José Cecyvaldo Ribeiro
Alcino Lázaro da Silva
Introdução
A infecção retroperitoneal (IRP) é um acometimento
bacteriano, agudo ou crônico, dos tecidos celuloadiposos localizados atrás do
peritônio, desde a pelve à região infradiafragmática (retroperitonite).8
A sua importância deve-se mais por ser grave e pela
facilidade em disseminar-se por toda a área e estender-se às adjacentes, do que pela sua
freqüência.
Há alta mortalidade pela gravidade da infecção, pela
disseminação, pelos sinais e sintomas pouco precoces e pouco evidentes e pela
impossibilidade de atuarmos, enérgica e oportunamente com os recursos operatórios.
Anatomia
O rim tem mobilidade no seu espaço facial. Movimenta-se
com a respiração, até em 3 cm no sentido vertical. É sustentado por seu pedículo,
pela compressão exercida no arranjo das vísceras intra-abdominais, pela pressão
intracavitária e pela musculatura parietal.
Está envolvido pela cápsula fibroadiposa que se adere
frouxamente à cápsula própria do parênquima.
A cápsula fibroadiposa (de Gerota) separa o rim da parede
abdominal e do peritônio parietal posteriores. É constituída por f6scia fibrosa
(fáscia renal) dependente da camada celular que recobre o peritônio. Desdobra-se em dois
folhetos que recobrem o rim: posterior (fáscia de Zuckerkandl) e anterior, mais delgada,
reforçada pela fáscia de Toldt que fornece o plano de descolamento pancreatoesplênico.
Na borda medial do rim elas se fundem exceto, no nível do pedículo. Na parte superior
ela parece fundir-se e depois continuar envolvendo a glândula suprarenal. Esta noção é
controvertida, mas o cirurgião sabe que o rim se desloca sem necessidade de mobilizar ou
lesar a supra-renal. Na parte inferior, a cápsula se prolonga até a ilíaca, sem se
fundir, a não ser na sua borda externa. Este fato deixa uma cavidade virtual, aberta
inferiormente, e neste espaço forma-se bainha em volta do ureter, até a bexiga.
Entre a borda convexa da cápsula própria do rim e a face
interna da fibroadiposa existem tratos fibrosos resistentes, unindo-as, o que praticamente
forma duas cavidades perirrenais: anterior e posterior.
O folheto posterior, medialmente, fixa-se à coluna
lombar, o folheto anterior (pré-renal) continua-se, medialmente, na frente dos grandes
vasos, unindo-se ao folheto pré-renal contralateral, estabelecendo uma comunicação
entre as lojas.
O peritônio parietal posterior adere-se de maneira mais
firme à fáscia pré-renal, não fornecendo bom plano de clivagem. Ao contrário da
fáscia retrorrenal que está separada da aponeurose lombar por conteúdo adiposo, às
vezes rico, o que possibilita a fácil mobilização e a criação de um espaço
pararrenal ou retrorrenal.
Classificação
Baseado em dados anatômicos podem-se dividir as
infecções (abscessos) retroperitoneais em três fori-nas:10
Perirrenal. São as mais freqüentes, envolvendo total ou
parcialmente o rim. Dependendo da fase em que se trata o paciente, não se pode precisar
se este abscesso iniciou-se no parênquima ou no próprio espaço. Quando o rim está
preservado, mesmo tendo sido a fonte de contaminação, as coleções se observam mais
atrás, embaixo e lateralmente a ele. O espaço mais frouxo e a bipedestação facilitam o
acúmulo nestes locais.
Pré-renal. Anterior ou pararrenal anterior, os abscessos
acumulam-se sem grande possibilidade de disseminação retroperitoneal, pela resistência
dos tecidos que aí são mais íntimos. Por esta razão é que estes abscessos procuram a
cavidade abdominal para drenagem ou expansão. Nesse caso, eles determinam mobilizações
ou compressões, sobretudo, das alças intestinais.
Retrorrenal. Posterior ou pararrenal posterior. Pela
facilidade de descolamento destes tecidos, a infecção se instala, auxiliada pelo
fenômeno da gravidade, abaixo e ao lado do rim. Ocupando todo o espaço retrofascial,
envolve todo o psoas e a loja virtual determinada pela lordose natural da coluna
(correspondente à musculatura lombossacra). Nestes casos a delimitação renal ao RX fica
preservada, não ficando nítida ou não existindo a linha do psoas.
Etiopatogenia
As bactérias; encontradas variam muito em número.
Prevalecem, no entanto, as gram-negativas (Proteus e E. coli). As outras
são estafilo e estreptococos. As específicas (raras) são por clostrídio, fungo e
bacilo de Koch.4
Elas penetram o por vários caminhos: perfuração
visceral traumática, cirurgia local ou peritoneal, doenças inflamatórias, infecções
de órgãos vizinhos, abscessos abdominais, infecções pélvicas, infecções
mediastinais e até retrofaríngeas. As migrações bacterianas por vias hemáticas ou
linfáticas são mais raras, apesar de serem possíveis(metástases piogênicas).
As condições clínicas associadas são: idade, diabetes,
estado nutricional, obesidade, insuficiências hepática e renal, distúrbios de perfusão
ou coagulação, infecções associadas.4
A infecção se instala pelos mais variados meios de
penetração. Estes e todos os fatores associados, predisponentes ou desencadeantes geram
o quadro inflamatório. A intercomunicação fácil, a frouxidão dos tecidos, o baixo
teor de células do sistema imunitário e a riqueza de tecido gorduroso facilitam a
disseminação e, conseqüentemente, os abscessos se formam mais raramente, na fase
inicial.
Os focos mais prováveis são: (a) tubo digestivo:
apêndice, sigmóide, parede posterior do duodeno; (b) glândulas anexas: pancreatites ou
trauma de pâncreas; (c) ossos: coluna lombar e arcos costais inferiores; (d) vias
urinárias: ruptura renal, infecções com ou sem abscessos, tumores renais, obstruções
urinárias por litíase, acometimentos graves do parênquima renal; (e) a distância:
infecções de pele ou de parênquima pulmonar, e (f) outros; perfuração traumática do
espaço por punções, projéteis, armas bancas.
Dependendo do balanço agressão-defesa, teremos quadro
clínico variado. Pode haver reação imediata e abscesso ou reação protraída e
difusão bacteriana com celulite generalizada a uma parte ou a todo o tecido
retroperitoneal. Este conceito anatomopatológico é de importância porque poderemos ter
infecções graves com comprometimento do estado geral, sem correspondência paralela dos
sinais e sintomas. Uma terceira possibilidade é a transformação de um abscesso bem
localizado em: celulite por drenagem insuficiente e espontânea (de necessidade);
persistência por drenagem malfeita por técnica inadequada ou inoportuna ou bacteriemia.2,3
Não se esquecer de que uma infecção grave, resistente
ou persistente, pode ter um foco intraperitoneal (tubo digestivo) alimentando-a
(divertículo, úlcera, perfuração traumática).
Diagnóstico
Clínico. O quadro clínico é muito variável e depende
da fase em que examinamos o paciente e da intensidade do processo e da formação do
abscesso.5
O doente, inicialmente, apresenta-se febril, sem
hipertermias graves como nas linfangites ou erisipela, por exemplo. Associam-se:
incômodo, mal-estar, dor vaga o surda (uni e bilateral) na região lombar e as queixas
inespecíficas relativas ao tubo digestivo (anorexia, náuseas, vômito). Pelo lado
urinário pode haver queixas imprecisas que, inicialmente, podem induzir a um falso
raciocínio e propedêutica inadequada. A generalização do processo à parte ou a todo o
retroperitônio gera novos sinais ou sintomas, como: persistência da febre; distensão
abdominal; sinais discretos de hipersensibilidade peritoneal; derrames pleurais;
posições antálgicas da coluna lombossacra e hipersensibilidade lombossacra (Mediana,
uni ou bilateral), com o teste de punhopercussão (Giordano) positivo simulando doença
renal?
O toque retal e a retossigmoidoscopia poderão demonstrar
abaulamentos por coleções baixas ou a hipersensibilidade peritoneal.
O processo evolui para abscesso ou se estabiliza, no
sentido de manter a sintomatologia até por muitos dias e neste ponto as dificuldades
diagnósticas são grandes, pois o médico que espera encontrar coleções ou flutuações
nada recolhe em sua propedêutica.
Na evolução para o abscesso, a febre adquire caráter
supurativo com picos presentes ou elevados à tarde, o estado geral se compromete, há
emagrecimento e sintomas urinários mais nítidos (disúria, hematúria). Com cuidado e,
às vezes, com facilidade, consegue-se apalpar tumefação ou abaulamento doloroso em um
dos flancos com ou sem flutuação. A posição antálgica (escoliose) é bastante
evidente e constante. Pode-se encontrar irradiação dolorosa para ossos da pelve ou
articulação coxofemoral.
Em fase mais adiantada, de um processo não diagnosticado
ou não tratado, tanto a disseminação do processo infeccioso como a drenagem do abscesso
podem ter caminhos imprevisíveis e variados: desde o aumento em extensão local até a
septicemia e óbito, passando por invasão de tecidos na pelve, mediastino, espaço
subfrênico, cavidade pleural, espaço faríngeo, parede abdominal anterior e cavidade
peritoneal.
O diagnóstico precoce é importante para evitar
complicações graves, mortalidade e uma doença crônica de difícil tratamento (fibrose
retroperitoneal). 4,6,7
Complementar. Os exames laboratoriais não são
específicos. Encontra-se no hemograma a série vermelha hipocrômica e branca com
leucocitose e desvio para a esquerda. Granulações tóxicas nos neutrófilos sugerem um
quadro mais grave. A importância do leucograma está em que sua elevação demonstra
supuração ou agravamento desta.
Outros não têm significado e o de urina aparece normal
ou com alterações que também ocorrem nas infecções urinárias: hematúria, piúria,
cilindrúria, cultura positiva. Isto decorre da irritação do parênquima renal ou do
ureter, infecção ou abscesso.
O RX de tórax pode mostrar derrames pleurais e,
excepcionalmente, alterações parenquimatosas (Fig. III-3-1).
O RX de abdômen mostra a distensão de alças, o
velamento da silhueta renal ou da linha do músculo psoas, homolaterais ao processo
infeccioso. A coluna aparece desviada, com o ângulo variando com o grau e intensidade do
acometimento. As infecções por E. coli, Clostridium e Aerobacter, normalmente produtoras
de gases, fornecem imagens radiológicas difusas e irregulares de distribuição gasosa na
área doente. Se a constatação de ar for na pelve e no pós-operatório de
histerectomia, pode ser um encarceramento gasoso sem significado. 2
Radiografias contrastadas do tubo digestivo ou das, vias
urinárias poderão ajudar no diagnóstico, apesar de terem indicação relativa por algum
risco que oferecem em pacientes de mau estado geral. O enema opaco por repleção e o
nefrograma excretor mostram defeitos de imagem ou desvios de posições pela compressão
extrínseca, determinada pela coleção purulenta. O cólon estará desviado para a
frente, à direita ou à esquerda, e o rim para o lado, para baixo ou para cima. A
pielografia ascendente, por ser, naturalmente, um exame mais arriscado, não é indicada (Figs. III-3-2 e III-13).
A tomografia e a arteriografia são inexeqüíveis pelo
alto custo, apesar de demonstrarem, indiretamente, a presença de coleções. O ultra-som
mostra a região abscedada, através de uma área de ecogenicidade maior. Não deve, no
entanto, ser valorizado além de um exame clínico cuidadoso e seqüencial, pois às vezes
mostra imagens inexistentes, a despeito da sua inocuidade e precisão.1 (Figs. III-3-4 e III-3-5).
Diferencial. O diagnóstico diferencial será feito com
inúmeras doenças intra e extra-abdominais. As mais freqüentes são: apendicite,
infecção urinária, outras doenças renais obstrutivas, diverticulite, pancreatite
aguda, pleurite, abscessos subfrênicos, perfurações ulcerosas posteriores,
infiltrações urinárias, hemorragia retroperitoneal.
Tratamento
O clínico é fundamental porque pode-se deter a
evolução do processo e prevenir celulites, supurações e complicações de abscessos
instalados e não tratados convenientemente.
Como tem caráter mais invasivo, pela facilidade de
disseminação, o doente deve ser internado e ter todos os seus desvios corrigidos. Pode
ocorrer: anemia, desidratação, desvios ácido-básicos, bacteriemias, septicemias,
hipertermias do tipo supurativas. Os sintomas conseqüentes a reflexos viscerais
(digestivos ou urinários) serão tratados sintomaticamente.
Os antibióticos têm destaque especial porque podem
controlar grande número dessas infecções. O cuidado maior é associá-los ou usar os de
espectro amplo para controlar a flora mista: gram-negativo/positivo e os anaeróbios.
O tratamento cirúrgico deve ser instalado quando houver
certeza ou suspeita forte de supuração.
O ponto vital do sucesso é o momento da drenagem. Esta é
fácil tecnicamente; difícil é fazê-la no momento exato, ou seja, quando houver
flutuação sem complicações decorrentes de sua evolução. A dificuldade maior se
encontra ao exame físico, porque sendo um acometimento profundo e protegido por
musculatura desenvolvida ou por tecido granuloso subcutâneo exuberante, não se palpa a
flutuação com facilidade.
O que faz a intervenção situar-se no momento ideal é a
conjugação da observação clínica, calcada na evolução da doença, do exame clínico
cuidadoso, bom senso e experiência.
Técnica Cirúrgica. O doente é colocado em decúbito
lateral sobre um coxim no nível das costelas inferiores.
Protege-se a região, amplamente, com anti-sepsia e campos
cirúrgicos.
A partir do ângulo costovertebral, no ângulo formado
pela 12ª costela e musculatura sacrolombar, faz-se pequena incisão, de direção
oblíqua de cima para baixo. em direção à espinha ântero-superior do ilíaco.
Abre-se pele, tela subcutânea, fáscia superficial
(Scarpa). Expõem-se os músculos grande dorsal posteriormente e o oblíquo externo
anteriormente. Se for possível, eles devem ser divulsionados e afastados para atingir-se
o plano intermediário constituído pelo oblíquo interno e pelo serrátil menor.
Os oblíquos anteriormente e o grande dorsal e serrátil
menor, posteriormente afastados com tração satisfatória, mostram o terceiro plano,
representado pelo músculo transverso (porção aponeurótica).
Como o acesso é pequeno deve-se, mantendo-se o
afastamento muscular, pesquisar com toque digital ou punção com agulha grossa a zona
flutuada. Se esta for perirrenal, superficial ou alta, facilmente será drenada, pela
abertura da fáscia, perirrenal ou dos tecidos reparativos neoformados.
Se a coleção for baixa, anterior ou posterior ao rim,
há necessidade de ampliar a incisão de pele e seccionar a musculatura em sentido
anterior. Neste caso, envolve-se parte dos músculos ântero-laterais do abdômen:
oblíquos e transverso.
Localizada a loja do abscesso, aspirar, desbridar e
divulsionar os tecidos, estabelecendo uma ampla comunicação, entre ela e a abertura da
pele. Um dreno grosso é colocado e exteriorizado na parte inferior da incisão ou por
contra-abertura ântero-inferior. Síntese da pele, somente.
Nos pacientes obesos ou musculosos, a separação simples
dos músculos é ineficaz. Temos que seccioná-los parcialmente, no sentido anterior e,
às vezes, envolvendo as bordas anteriores dos músculos grande dorsal e serrátil.
Nos casos avançados de abscessos que envolvem o rim já
tivemos oportunidade de encontrar destruição renal grave completa. Nestes casos é
preciso cuidado porque uma divulsão profunda pode lesar o pedículo renal que ainda
persiste (Fig. III-3-6).
Outros cuidados importantes são: supra-renal e baço.
acima; cólon, na frente; o rim, no meio; e os vasos retroperitoneais, atrás.
A divulsão cuidadosa e a punção bem orientada previnem
lesão destes elementos. A lembrança de que só se deve fazer uma drenagem ampla e não
dissecção operatória com exposição de estruturas anatômicas previne também
iatrogenias.
O dreno será retirado tão logo desapareça a secreção
ou o estado geral esteja em boas condições (Fig. III-3-7).
Em casos muito graves e com toxicoinfecção pode se fazer
uma drenagem de emergência. O doente é assentado, com flexão do tronco e apoiado em
travesseiros. Faz-se pequena incisão infracostal e, por divulsão, atinge-se a loja
abscedada. Dependendo da evolução, melhorado o estado geral, faz-se a drenagem
cirúrgica mais bem orientada.
Referências
Bibliográficas
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