Capítulo 02 - Anatomia do Desenvolvimento do Coração Humano

Aspectos Gerais do Desenvolvimento Humano

O "desenvolvimento" humano tem sido um tema de pesquisa para o qual convergem trabalhos de diferentes disciplinas.

A palavra "desenvolvimento" pode ser empregada para indicar os diversos fenômenos bioquímicos e biofísicos que intervêm simultânea e conseqüentemente no envelhecimento de um organismo. "Desenvolvimento" pode também estar relacionado à aquisição somática e psíquica de novas características específicas, que, então, podem ser ditas evolutivas ou involutivas (desenvolvimento = evolução).

"Desenvolvimento" pode ainda certamente ter outras interpretações mais intimistas, dependendo do uso particular que cada área do conhecimento possa dar.

Para o morfologista humano, -desenvolvimento- é uma palavra que se associa às modificações qualitativas e quantitativas da forma e da estrutura do corpo. No primeiro caso, quando estudamos as alterações qualitativas, desenvolvimento pode ser definido como a "anatomia em movimento", ou ainda como a "morfologia dinâmica",21 e, normalmente, e o campo de atuação de anatomistas, embriologistas, histologistas, antropólogos e patologistas. No segundo caso, quando estudamos as modificações quantitativas, desenvolvimento quer dizer "crescimento", um tema de trabalho principalmente para anatomistas e antropólogos físicos, mas de interesse também para outras disciplinas médicas como, por exemplo, a obstetrícia e a pediatria.

O "desenvolvimento" humano, no que concerne à morfologia dinâmica, pode ser estudado nos períodos pré e pós-natal. Indiscutivelmente, o período pós-natal é mais fácil de ser observado, e, talvez por isso, tenha merecido um grande número de estudos e publicações científicas. Entretanto, isso não quer demonstrar o desinteresse do morfologista pelo período pré-natal, mas apenas as dificuldades técnicas e os problemas éticos que implicam um estudo no embrião humano.10

No início não existe coração para impulsionar o sangue no embrião. No final do período pré-somítico surgem agrupamentos angiogênicos no mesoderma esplâncnico lateral; estes aumentam, formam um plexo e cruzam ventralmente a placa pró-cordal como um semicírculo.27 Simultaneamente, outros agrupamentos angiogênicos se desenvolvem longitudinalmente no embrião, originando as duas aortas dorsais. O tubo cardíaco provém do plexo cranial e se liga posteriormente com as aortas dorsais. Os detalhes do dobramento e septação cardíaca serão discutidos mais adiante, neste capítulo.

O coração se estabelece morfologicamente no período pré-natal, mais especificamente no período embrionário. Assim, para melhor seguir estas modificações, e necessário antes de tudo subdividirmos o período embrionário, e o faremos seguindo as indicações da Carnegie Institution of Washington. 25,26

O período embrionário verdadeiro ou propriamente dito inclui as oito primeiras semanas de gestação, e é constituído por três fases: pré-somítica, somítica e pós-somítica. Cada fase compreende uma série de estádios evolutivos de desenvolvimento (anteriormente chamados de -horizontes-); em cada estádio, os embriões são classificados segundo o desenvolvimento orgânico interno, mas também levando-se em conta a idade (em dias pós-concepção, dpc) e o comprimento medido do vértex até o cóccix (comprimento sentado ou V-C, tomado em milímetros com o embrião visto lateralmente).

Fase pré-somítica (estádios 1 a 8): estende-se do 1 ao 18 dpc. Esta fase interessa mais ao embriologista, pois é nela que há o fechamento do embrião.

Fase somítica (estádios 9 a 12): estende-se do 20 ao 26 dpc, quando o embrião humano passa de 1,5 a 5 mm V-C. Nesta fase o coração começa a se organizar (fase da organogênese). Fase pós-somítica (estádios 13 a 23): estende-se do 28 ao 57 dpc, terminando com um embrião de 31 mm V-C. Nesta fase a organogênese termina e inicia-se o crescimento. É a fase que mais interessa ao anatomista.

Cronologia das Etapas do Desenvolvimento Cardíaco

A seguir, faremos uma sinopse das principais aquisições do desenvolvimento cardíaco humano levando em conta o estádio de desenvolvimento embrionário. 24,25,26

Estádio 8 (1 a 1,5 mm V-C, 18 dpc): pode ser identificado o local do primórdio cardíaco adiante da placa pró-cordal. Possivelmente forma-se a porção coneventricular.

Estádio 9 (1,5 a 2,5 mm V-C, 20 dpc): formação da cavidade pericárdica; aparecimento dos sulcos atrioventricular, interventricular, bulboventricular, conetruncal, infundibulotruncal. Presença do plexo endocárdico. Possivelmente o coração começa a bater neste estádio (contrações ineficazes).

Estádio 10 (2 a 3,5 mm V-C, 22 dpc): formação dos dois primeiros pares de arcos aórticos. O coração torna-se assimétrico.

A camada de epimiocárdio diferencia-se em "geléia cardíaca" (mesênquima cardíaco) e plexo endocárdico. Forma-se a alça bulboventricular com a forma de um S numa rotação de sentido anti-horário no plano frontal. O orifício atrioventricular estabelece-se. Início de contrações cardíacas efetivas.

Estádio 11 (2,5 a 4,5 mm V-C, 24 dpc); camada epimiocárdica com duas a três células de espessura. Seio venoso estabelecido e quase separado da porção esquerda do coração. Os átrios agora estão localizados mais cranialmente. Presença de trabeculação no tubo cardíaco, indicando a existência dos ventrículos. Porção do cone separada do ventrículo direito. Início da circulação de um líquido acelular através do coração.

Estádio 12 (3 a 5 mm V-C, 26 dpc): camada epimiocárdica com espessura de três a quatro células. Presença de células reticulares na "geléia cardíaca" (daí a denominação retículo gelatinoso). Átrio esquerdo separado do seio venoso e identificação da abertura sinoatrial no átrio direito. Formação das válvulas venosas. Os canais atrioventriculares estão bem definidos. Início da septação ventricular (formação do septo muscular).

Estádio 13 (4 a 6 mm V-C, 28 dpc): coxins endocárdicos dorsal e ventral presentes; início da formação das cristas espirais da porção de ejeção do coração; o primeiro arco aórtico desaparece, mas O quarto e sexto arcos estão presentes em alguns embriões (podemos encontrar o quinto arco).

Estádio 14 (5 a 7 mm V-C, 32 dpc): intenso desenvolvimento da massa cardíaca. Células epicárdicas e do nó sinoatrial podem ser identificadas. A porção de ejeção do coração gradualmente se desenvolve, dando o vestíbulo aórtico do ventrículo esquerdo, o cone arterial (infundíbulo) do ventrículo direito, a aorta ascendente e o tronco pulmonar.

Estádio 15 (7 a 9 mm V-C, 33 dpc); existem dois tubos cardíacos, direito e esquerdo, sem valvas. O foramen secundum aparece entre os estádios 15 a 17. O ventrículo esquerdo é mais volumoso que o direito. Identificação do nó atrioventricular e das valvas semilunares no estádio 15 ou 16.

Estádio 16 (8 a 11 mm V-C, 37 dpc): os coxins endocárdicos atrioventriculares dorsal e ventral estão fusionados. Os coxins da porção de ejeção do coração se fusionam nos estádios 16 a 17.

Estádio 17 (11 a 14 mm V-C, 41 dpc); o foramen primum está fechado, e o foramen secundum está largamente aberto. Os músculos papilares estão presentes. Os canais atrioventriculares direito e esquerdo estão completamente separados. Há relatos da presença de fibras nervosas na base do septo espúrio. Obtêm-se potenciais elétricos nas células do nó sinoatrial (marcapasso).

Estádio 18 (13 a 17 mm V-C, 44 dpc): o coração apresenta quatro cavidades. O septum secundum pode aparecer entre os estádios 18 a 21. O orifício secundário interventricular se fecha entre os estádios 18 a 20, formando a parte membranácea do septo interventricular. Ainda se encontra tecido gelatinoso reticular (geléia cardíaca). As valvas aórtica e pulmonar aparecem, enquanto as valvas mitral e tricúspide já estão mais avançadas. Aparecem as artérias coronárias.

Estádio 19 (16 a 18 mm V-C, 48 dpc): os miocárdios atrial e ventricular se espessam. Observa-se bem o feixe atrioventricular.

Estádio 20 (18 a 22 mm V-C, 51 dpc): o septum secundum aparece entre os estádios 18 e 21.

Estádio 21 (22 a 24 mm V-C, 52 dpc): as valvas semilunares tornam-se celulares e preenchem os seios aórtico e pulmonar.

Estádio 22 (23 a 28 mm V-C, 54 dpc): a veia cava superior esquerda oblitera-se entre os estádios 21 e 23.

Estádio 23 (27 a 31 mm V-C, 57 dpc): estão presentes os nós sinoatrial (SA) e atrioventricular (AV), o feixe AV (de His) e seus ramos. A inervação cardíaca, simpática e parassimpática, corresponde à do adulto.

O Dobramento Cardíaco

Inicialmente, o coração tem a forma de um tubo fixado nas duas extremidades (Fig. 2-1). O progressivo desenvolvimento deste tubo, mais intenso que o crescimento da cavidade pericárdica, faz com que ele se dobre sobre si mesmo e se decomponha em cinco segmentos. Da extremidade venosa (dorsal, fixada pela confluência das veias) à extremidade arterial (ventral, fixada aos arcos branquiais), temos:

a) o seio venoso - para onde confluem todas as veias do embrião;

b) o átrio primitivo - inicialmente uma cavidade única;

c) o ventrículo primitivo - que será depois o ventrículo esquerdo;

d)o bulbo cardíaco (bulbus cordis) - que será depois o ventrículo direito;

e ) conetronco (conotruncus) - que formará a aorta e a artéria pulmonar e que continua pela aorta ventral primitiva e os primeiros arcos aórticos.

Os dobramentos acontecem no sentido anti-horário. O primeiro acontece no plano sagital e coloca o ventrículo primitivo na frente do átrio primitivo.

O segundo dobramento acontece no plano frontal e coloca o bulbo cardíaco à direita do ventrículo primitivo. Este dobramento tendo convexidade direita, determinará a posição dos ventrículos. Assim, o bulbo cardíaco agora encontra-se à direita, junto com o fígado e a porção direita do átrio primitivo. Apesar dos dobramentos, internamente o coração apresenta ainda apenas uma cavidade. O seio venoso continua-se com o átrio primitivo este com o ventrículo primitivo, que por sua vez comunica-se com o bulbo cardíaco, e este com a porção do conetronco (Figs. 2-2 e 2-3). Novos eventos farão a divisão interna do coração.4

A Septação Atrial


O seio venoso é uma câmara de paredes delgadas formada pela confluência das grandes veias que estão chegando ao coração (Fig. 2-4). Apresenta dois cornos: o corno esquerdo regride, enquanto o direito mantém contacto com a porção direita do átrio primitivo. Do seio venoso o sangue passa para o átrio através do orifício sinoatrial, que é guardado por duas válvulas venosas (direita e esquerda)27 (Fig. 2-5).

Deste modo, há um aumento de volume do átrio, principalmente da porção direita. Em determinado momento, a expansão atrial é limitada pela posição do conetronco, ventrocranial, o que provoca o aparecimento de uma crista interna no átrio. Esta crista cresce no sentido craniocaudal e dorsoventral, tendo a forma de uma meia-lua de concavidade caudal e ventral; é o septum primum (ou simplesmente septo I). A abertura que comunica as duas porções do átrio primitivo, e que agora está limitada pelo septo I cranial dorsalmente e pelos coxins endocárdicos caudalmente, é chamada de foramen primum (ou forame I)10 (Figs. 2-2 e 2-6).

Gradualmente, o septo I cresce e tende a fechar o forame I, mas antes mesmo de isto se completar (devido ao também progressivo aumento da cavidade do átrio primitivo) aparecem perfurações nas partes cranial e dorsal do septo I, que coalescem e se transformam no foramen secundum (ou forame II), que mantém a comunicação entre as porções direita e esquerda do átrio primitivo (esta é necessária à circulação embrionária depois do fechamento do forame I)4 (Fig. 2-5).

Simultaneamente, aparece uma outra crista interna no átrio, à direita do septo I, inicialmente cranial e ventral a este, recobrindo o forame II. É o septum secundum (ou septo II), incompleto, permitindo uma passagem oblíqua através da septação interatrial, que é importante na fisiologia circulatória até o nascimento, o forame oval (Figs. 2-6, 2-7 e 2-12B).

As anomalias da septação atrial fazem parte das malformações cardíacas congênitas mais freqüentes. Podemos citar:4

a) persistência do forame oval: pode ser reconhecida no curso de um cateterismo cardíaco, quando a sonda passa de um átrio ao outro com um trajeto oblíquo. Normalmente não provoca shunt;

b) as comunicações interatriais do tipo "forame II" são as mais comuns. Podem ser devidas a anomalias do desenvolvimento de pelo menos um dos dois septos. O orifício anormal encontra-se em relação com a fossa oval;

c) pequenos orifícios podem existir na porção superior da fossa oval;

d) as comunicações interatriais (CIA) do tipo "forame I" correspondem a uma persistência do forame I associada a um defeito do desenvolvimento dos coxins atrioventriculares;

e) átrio único é uma malformação rara devida à ausência completa de todo o septo interatrial.

A Septação Ventricular

Os ventrículos são formados pelo desenvolvimento temporal e espacialmente equilibrados de vários componentes: desenvolvimento das células miocárdicas, formação da porção muscular do septo interventricular (IV), separação do orifício atrioventricular (AV) em direito e esquerdo, formação do septo do cone e da porção membranácea do septo IV.23

Na fase de formação da "alça" cardíaca, existe uma grande comunicação entre os primitivos ventrículos direito e esquerdo. Mais tarde, quando se desenvolvem o "sulco bulboventricular" e a trabeculação dos ventrículos, esta comunicação entre os ventrículos persiste, formando o forame IV primário33 (Figs. 2-3 e 2-5).

Inicialmente cresce no sentido caudocranial uma crista muscular começando a separar as duas cavidades ventriculares. Situa-se na junção do bulbo cardíaco com o ventrículo primitivo e aparece em conseqüência do crescimento desses dois elementos. O forame IV primário está limitado caudalmente pelo septo IV muscular, dorsalmente pela parede do tubo cardíaco, e cranialmente pela crista coneventricular. O deslizamento do canal AV para a direita modifica os limites do forame IV primário. Disso resulta o surgimento do forame IV secundário, que é um anel incompleto aberto dorsalmente. Agora o limite dorsal do forame é formado pela parte direita dos coxins AV superior e inferior, que ainda não se fusionaram completamente.8,22

A septação interventricular quase se completa em conseqüência do crescimento do septo IV muscular.10 Entretanto, resta cranialmente um pequeno orifício (considerado às vezes o forame IV terciário4) que só será fechado quando se completar a fusão dos coxins endocárdicos AV (Fig. 2-5 A). Principalmente à custa do coxim AV inferior e lateral direito fecha-se esta comunicação, formando-se a porção membranácea do septo IV22 (Fig. 2-8).

As persistências de comunicação interventricular são mais comuns na porção membranácea do septo IV. Localizam-se normalmente na parte superior do septo IV, sob a inserção da válvula septal da valva tricúspide. Do lado esquerdo aparece entre as válvulas semilunares aórticas posterior e direita.31

As persistências de comunicação interventricular do tipo muscular podem ser isoladas ou associadas a uma comunicação membranácea. Podemos ainda encontrar comunicações infundibulares raras ou mesmo ventrículo único.4

A Formação das Valvas Atrioventriculares e Semilunares


As valvas mitral e tricúspide se desenvolvem simultaneamente ao processo de partição do canal atrioventricular (AV),4 e encontram-se bem identificadas desde o estádio 18, onde suas margens protrusas e presas a músculos papilares deixam supor que sejam funcionais já nesta época11 (a Fig. 2-8 ilustra as valvas no estádio 19).

Inicialmente são formadas por tecido semelhante ao dos coxins endocárdicos AV (ou seja, a geléia ou mesênquima cardíaco), e por isso são consideradas tradicionalmente derivadas e dependentes destes coxins. Atualmente, entretanto, considera-se que o miocárdio invade e substitui os coxins AV em determinada fase do desenvolvimento cardíaco, contribuindo mais do que estes na formação das valvas (Fig. 2-8). Somente no feto a partir de três meses de gestação é que o tecido muscular das válvulas (= folhetos) das valvas AV será substituído por tecido conjuntivo denso coberto por endocárdio28,33 (Fig. 2-12B).

Podemos encontrar no adulto um "orifício mitral duplo": é um evento raro (cerca de 50 casos relatados na literatura científica), possível devido a uma fusão precoce de porções dos coxins endocárdicos nos estádios 15 a 16. Normalmente é assintomático e não necessita de tratamento; pode ser detectado no exame ecográfico do coração.9

As valvas arteriais dependem da formação das válvulas semilunares, que surgem como pequenos tubérculos no processo de septação do tronco arterioso.

Este tronco apresenta cristas de trajeto espiral que crescem e no processo de septação acabam fazendo com que a aorta se ligue ao ventrículo esquerdo e o tronco pulmonar ao ventrículo direito.

Com a divisão do saco aórtico em tronco pulmonar e aorta, o mesênquima que rodeia os vasos parece se fusionar com os grandes componentes de material proveniente dos coxins endocárdicos.19 Estes, então, se dividem em três tubérculos com aproximadamente o mesmo tamanho e crescem na luz arterial (Fig. 2-9).

A valva pulmonar tem origem nos três tubérculos à direita do trato de ejeção ventricular, enquanto a valva aórtica tem origem nos três tubérculos à esquerda deste trato. As válvulas (= cúspides) e os seios aórtico (de Valsalva) e pulmonar são formados por um processo de erosão nesses tubérculos, que correspondem externamente ao sulco bulbotruncal (que é por isso denominado "linha divisória").8 Assim, o nível onde se formam as valvas arteriais pode ser entendido como a linha de demarcação entre o tronco arterioso e a porção de saída ventricular chamada cone.27

A Formação da Circulação Arterial e Venosa do Coração


Nos primeiros estádios do desenvolvimento embrionário, o miocárdio apresenta uma estrutura esponjosa cuja nutrição não necessita de um sistema vascular especial.

No embrião humano dos estádios 14 a 15 (aproximadamente 8 mm V-C) encontra-se um plexo endotelial subepicárdico que tem sido considerado a primeira indicação do sistema vascular cardíaco.7 As veias cardíacas aparecem simultaneamente com as artérias coronárias, mas como vasos independentes.6

Acredita-se classicamente que as artérias coronárias são formadas a partir de evaginações do seio aórtico que alcançam depois a camada subepicárdica durante a sétima semana gestacional.27 Entretanto, evidências de estudos recentes empregando técnicas de imuno-histoquímica para analisar a origem das artérias coronárias em aves sugerem que estas têm origem no próprio epicárdio, alcançando mais tardiamente o seio aórtico.3 As duas hipóteses são discordantes, e, revendo este problema numa coleção de embriões humanos (de Paris), preferimos a segunda hipótese12 (Fig. 2-9).

As artérias coronárias não apresentam bilateralmente o mesmo desenvolvimento cronológico em embriões diferentes. Classicamente, tem sido descrita a conexão proximal das artérias coronárias com o seio aórtico a partir do estádio 18. Todavia, temos identificado a artéria coronária esquerda como uma invaginação endotelial tubular percorrendo a camada subepicárdica e unindo-se ao seio aórtico apenas em 3/4 dos embriões no estádio 18 que analisamos. Somente no estádio 19 encontramos 100% de presença tanto da artéria coronária esquerda como da direita. Estes resultados concordam com relatos da literatura.6 A partir do estádio 20 encontramos artérias coronárias apresentando uma estrutura mais complexa, com revestimento de uma ou mais camadas de células mesenquimais (Fig. 2-9C).

No final da oitava semana de gestação, portanto o fim do período embrionário e início do período fetal, o padrão anatômico das artérias coronárias está praticamente definidas nos seus principais ramos;23 ao nascimento, podemos reconhecer estes ramos facilmente (Fig. 2-12A). Uma questão, entretanto, não tem ainda resposta: por que estas artérias sempre se unem apenas aos seios aórticos direito e esquerdo se a estrutura e as condições parecem ser as mesmas para os se seios das grandes artérias embrionárias?7

A Formação do Sistema de Condução Cardíaco


Desde os primeiros estádios da fase pós-somítica do desenvolvimento embrionário o coração exibe porções de miocárdio em forma de anéis com características especializadas (sinoatrial, atrioventricular, bulboventricular e bulbotruncal). 32

Inicialmente o átrio primitivo age como o marcapasso, deixando um pouco mais tarde, esta função para o seio venoso. O nó sinoatrial (NSA) tem origem no seio venoso no local de entrada da veia cardinal direita, região que corresponde ao anel sinoatrial (Figs. 2-5 e 2-7). Progressivamente, transforma-se numa densa rede colágena e forma a parte da parede atrial direita, originada do seio venoso, que se liga à abertura veia cava superior (sulcus terminalis).1,2

O nó atrioventricular (NAV) tem origem tanto no anel sinoatrial como no atrioventricular a partir de células localizadas na entrada da veia cardinal esquerda no seio venoso.32 Tem sido reconhecido já no embrião de 7 mm V-C como uma massa celular relativamente isolada imediatamente acima do sulco atrio-ventricular (a única estrutura a separar átrio e ventrículo nesta fase do desenvolvimento cardíaco)30 (Fig. 2-7).

A válvula venosa direita faz uma ponte de miocárdio entre as regiões que originam os NSA e NAV no período de desenvolvimento o embrionário pós-somítico (principalmente o estádio 19, embrião de cerca de 17 mm V-C) (Fig. 2-7). Pode ser que esta "ponte" seja a origem de feixes especializados internodais no coração desenvolvido, mas isto ainda é discutido atualmente.14

O feixe atrioventricular (FAV) se forma a partir da fusão dos anéis atrioventricular e bulboventricular provocada pela invaginação deste último no processo de septação ventricular.32 Tem sido identificado desde o estádio 17 (embrião de 13 mm V-C), e podemos vê-lo em embriões dos estádios 1815 e 1914,18 (Fig. 2-8); no estádio 22 (embrião de 25 mm V-C), o FAV constitui um feixe largo que atravessa o alto do septo interventricular e tem continuidade nos dois ventrículos. Uma falha na fusão normal entre o NAV e o FAV resulta numa variedade de anomalias juncionais, incluindo o bloqueio cardíaco congênito.30

O anel bulboventricular formará igualmente o ramo direito, enquanto o ramo esquerdo aparecerá apenas mais tarde devido a um crescimento secundário dos anéis atrioventricular e bulboventricular. 32

O Crescimento Cardíaco Embrionário e Fetal


O coração modifica sua forma exterior e interior, e também cresce durante a vida pré-natal, à custa de grande atividade de divisão celular. Imediatamente após o nascimento, o crescimento cardíaco ainda é mitótico (hiperplasia), mas logo este se faz unicamente devido ao aumento individual das células miocárdicas, cujo número permanece constante (hipertrofia).20 Comparamos a forma exterior e o tamanho do coração em dissecções de embriões humanos nos estádios 17, 22 e 23 (Fig. 2-10).

A quantificação do crescimento de órgãos na vida pré-natal exige a escolha prévia do modelo matemático a ser seguido. Em biologia, as determinações de crescimento e de relação tamanho/forma são normalmente avaliadas pelo método alométrico. Este utiliza a equação de potência na forma y = a x b ou com os dados transformados em logaritmos log y = log a + b (log x ), sendo y a variável dependente e x a independente, e b o coeficiente alométrico (coeficiente angular).29

O coeficiente alométrico mede a relação matemática entre a variação do parâmetro y e a variação do parâmetro x . Se estes parâmetros forem tomados em estruturas que estejam em crescimento, então b pode quantificar este crescimento. Quando b indica que a variação relativa de y equivale à variação relativa de X numa determinada extensão da análise, dizemos que existe crescimento isométrico. Quando b indica preponderância da variação relativa de X , dizemos que há crescimento alométrico negativo, e quando há preponderância de y, crescimento alométrico positivo. Deste modo, estabelecemos equações e gráficos específicos do crescimento de órgãos, interpretando melhor este fenômeno.

Considerando o volume (em milímetros cúbicos) ou o peso cardíaco (em gramas) como a variável dependente (y),15,16,18 podemos correlacioná-la aos parâmetros de crescimento embrionário e fetal: idade (em dias ou semanas pós-concepção), comprimento vertex-cóccix (V-C, em milímetros) e peso corporal (em gramas).

No embrião, o crescimento cardíaco é isométrico em relação ao aumento ponderal do corpo (b = 0,94 quando a isometria é considerada igual a 1), e alométrico negativo em relação ao comprimento V-C (b = 2,17 quando a isometria é considerada igual a 3)10 (Fig. 2-11).

No feto também encontramos isometria do crescimento cardíaco em relação ao peso corporal (b = 1,03 sendo a isometria igual a 1). Entretanto, vemos alometria positiva daquele em relação ao comprimento V-C (b = 3,39 sendo a isometria igual a 3).13,17

Estes resultados podem ser explicados pelo acelerado crescimento longitudinal do corpo no período embrionário, que aumenta rapidamente a "estatura" do embrião e faz com que esta seja preponderante. O aumento da "estatura", no entanto, é menos acentuado no período fetal, deixando que o aumento volumétrico/ponderal do coração (que segue equivalente ao crescimento ponderal tanto no embrião como no feto) seja proporcionalmente maior agora. Uma aplicação prática deste conhecimento, e das equações e gráficos do crescimento cardíaco, está na possibilidade de sua aplicação a partir de exames não-invasivos de acompanhamento gestacional, como a ultra-sonografia. Assim, poderiam ser detectadas precocemente alterações do crescimento do coração (ou outros órgãos), possibilitando até tentativas de tratamento in utero, cada vez mais freqüentes na medicina.

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