialmente, a área lesada em repouso sofre ativação espontânea e parcial (despolarização diastólica), podendo ulteriormente ativar-se e recuperar-se, porém com atraso em relação às áreas normais.
O eletrocardiograma revela supradesnivelamento do segmento ST nas derivações que fazem face à área lesada.
Por isso, as imagens ECG de lesão são distintas segundo sua localização. Na lesão subendocárdica, registra-se descida do segmento ST, e quando subepicárdica, supradesnivelamento do ST (Fig. 20-8B).
Essas morfologias podem também ser explicadas partindo-se do conceito de que o ECG é conseqüência da soma algébrica do PTA do subendocárdio com o PTA de má qualidade (menor) do subepicárdio (lesão subepicárdica) (Fig. 20-8B). O oposto se dá em caso de lesão subendocárdica.
Assim, esse fenômeno também pode ser entendido a partir da Fig. 20-2. Havendo lesão do subepicárdio, a amplitude do seu PTA estará diminuída, gerando um supradesnivelamento do segmento ST; havendo lesão do subendocárdio, o PTA dessa região estará com sua amplitude diminuída, e teremos um infradesnivelamento do segmento ST (Fig. 20-10).
Quando a lesão é transmural ou de toda a região subepicárdica, a imagem de lesão subepicárdica domina.
Se, entre a área lesada do subepicárdio e o eletrodo de registro, existir tecido miocárdico normal, o vetor de lesão determina depressão do segmento ST.
Quando os efeitos da corrente de lesão forem de magnitude maior que o fenômeno elétrico originado pela repolarização, a onda T ficará mascarada e encoberta pelo segmento ST, manifestando-se quando aquelas começarem a regredir (Fig. 20-10).
Pode-se simplificar a complicada eletrogênese das manifestações da corrente de lesão, supondo que o "vetor de lesão" durante a sístole elétrica (ativação) "não foge" mas aponta para a região comprometida. Tudo se passa como se o vetor partisse do tecido sadio, já ativado (eletronegativo), para o tecido lesado (apenas parcialmente despolarizado), relativamente eletropositivo.
Áera de Necrose - Vetor de Necrose
A área central, de necrose, mais interna, e mais intensamente comprometida, perde sua mecânica de contração, com alterações morfológicas estruturais fibróticas irreversíveis. Geralmente se instala após 6 a 12 horas da oclusão e, do ponto de vista eletrofisiológico, não é capaz de se ativar ou recuperar, funcionando apenas como tecido condutor do estímulo gerado em áreas vizinhas. Esse fato é conseqüência de alteração do PTR de valor inferior a 50% do normal, impossibilitando, portanto, a formação de PTA na área comprometida.
Isso significa que a zona necrosada não contribui com seus "vetores" no processo de ativação ventricular, modificando-se assim a morfologia do complexo QRS.
Em determinado instante, não ocorrendo a ativação da área necrosada, os potenciais originados pela ativação de regiões opostas ficam como "liberadas", predominando no campo elétrico. Como efeito resultante, a excitação "foge" da zona comprometida, surgindo vetores que se dirigem da área de necrose (eletricamente negativa) para o tecido são, relativamente positivo.
A maioria dos infartos ocorre fundamentalmente no VE, em zonas que se despolarizam dentro dos primeiros 40 a 60 ms, período de tempo em que se ativa o septo interventricular e as paredes anterior, inferior e lateral do VE. (Nesse período, não se ativam as porções póstero-látero-basais, parte do septo alto e do ventrículo direito). Portanto, a necrose dessas áreas manifesta-se por alterações do vetor resultante dos 40-60 ms iniciais, dirigindo-se para regiões diametralmente opostas à região necrosada. Isso estimula a modificação da primeira parte do QRS, de tal forma que o eletrodo explorador, colocado face à zona de necrose, registra onda negativa inicial (onda Q profunda e/ou de duração aumentada, seguida de onda R) ou apenas onda R de menor voltagem que a anteriormente registrada - necrose não-transmural -, ou deflexões QS necrose transmural. Da mesma maneira, o eletrodo situado na região oposta registrará deflexão positiva, com aumento da amplitude da onda P.
Poderíamos imaginar que, ao colocarmos o eletrodo explorador em frente à zona de necrose, se ela for transmural, teremos o registro do potencial intracavitário (deflexão negativa). Isso porque a zona de necrose não gera potenciais, apenas transmite (Fig. 20-11).
Do mesmo modo (Fig. 20-12), ao colocarmos o EE em frente à zona de necrose, mesmo transmural, poderemos registrar inicialmente uma onda q patológica (profunda e/ou espessada), que é apenas transmissão do padrão intracavitário, seguida de onda r ou R, na dependência da extensão das porções vizinhas sadias.
Diagnóstico da Extensão do Infarto
A parede livre dos ventrículos pode ser considerada eletricamente como constituída de duas porções:
a. Endocárdio "elétrico", que corresponde aos dois terços internos ou à metade interna da espessura da parede. Como essa zona tem grande densidade de fibras de Purkinje, ativa-se quase instantaneamente, não contribuindo com potenciais para a onda R registrada a na superfície epicárdica. Nessa porção do miocárdio, os complexos QRS e as ondas T são negativos (QS).
b. Epicárdio ventricular, constituído pela metade ou terço externo da parede, pobre em Purkinje e, portanto, ativando-se mais lentamente, é o responsável pela onda R epicárdica.
O conceito de endocárdio elétrico é importante, porque pode explicar a falta de ondas q nos infartos subendocárdicos exclusivos e a imagem QS nos infartos subepicárdicos quando em contato com o endocárdio elétrico.
Assim, os infartos da parede livre ventricular podem ser classificados de acordo com sua repercussão no ECG em:
1. Infarto localizado nos dois terços internos da parede - "endocárdio elétrico" (Fig. 20-13A, 20-13B e 20-13C). Esse infarto não altera o complexo QRS, pois a zona epicárdica, responsável pelo seu registro, não está afetada. O infarto é diagnosticado indiretamente pelos efeitos da lesão e da isquemia subendocárdica, na presença de quadro clínico sugestivo e pelas alterações enzimáticas.
2. Infarto localizado em toda espessura ou somente em parte do epicárdio elétrico (Fig. 20-14A, 20-14B e 20-14C). O eletrodo que faz face à área comprometida registra, na primeira situação, deflexões QS e, na segunda, morfologia Qr ou qR, dependendo da influência que sobre ele poderão exercer os potenciais resultantes da ativação das porções vizinhas à área comprometida (o infarto não alcança o subepicárdio). Assim, as forças geradas pela zona periférica subepicárdica sadia (íntegra) que "olham" o eletrodo explorador originam sua onda R final, mais ou menos importante, segundo a extensão da zona sadia (imagem Qr ou qR).
3. Nos infartos que comprometem simultaneamente os dois terços internos da parede ventricular e toda a espessura do epicárdio (infarto transmural), a ativação "foge" da área comprometida, inscrevendo-se a mesma imagem QS (Fig. 20- 15A a C). Vemos, portanto, que é bem difícil a diferenciação entre um infarto transmural e o localizado apenas no subepicárdio, atingindo o limite do endocárdio.
4. Infarto localizado no epicárdio, com exceção de pequena zona no limite do endocárdio (Fig. 20-16A a C), ou uma zona intramural da parte média da parede do ventrículo esquerdo sem contato com o endocárdio elétrico.
Esses infartos são de difícil reconhecimento pelo estudo eletrocardiográfico, uma vez que não se registra onda q de necrose, porque o início da ativação do subepicárdio é normal, contribuindo para o registro da onda R inicial (tanto mais ampla quanto maior a zona íntegra do subepicárdio) nas derivações que exploram a região comprometida.
Entretanto, experimentalmente, comprova-se que diminui a amplitude da onda R em relação a traçado eletrocardiográfico anterior. Na clínica, esse dado tem valor apenas quando existe evidência de que o eletrodo esteja situado no mesmo local, com a mesma calibração do aparelho de registro, na presença de sintomatologia clínica. Outras vezes a suspeita do infarto é feita indiretamente, pelo aparecimento dos sinais de lesão e de isquemia subepicárdica.
Quando o infarto compromete as áreas do coração que se despolarizam tardiamente (regiões: póstero-lateral,. septal alta e parte do ventrículo direito), o vetor de necrose não surge nos primeiros 40 ms, mas obrigatoriamente na segunda metade do QRS, gerando o vetor resultante desse momento distinto do normal. Ele explica as trocas morfológicas da parte final do QRS (S empastada em D1, V5 e V6 observado nesse tipo de necrose. Essas imagens não devem ser confundidas com as habitualmente encontradas em bloqueios de ramo e divisionais.
Por isso, apenas em presença de alterações eletrocardiográficas da primeira parte de QRS (onda Q) pode-se relacionar, à insuficiência coronária, as modificações observadas na segunda metade do QRS.
Apesar disso, a necrose de algumas zonas do coração (átrios e septo alto) não é reconhecida no eletrocardiograma.
Localização Anatômica da Necrose Miocárdica pelo ECG
Ainda que o ECG seja bastante específico para o reconhecimento da localização do infarto, ele é pouco sensível nesse mister. Assim, embora seja muito útil o reconhecimento da necrose, ele não valoriza a extensão da mesma, passando despercebidas extensões laterais e inferiores de necrose anterior. Nesse sentido, o vetorcardiograma aumenta bastante a possibilidade de diagnóstico em caso de onda q duvidosa, além de reconhecer melhor a presença de mais de uma zona necrosada.
Por outro lado, sabe-se que nem sempre existe uma perfeita correlação eletroanatômica do comprometimento necrótico miocárdico. Assim, embora no infarto recente da região inferior seja habitual o registro de ondas Q patológicas nas derivações inferiores (D2, D5 e aVF), outras vezes os efeitos elétricos de um infarto estrategicamente situado são bem registrados em várias derivações, independente da extensão da área comprometida. É o que ocorre com necrose localizada na confluência das faces ântero-lateral, inferior e dorsal, a qual, mesmo sem apresentar grande extensão, modifica, de forma marcante, várias derivações eletrocardiográficas.
Podemos classificar as alterações resultantes da insuficiência coronariana (isquemia, lesão e necrose), segundo a área comprometida, inferida a partir das derivações eletrocardiográficas em que elas ocorrem:
V1 e V2 |
- terço médio do septo interventricular |
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Anterior
Extenso |
V3 e V4 |
- terço inferior do septo interventricular |
V1 a V4 |
- dois terços inferiores do septo
interventricular ou região ântero-septal |
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V5 e V6 |
- parede lateral do VE |
D1 e aVL |
- parede lateral alta do VE |
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D2, D3 e aVF |
- parede inferior |
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V7 e V8 |
- parede posterior |
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Além disso, os infartos podem ser classificados em transmurais ou não transmurais, caso comprometam toda a espessura ou apenas parte da parede ventricular, respectivamente. Os não-transmurais podem ser subendocárdicos ou subepicárdicos.
A necrose de parede posterior do VE desloca as forças para a frente. Assim, ao ECG, registram-se as imagens características de infarto em V7 e V8 e em V1 e V2, onde podemos observar ondas R amplas, seguidas de infradesnivelamento do segmento ST e ondas T positivas e amplas (fase aguda). Essas imagens de V1 e V2 são chamadas de "imagens de espelho".
A Expressão Bioquímica de Isquemia, Lesão e Necrose
O potencial de repolarização depende do potássio intracelular (Ki+) de tal forma que, quando ocorre perda de Ki+, ocorre diminuição do potencial de repouso. A célula miocárdica torna-se inerte quando o Ki+ encontra-se reduzido a 50% de seu valor normal de repouso.
A insuficiência coronariana progressiva encontra-se associada com diminuição progressiva de potássio intracelular.
Pequena perda de Ki+ resultaria em discreta diminuição do potencial de repouso. Isso determina um atraso da repolarização, que se manifesta eletrocardiograficamente por alterações da onda T do tipo isquemia miocárdica.
Perda adicional de Ki+ resulta em maiores diminuições do potencial de repouso, o que se manifesta eletrocardiograficamente por alterações no segmento ST do tipo lesão miocárdica.
Quando o Ki+ é ainda mais reduzido, ao redor de 50% de valores normais, o potencial de repouso encontra-se reduzido a um potencial inerte e a célula torna-se eletricamente morta ou necrótica. Então, a despolarização não se faz ou gera um potencial de ação de má qualidade e o eletrocardiograma manifesta-se com perda das forças do complexo QRS, resultando, por exemplo, em onda Q patológica do infarto do miocárdio, ou por diminuição da onda R nas derivações que fazem frente à área comprometida.
Característica Eletrocardiográfica de Isquemia, Lesão e Necrose
A repercussão eletrocardiográfica da isquemia subepicárdica mostra, inicialmente, onda T achatada para, em seguida, tornar-se negativa profunda, sendo freqüentemente simétrica.
No infarto evolutivo, é muito freqüente e característico ver a associação da onda T negativa de isquemia subepicárdica com persistência do supradesnivelamento do segmento ST, o qual faz com o ramo descendente da onda T uma imagem cupuliforme.
Por vezes a isquemia subepicárdica manifesta-se, sobretudo nas precordiais intermediárias, por uma onda T mais-menos com deflexão geralmente rápida. A imagem da isquemia subepicárdica é um achado habitual no infarto do miocárdio, com o comprometimento subepicárdico sendo mais evidente quando diminui o tecido lesado; pode-se, pois, afirmar que a melhora da lesão corresponde a um aumento da isquemia.
Diagnóstico Evolutivo do Infarto do Miocárdio
Nas fases iniciais de um infarto do miocárdio, os efeitos da lesão predominam nos registros eletrocardiográficos.
Portanto, ao lado da onda Q patológica, temos acentuado desnivelamento do ponto J e do segmento ST.
Não raramente, nas primeiras horas do infarto as alterações eletrocardiográficas são discretas ou mesmo ausentes, mostrando apenas ondas T amplas positivas pontiagudas, configurando o quadro de isquemia hiperaguda (subendocárdica), para depois surgirem as alterações típicas do infarto do miocárdio.
Na fase de cicatrização do infarto do miocárdio (entre 4 e 6 semanas), desaparece o desnivelamento do segmento ST, tornando-se bem nítida a presença de Q com ondas T negativas de grande voltagem. Com o passar do tempo, as ondas T podem adquirir o aspecto de positividade.
Em certos casos, a permanência do desnivelamento do segmento ST após alguns meses permite suspeitar da presença de discinesia da região correspondente às derivações onde ele é observada.
A Fig. 20-17A mostra, nas derivações precordiais, 3 horas após violenta dor precordial: ondas T amplas, positivas, pontiagudas (isquemia subendocárdica, os complexos QRS são normais), não mostrando ondas Q patológicas. Três dias após (Fig. 20-17B): quadro típico do infarto anterior extenso, sinais de necrose (amputação da onda r de V1 a V3) e os relacionados com lesão e isquemia subepicárdica (supradesnivelamento do ST e ondas T negativas). Um mês após (Fig. 20-17C): sinais de infarto cicatrizado do miocárdio e desaparecimento do desnível do ST. Registro de complexos QS e ondas T negativas e de grande amplitude.
Exemplos:
Exemplos de síndromes isquêmicas poderão ser vistos nas Figs. 20-18, 20-19, 20-20, 20-21, 20-22, 20-23, 20-24, 20-25, 20-26, 20-27 e 20-28.
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