Capítulo 03.03. Infecções Retroperitoneais

José Cecyvaldo Ribeiro
Alcino Lázaro da Silva

Introdução

A infecção retroperitoneal (IRP) é um acometimento bacteriano, agudo ou crônico, dos tecidos celuloadiposos localizados atrás do peritônio, desde a pelve à região infradiafragmática (retroperitonite).8

A sua importância deve-se mais por ser grave e pela facilidade em disseminar-se por toda a área e estender-se às adjacentes, do que pela sua freqüência.

Há alta mortalidade pela gravidade da infecção, pela disseminação, pelos sinais e sintomas pouco precoces e pouco evidentes e pela impossibilidade de atuarmos, enérgica e oportunamente com os recursos operatórios.

Anatomia


O rim tem mobilidade no seu espaço facial. Movimenta-se com a respiração, até em 3 cm no sentido vertical. É sustentado por seu pedículo, pela compressão exercida no arranjo das vísceras intra-abdominais, pela pressão intracavitária e pela musculatura parietal.

Está envolvido pela cápsula fibroadiposa que se adere frouxamente à cápsula própria do parênquima.

A cápsula fibroadiposa (de Gerota) separa o rim da parede abdominal e do peritônio parietal posteriores. É constituída por f6scia fibrosa (fáscia renal) dependente da camada celular que recobre o peritônio. Desdobra-se em dois folhetos que recobrem o rim: posterior (fáscia de Zuckerkandl) e anterior, mais delgada, reforçada pela fáscia de Toldt que fornece o plano de descolamento pancreatoesplênico. Na borda medial do rim elas se fundem exceto, no nível do pedículo. Na parte superior ela parece fundir-se e depois continuar envolvendo a glândula suprarenal. Esta noção é controvertida, mas o cirurgião sabe que o rim se desloca sem necessidade de mobilizar ou lesar a supra-renal. Na parte inferior, a cápsula se prolonga até a ilíaca, sem se fundir, a não ser na sua borda externa. Este fato deixa uma cavidade virtual, aberta inferiormente, e neste espaço forma-se bainha em volta do ureter, até a bexiga.

Entre a borda convexa da cápsula própria do rim e a face interna da fibroadiposa existem tratos fibrosos resistentes, unindo-as, o que praticamente forma duas cavidades perirrenais: anterior e posterior.

O folheto posterior, medialmente, fixa-se à coluna lombar, o folheto anterior (pré-renal) continua-se, medialmente, na frente dos grandes vasos, unindo-se ao folheto pré-renal contralateral, estabelecendo uma comunicação entre as lojas.

O peritônio parietal posterior adere-se de maneira mais firme à fáscia pré-renal, não fornecendo bom plano de clivagem. Ao contrário da fáscia retrorrenal que está separada da aponeurose lombar por conteúdo adiposo, às vezes rico, o que possibilita a fácil mobilização e a criação de um espaço pararrenal ou retrorrenal.

Classificação

Baseado em dados anatômicos podem-se dividir as infecções (abscessos) retroperitoneais em três fori-nas:10

Perirrenal. São as mais freqüentes, envolvendo total ou parcialmente o rim. Dependendo da fase em que se trata o paciente, não se pode precisar se este abscesso iniciou-se no parênquima ou no próprio espaço. Quando o rim está preservado, mesmo tendo sido a fonte de contaminação, as coleções se observam mais atrás, embaixo e lateralmente a ele. O espaço mais frouxo e a bipedestação facilitam o acúmulo nestes locais.

Pré-renal. Anterior ou pararrenal anterior, os abscessos acumulam-se sem grande possibilidade de disseminação retroperitoneal, pela resistência dos tecidos que aí são mais íntimos. Por esta razão é que estes abscessos procuram a cavidade abdominal para drenagem ou expansão. Nesse caso, eles determinam mobilizações ou compressões, sobretudo, das alças intestinais.

Retrorrenal. Posterior ou pararrenal posterior. Pela facilidade de descolamento destes tecidos, a infecção se instala, auxiliada pelo fenômeno da gravidade, abaixo e ao lado do rim. Ocupando todo o espaço retrofascial, envolve todo o psoas e a loja virtual determinada pela lordose natural da coluna (correspondente à musculatura lombossacra). Nestes casos a delimitação renal ao RX fica preservada, não ficando nítida ou não existindo a linha do psoas.

Etiopatogenia

As bactérias; encontradas variam muito em número. Prevalecem, no entanto, as gram-negativas (Proteus e E. coli). As outras são estafilo e estreptococos. As específicas (raras) são por clostrídio, fungo e bacilo de Koch.4

Elas penetram o por vários caminhos: perfuração visceral traumática, cirurgia local ou peritoneal, doenças inflamatórias, infecções de órgãos vizinhos, abscessos abdominais, infecções pélvicas, infecções mediastinais e até retrofaríngeas. As migrações bacterianas por vias hemáticas ou linfáticas são mais raras, apesar de serem possíveis(metástases piogênicas).

As condições clínicas associadas são: idade, diabetes, estado nutricional, obesidade, insuficiências hepática e renal, distúrbios de perfusão ou coagulação, infecções associadas.4

A infecção se instala pelos mais variados meios de penetração. Estes e todos os fatores associados, predisponentes ou desencadeantes geram o quadro inflamatório. A intercomunicação fácil, a frouxidão dos tecidos, o baixo teor de células do sistema imunitário e a riqueza de tecido gorduroso facilitam a disseminação e, conseqüentemente, os abscessos se formam mais raramente, na fase inicial.

Os focos mais prováveis são: (a) tubo digestivo: apêndice, sigmóide, parede posterior do duodeno; (b) glândulas anexas: pancreatites ou trauma de pâncreas; (c) ossos: coluna lombar e arcos costais inferiores; (d) vias urinárias: ruptura renal, infecções com ou sem abscessos, tumores renais, obstruções urinárias por litíase, acometimentos graves do parênquima renal; (e) a distância: infecções de pele ou de parênquima pulmonar, e (f) outros; perfuração traumática do espaço por punções, projéteis, armas bancas.

Dependendo do balanço agressão-defesa, teremos quadro clínico variado. Pode haver reação imediata e abscesso ou reação protraída e difusão bacteriana com celulite generalizada a uma parte ou a todo o tecido retroperitoneal. Este conceito anatomopatológico é de importância porque poderemos ter infecções graves com comprometimento do estado geral, sem correspondência paralela dos sinais e sintomas. Uma terceira possibilidade é a transformação de um abscesso bem localizado em: celulite por drenagem insuficiente e espontânea (de necessidade); persistência por drenagem malfeita por técnica inadequada ou inoportuna ou bacteriemia.2,3

Não se esquecer de que uma infecção grave, resistente ou persistente, pode ter um foco intraperitoneal (tubo digestivo) alimentando-a (divertículo, úlcera, perfuração traumática).

Diagnóstico

Clínico. O quadro clínico é muito variável e depende da fase em que examinamos o paciente e da intensidade do processo e da formação do abscesso.5

O doente, inicialmente, apresenta-se febril, sem hipertermias graves como nas linfangites ou erisipela, por exemplo. Associam-se: incômodo, mal-estar, dor vaga o surda (uni e bilateral) na região lombar e as queixas inespecíficas relativas ao tubo digestivo (anorexia, náuseas, vômito). Pelo lado urinário pode haver queixas imprecisas que, inicialmente, podem induzir a um falso raciocínio e propedêutica inadequada. A generalização do processo à parte ou a todo o retroperitônio gera novos sinais ou sintomas, como: persistência da febre; distensão abdominal; sinais discretos de hipersensibilidade peritoneal; derrames pleurais; posições antálgicas da coluna lombossacra e hipersensibilidade lombossacra (Mediana, uni ou bilateral), com o teste de punhopercussão (Giordano) positivo simulando doença renal?

O toque retal e a retossigmoidoscopia poderão demonstrar abaulamentos por coleções baixas ou a hipersensibilidade peritoneal.

O processo evolui para abscesso ou se estabiliza, no sentido de manter a sintomatologia até por muitos dias e neste ponto as dificuldades diagnósticas são grandes, pois o médico que espera encontrar coleções ou flutuações nada recolhe em sua propedêutica.

Na evolução para o abscesso, a febre adquire caráter supurativo com picos presentes ou elevados à tarde, o estado geral se compromete, há emagrecimento e sintomas urinários mais nítidos (disúria, hematúria). Com cuidado e, às vezes, com facilidade, consegue-se apalpar tumefação ou abaulamento doloroso em um dos flancos com ou sem flutuação. A posição antálgica (escoliose) é bastante evidente e constante. Pode-se encontrar irradiação dolorosa para ossos da pelve ou articulação coxofemoral.

Em fase mais adiantada, de um processo não diagnosticado ou não tratado, tanto a disseminação do processo infeccioso como a drenagem do abscesso podem ter caminhos imprevisíveis e variados: desde o aumento em extensão local até a septicemia e óbito, passando por invasão de tecidos na pelve, mediastino, espaço subfrênico, cavidade pleural, espaço faríngeo, parede abdominal anterior e cavidade peritoneal.

O diagnóstico precoce é importante para evitar complicações graves, mortalidade e uma doença crônica de difícil tratamento (fibrose retroperitoneal). 4,6,7

Complementar. Os exames laboratoriais não são específicos. Encontra-se no hemograma a série vermelha hipocrômica e branca com leucocitose e desvio para a esquerda. Granulações tóxicas nos neutrófilos sugerem um quadro mais grave. A importância do leucograma está em que sua elevação demonstra supuração ou agravamento desta.

Outros não têm significado e o de urina aparece normal ou com alterações que também ocorrem nas infecções urinárias: hematúria, piúria, cilindrúria, cultura positiva. Isto decorre da irritação do parênquima renal ou do ureter, infecção ou abscesso.

O RX de tórax pode mostrar derrames pleurais e, excepcionalmente, alterações parenquimatosas (Fig. III-3-1).

O RX de abdômen mostra a distensão de alças, o velamento da silhueta renal ou da linha do músculo psoas, homolaterais ao processo infeccioso. A coluna aparece desviada, com o ângulo variando com o grau e intensidade do acometimento. As infecções por E. coli, Clostridium e Aerobacter, normalmente produtoras de gases, fornecem imagens radiológicas difusas e irregulares de distribuição gasosa na área doente. Se a constatação de ar for na pelve e no pós-operatório de histerectomia, pode ser um encarceramento gasoso sem significado. 2

Radiografias contrastadas do tubo digestivo ou das, vias urinárias poderão ajudar no diagnóstico, apesar de terem indicação relativa por algum risco que oferecem em pacientes de mau estado geral. O enema opaco por repleção e o nefrograma excretor mostram defeitos de imagem ou desvios de posições pela compressão extrínseca, determinada pela coleção purulenta. O cólon estará desviado para a frente, à direita ou à esquerda, e o rim para o lado, para baixo ou para cima. A pielografia ascendente, por ser, naturalmente, um exame mais arriscado, não é indicada (Figs. III-3-2 e III-13).

A tomografia e a arteriografia são inexeqüíveis pelo alto custo, apesar de demonstrarem, indiretamente, a presença de coleções. O ultra-som mostra a região abscedada, através de uma área de ecogenicidade maior. Não deve, no entanto, ser valorizado além de um exame clínico cuidadoso e seqüencial, pois às vezes mostra imagens inexistentes, a despeito da sua inocuidade e precisão.1 (Figs. III-3-4 e III-3-5).

Diferencial. O diagnóstico diferencial será feito com inúmeras doenças intra e extra-abdominais. As mais freqüentes são: apendicite, infecção urinária, outras doenças renais obstrutivas, diverticulite, pancreatite aguda, pleurite, abscessos subfrênicos, perfurações ulcerosas posteriores, infiltrações urinárias, hemorragia retroperitoneal.

Tratamento

O clínico é fundamental porque pode-se deter a evolução do processo e prevenir celulites, supurações e complicações de abscessos instalados e não tratados convenientemente.

Como tem caráter mais invasivo, pela facilidade de disseminação, o doente deve ser internado e ter todos os seus desvios corrigidos. Pode ocorrer: anemia, desidratação, desvios ácido-básicos, bacteriemias, septicemias, hipertermias do tipo supurativas. Os sintomas conseqüentes a reflexos viscerais (digestivos ou urinários) serão tratados sintomaticamente.

Os antibióticos têm destaque especial porque podem controlar grande número dessas infecções. O cuidado maior é associá-los ou usar os de espectro amplo para controlar a flora mista: gram-negativo/positivo e os anaeróbios.

O tratamento cirúrgico deve ser instalado quando houver certeza ou suspeita forte de supuração.

O ponto vital do sucesso é o momento da drenagem. Esta é fácil tecnicamente; difícil é fazê-la no momento exato, ou seja, quando houver flutuação sem complicações decorrentes de sua evolução. A dificuldade maior se encontra ao exame físico, porque sendo um acometimento profundo e protegido por musculatura desenvolvida ou por tecido granuloso subcutâneo exuberante, não se palpa a flutuação com facilidade.

O que faz a intervenção situar-se no momento ideal é a conjugação da observação clínica, calcada na evolução da doença, do exame clínico cuidadoso, bom senso e experiência.

Técnica Cirúrgica. O doente é colocado em decúbito lateral sobre um coxim no nível das costelas inferiores.

Protege-se a região, amplamente, com anti-sepsia e campos cirúrgicos.

A partir do ângulo costovertebral, no ângulo formado pela 12ª costela e musculatura sacrolombar, faz-se pequena incisão, de direção oblíqua de cima para baixo. em direção à espinha ântero-superior do ilíaco.

Abre-se pele, tela subcutânea, fáscia superficial (Scarpa). Expõem-se os músculos grande dorsal posteriormente e o oblíquo externo anteriormente. Se for possível, eles devem ser divulsionados e afastados para atingir-se o plano intermediário constituído pelo oblíquo interno e pelo serrátil menor.

Os oblíquos anteriormente e o grande dorsal e serrátil menor, posteriormente afastados com tração satisfatória, mostram o terceiro plano, representado pelo músculo transverso (porção aponeurótica).

Como o acesso é pequeno deve-se, mantendo-se o afastamento muscular, pesquisar com toque digital ou punção com agulha grossa a zona flutuada. Se esta for perirrenal, superficial ou alta, facilmente será drenada, pela abertura da fáscia, perirrenal ou dos tecidos reparativos neoformados.

Se a coleção for baixa, anterior ou posterior ao rim, há necessidade de ampliar a incisão de pele e seccionar a musculatura em sentido anterior. Neste caso, envolve-se parte dos músculos ântero-laterais do abdômen: oblíquos e transverso.

Localizada a loja do abscesso, aspirar, desbridar e divulsionar os tecidos, estabelecendo uma ampla comunicação, entre ela e a abertura da pele. Um dreno grosso é colocado e exteriorizado na parte inferior da incisão ou por contra-abertura ântero-inferior. Síntese da pele, somente.

Nos pacientes obesos ou musculosos, a separação simples dos músculos é ineficaz. Temos que seccioná-los parcialmente, no sentido anterior e, às vezes, envolvendo as bordas anteriores dos músculos grande dorsal e serrátil.

Nos casos avançados de abscessos que envolvem o rim já tivemos oportunidade de encontrar destruição renal grave completa. Nestes casos é preciso cuidado porque uma divulsão profunda pode lesar o pedículo renal que ainda persiste (Fig. III-3-6).

Outros cuidados importantes são: supra-renal e baço. acima; cólon, na frente; o rim, no meio; e os vasos retroperitoneais, atrás.

A divulsão cuidadosa e a punção bem orientada previnem lesão destes elementos. A lembrança de que só se deve fazer uma drenagem ampla e não dissecção operatória com exposição de estruturas anatômicas previne também iatrogenias.

O dreno será retirado tão logo desapareça a secreção ou o estado geral esteja em boas condições (Fig. III-3-7).

Em casos muito graves e com toxicoinfecção pode se fazer uma drenagem de emergência. O doente é assentado, com flexão do tronco e apoiado em travesseiros. Faz-se pequena incisão infracostal e, por divulsão, atinge-se a loja abscedada. Dependendo da evolução, melhorado o estado geral, faz-se a drenagem cirúrgica mais bem orientada.

Referências Bibliográficas

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2. GILMORE, H.T. & BEECHAM, C.T. Obstet. Gynecol., 49:97, 1977.

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4. MERIMSKY, E. & FELDMAN, C. Int. Surg., 66:79, 1981.

5. NEUHOF, H. & ARNHEIM, E,E. Ann. Surg., 11Q741, 1944.

6. ORMOND, J.K. J. Urol., 94:385, 1965.

7. ORMOND, JK. Urol. Survey, 25:53, 1975.

8. RESENDE ALVES, J.B. Cirurgia Geral e Especializada. Mec-Vega, Belo Horizonte, vol. 8, p. 623, 1973.

9. ALVATIERRA, O. et al. J. Urol., 98:296, 1967.

10 STEVENSON, E.O.S. Surg. Gynec. Obst., 128:1.202, 1969.

11. TESTUT, L. & L.ATARJET, A. Tratado de Anatomia Humana. Rio de Janeiro, Salvat Editores S.A. 9 ed., p. 873, 1952.

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