Capítulo 02.03. Generalidades sobre Abdômen Agudo

Luiz Gonzaga Pimenta

Ao escrevermos sobre assunto médico, o fazemos sob duas maneiras principais: de maneira limitada, mas profunda, ou de maneira ampla, mas superficial. Em se tratando de "Generalidades sobre Abdômen Agudo", optamos pela segunda, realizando uma descrição abrangente mas superficial.

A medicina contemporânea evolui para uma atividade profissional cada vez mais sólida e mais ampla no campo da pesquisa científica e dá aplicação clínica. Multiplicaram-se as especialidades médicas e dentre estas a medicina e cirurgia de urgência e, nesta, o abdômen agudo.

Ontem, mais jovens, tínhamos certeza de que sabíamos muito. Hoje, mais vividos, temos a convicção de que sabemos pouco. Amanhã, em futuro remoto, ainda teremos o que aprender. Assim, pretendemos entender abdômen agudo no teoria e na prática.

Charles Darvin (1809-1882), biologista inglês e estudioso das Ilhas Galápagos, percebeu e divulgou o processo de seleção natural através da luta pela existência e sobrevida de animais; mais adequados e mais bem-dotados. Este principio biológico, denominado seleção natural, válido e muito atual no vasto cenário da natureza jamais foi e poderá ser aplicado à medicina em geral e ao abdômen agudo em particular. Para o médico, o homem-espécie, imagem e semelhança do Criador ___ deverá ser preservado sob os aspectos físico, espiritual e social, desde que um sopro de vida se faça presente.

Walter Cannon (1871-1945), fisiologista americano e pesquisador em Harvard, criou entre outras coisas o termo "homeostase", para designar a tendência do organismo em manter constante o meio interno imediatamente após urna injúria aguda. Este princípio, muito atual, inspirou demorado e profundo estudo desenvolvido pelo cirurgião contemporâneo Francis; D. Moore, que em 1912 publica Metabolic Response to Surgery, um marco de alta referência para Metabolic Care of the Surgical Patlent (1959), que obrigou o cirurgião a assumir integral responsabilidade sobre a cura científica não só da afecção cirúrgica, como da doença pós-operatória. Esta talvez tenha sido a maior contribuição e o enorme avanço científico em abdômen agudo que, partindo do empirismo, da audácia e da dúvida, vem se consolidando em assunto da mais alta importância médica e cirúrgica. Época áurea da cirurgia bioquímica. Como conseqüência natural e imediata, conseguiu-se, nos últimos lustros, menor porcentagem de óbito dos casos não somente agudos, como principalmente eletivos, submetidos à terapêutica cirúrgica.

O abdômen, importante cavidade e segmento intermediário do corpo humano, é revestido por um delgado folheto endotelial que recobre o interior da parede abdominal (peritônio parietal) e quase todos os órgãos dentro da cavidade abdominal (peritônio visceral). Como o peritônio envolve as vísceras no curso do desenvolvimento embrionário, formam-se numerosos compartimentos, dos quais; dois se destacam pelo tamanho. O primeiro, pequena cavidade peritoneal, fica situado atrás do estômago e do omento gastro-hepático. O segundo, grande cavidade peritoneal, ocupa o maior e mais importante espaço intraperitoneal. Ambos se comunicam através do forâmen de Winslow. Descrição sumária de 21.000 cm2 de superfície, onde pode se desenvolver uma trágica situação anormal denominada abdômen agudo.

Para o médico que possui grande vivência profissional, a noção de abdômen agudo pode até ser clara. Para o que se inicia, talvez seja obscura. Para ambos, entretanto, o tema é complexo, quando não difícil.

Entendemos por abdômen agudo uma situação clínica, emergente ou urgente, de ordem inflamatória, traumática, hemorrágica perfurativa obstrutiva, vascular ou ainda mista que se manifesta por exuberantes sintomas e sinais indicativos de uma afecção abdominal aguda, potencialmente grave e de caráter evolutivo, que exige decisão diagnóstica precoce e atitude terapêutica agressiva e oportuna, quando não rápida, entre as quais surge como alternativa prioritária a intervenção cirúrgica.

Ninguém está indefinidamente livre de ser acometido por crise abdominal aguda. É o abdômen agudo uma entidade que se apresenta sob a forma de uma síndrome, médica ou cirúrgica, de caráter endêmico, e universal, podendo acontecer à pessoa de qualquer idade, sem preferência por raça e fator sócio-econômico. Uma vez instalado, desequilibra de forma espontânea ou provocada a relação saúde física para doença orgânica, de maneira mais; abrupta que insidiosa. O indivíduo se torna vítima de urna doença sempre gravemente aguda e nunca por uma doença lentamente crônica. Em dramáticas circunstâncias o paciente é levado às pressas à presença do médico ou a um hospital. Neste momento, estabelece-se a relação médico-paciente, maior legado de Hipócrates, o mestre de Cós. Este primeiro contato se realiza, em geral, de maneira extravagante: um cirurgião nem sempre escolhido, em regime de plantão num pronto-socorro, quase sempre em hora incerta, depara-se com um desconhecido gravemente enfermo. Agora e sempre é o cirurgião, cumprindo sua sagrada missão de diagnosticar e operar, e o doente, em angustiante sofrimento físico, enfrentando de maneira irreversível uma situação desconhecida e altamente alarmante.

No passado, algumas denominações surgiram para expressar as síndromes abdominais agudas. De todas, prevaleceu por longo tempo a exótica paixão ilíaca, empregada pela primeira vez por Sydenham no século XVII. Popularmente, surgiu a denominação nó na tripa, traduzindo uma obstrução intestinal. Já no século XIX o termo Abdômen Agudo se impunha universalmente.

Não se fala em abdômen agudo sem que se pense em apendicite aguda como principal fator etiológico na vertente ocidental do mundo (40% dos casos). Apesar de ter sido Hall (1886) o primeiro a realizar a apendicectomia nos Estados Unidos da América do Norte, a definição de apendicite aguda como entidade clínica, histopatológica e cirúrgica, para cujo tratamento ficou desde então estabelecido que seria o cirúrgico, foi em grande parte resultado dos esforços de Fitz (1886), professor de anatomia patológica da Harvard, e McBurney (1894), cirurgião em Nova York.

De interesse mais histórico que tudo é a questão de dar mérito ao verdadeiro criador incisão oblíqua transmuscular na fossa ilíaca direita para a apendicectomia. A primeira publicação pertence a McBumey (of Annals of Surgery, 1894), quando quatro casos foram descritos. No mesmo ano, McArthur publicou nada, menos que 59 casos no Chicago Medical Recorder. Da análise dos fatos deduz-se que MacArthur empregou a famosa incisão. 18 meses antes, fazendo jus à primazia; mas, por força do veiculo de divulgação, esta via de acesso leva até hoje e de maneira irreversível o nome de McBurney.

Em relação à freqüência, as doenças apresentam uma distribuição até mesmo geográfica, para mais ou para menos nas diversas regiões desenvolvidas ou subdesenvolvidas do mundo Allen (1972) cita uma interessante comunicação pessoal de Newbold. Adiantou aquele cirurgião que, durante 15 anos consecutivos, exerceu sua profissão em Ruanda, povoado africano de hábitos primitivos. Nesse período realizou aproximadamente 200 procedimentos cirúrgicos de níveis dois e três por ano. Durante todo esse tempo e o grande número de intervenções, diagnosticou e operou somente um caso de apendicite aguda (±3.000:1), sendo aí, portanto, raríssima.(0,03%).

Todo médico, em qualquer área da medicina, deve possuir conhecimentos mínimos face a situações de urgência. Para alcançar esse objetivo, é de relevância a história clínica, fundamental o exame físico minucioso e os exames complementares mais simples e de resultados imediatos são os preferidos em função do fator tempo. Com argúcia, tranqüilidade e grande dose de paciência o médico aborda com real proveito, ouvindo é interpretando a história de um paciente até mesmo pouco comunicativo e com mínima disposição para o diálogo em razão de uma intensa dor aliada à grande ansiedade decorrente da nova situação de saúde que se instala quase sempre de maneira abrupta. Neste momento é preciso repetir Zachary Cope: "O combate precoce e indiscriminado d dor constitui erro freqüente e grosseiro."

A maioria das doenças abdominais agudas se desenvolve com uma história típica, quando os sintomas e sinais levam, sem maior dificuldade, ao diagnóstico sindrômico, meio caminho percorrido rumo ao diagnóstico etiológico. Nos casos típicos, pensar no simples e no comum.

Infelizmente, inúmeras situações dificultam a ação do médico no sentido de um diagnóstico: criança, idoso, neurótico psicótico, surdo-mudo, alcoolista, deficiente físico, estado de choque, estado comatoso, manifestações clínicas atípicas e na possibilidade de afecção rara. Para os atípicos, o conhecimento teórico embasado numa experiência consolidada no trabalho e no correr do tempo constitui fator preponderante de êxito propedêutico. Poderíamos fazer a analogia entre um amigo de longa data e um indivíduo em síndrome abdominal aguda. Cumprimentamos e dialogamos com o amigo porque o conhecemos bem. Só diagnosticamos urna afecção, mesmo em caráter urgente ou excepcional, quando ela faz parte de nossa intimidade profissional.

Quanto à história clínica não podemos esquecer a célebre frase de Moyniham: "As vísceras podem contar em linguagem abdominal sua própria história." Esta linguagem deve fazer parte dos conhecimentos do cirurgião de um serviço de cirurgia de urgência.

Os antecedentes pessoais não podem ser relegados a segundo plano; na úlcera péptica gastroduodenal perfurada, assumem importância fundamental para o diagnóstico clínico.

O exame físico deve ser abrangente e minucioso. Pode ser repetido e ser feito por mais de um examinador. Só não, deve aumentar o sofrimento do doente. Quando feito de maneira superficial, apressada e dirigida só para o segmento abdominal, induz a gritantes erros. Uma afecção torácica inflamatória aguda pode sugerir um abdômen agudo cirúrgico pêlo simples fato de a sintomatologia de origem torácica se manifestar no território abdominal. Todos conhecem o sinal propedêutico intitulado "silêncio abdominal sepulcral" da peritonite aguda generalizada, assim com a contratura ou defesa em tábua minuciosamente descrita por Mondor em Diagnostics urgents (1969).

Entre os exames obrigatórios na avaliação clinica do doente agudamente lesado incluem-se o toque retal o toque vaginal, quando possível, e a punção-aspiração intraperitoneal. Eles fornecem dados valiosos e concretos para a confecção de um diagnóstico pré-operatório.

A contribuição do laboratório no abdômen agudo restringe-se a um número limitado de exames, selecionados em função da simplicidade de execução e rapidez de avaliação. Raramente são decisivos.

A contribuição da radiologia deve ser feita por meio das radiografias simples e contrastadas.

O estudo radiológico simples do abdômen oferece vários achados fundamentais para o diagnóstico de abdômen agudo, principalmente quando se trata de perfuração de vísceras ocas ou obstrução intestinal mecânica, onde o pneumoperitônio e os níveis hidroaéreos, respectivamente, confirmam o diagnóstico.

O exame radiológico baritado, tem no diagnóstico de invaginação ileocecocólica um exemplo do mais alto valor

O exame radiológico deverá ser efetuado sempre nos serviços de radiologia, onde serão utilizados os equipamentos de maior precisão e rendimento, mais versáteis, com pessoal treinado, e não nas enfermarias, sob a alegação simplista, de que "o paciente está muito mal". Os exames realizados com aparelhos portáteis, sem as mínimas condições técnicas exigidas, carecem geralmente de valor diagnóstico.

Uma propedêutica complementar mais atual e mais sofisticada, apesar do indubitável valor, não consegue preencher a premência de tempo em relação a uma síndrome abdominal aguda.

Em última análise e para amenizar as dificuldades propedêuticas que envolvem uma crise abdominal aguda é bom lembrar o aforismo: "Erre o diagnóstico, mas acerte a conduta."

O diagnóstico diferencial entre as afecções abdominais agudas pode ser muito fácil ou muito difícil. Às vezes, a diferenciação diagnóstica é impossível. Neste último caso a celiotomia passa a constituir a única e última arma propedêutica para esclarecer a doença e aliviar o doente. Tudo depende do caso que defrontamos. É do conhecimento médico que a radiografia simples dó abdômen é inexpressiva em sinais indicativos de apendicite aguda, Apesar desta assertiva, pode ser útil, e acaba sendo, para o diagnóstico diferencial com outras afecções Não constitui novidade que a perfuração de urna úlcera péptica duodenal pode simular a crise apendicular aguda, especialmente quando o orifício nitidamente circular da perfuração bulbar é pequeno, levando o conteúdo gastroduodenal a escapar com lentidão. Tudo se inicia pela epigastralgia aliada a náuseas e vômitos, comuns às duas doenças. O liquido que sai da luz gastrintestinal corre, por ação da gravidade, para baixo, seguindo a goteira parietocólica, chegando até a fossa ilíaca direita. A dor, agora no quadrante inferior direito do abdômen, se converte em sinal relevante (Blumberg positivo), obrigando ou levando o examinador a pensar e raciocinar em função de um processo apendicular agudo. Todo cirurgião de pronto-socorro passa pelo dissabor, pelo menos uma vez, de fazer uma via de acesso inicial para uma apendicectomia quando conclui que se trata de uma úlcera gastroduodenal perfurada em peritônio livre. Outra celiotomia ou um prolongamento se impõem sem mais delongas.

A celiotomia exploradora, conduta propedêutica, permite urna complementação terapêutica em abdômen agudo. Transforma uma celiotomia de urgência em terapêutica. Apesar da propedêutica complementar cada vez mais ampla em qualidade e quantidade, a semiologia continua soberana. João Galizzi considera a Semiologia Médica a gramática do clínico e nós aprendemos que o cirurgião deve ser um bom clínico.

Vejamos dois exemplos ilustrativos da abordagem clínica e indicação terapêutica.

Primeiro - É conhecida a fisiopatologia da obstrução intestinal alta que se agrava com o tempo, levando à uma intensa desidratação e a um grave desequilíbrio eletrolítico e ácido-básico mais importantes que o fator obstrutivo quando analisado sob o ponto de vista terapêutico, no sentido de um melhor prognóstico. Um tratamento medicamentoso de reposição e correção dos transtornos humorais se impõe antes de levar o paciente à cirurgia, aumentando o êxito e diminuindo o risco de óbito,

Segundo- Uma síndrome hemorrágica, em jovem no período de fertilidade e reprodução, deve sugerir, quase sempre, o diagnóstico clínico de gravidez tubária perfurada para o peritônio livre, ocasião em que um dramático quadro de choque hipovolêmico por anemia aguda se instala de modo rápido e progressivo. Sem perda de tempo, por uma celiotomia de urgência; coadjuvada por uma hemoterapia, salva-se uma vida, apesar da morte do feto, Esta é a maneira de se indicar uma intervenção de emergência, sem perda de tempo pré-operat6r!o.

Uma celiotomia de urgência reserva ao cirurgião três classes de surpresas: (1) uma lesão que esperava encontrar, confirmando a suspeita clínica; (2), uma lesão que não esperava encontrar, de resolução cirúrgica ou não; (3) ausência de lesão capaz de explicar a sintomatologia que levou a indicar a operação, apesar dá exaustiva exploração transoperatória.

Nesta última eventualidade, uma apendicectomia tenta justificar, sem convicção, uma "celiotomia branca". O engano cometido é muito pessoal. Um exame clínico incompleto ou superficial constitui a maior causa de erro diagnóstico de abdômen agudo. O cirurgião que adia uma operação num caso eminentemente cirúrgico comete uma falha mais grave para o doente. A escola cirúrgica francesa resume tudo numa pequena frase: "Na dúvida, melhor operar." Para todo caso duvidoso bem examinado e reexaminado é preferível em definitivo, uma "celiotomia branca" a deixar passar um caso nitidamente cirúrgico, colocando em risco a vida do doente e em, jogo a reputação do cirurgião.

Numa conduta mais intervencionista, o tratamento operatório precoce aumenta a incidência de erro diagnóstico, mas é sempre compensada pelo declínio de morbidade e mortalidade.

De tudo, fica a grande lição: abrir um abdômen em caráter urgente, sofrendo a decepção de não encontrar nenhuma afecção cirúrgica, não pode ser freqüente nem ser confundido com um erro grosseiro, quer tenha sido cometido por ignorância, comodismo, negligência ou mandriíce.

A cirurgia foi criada para servir ao homem doente. Na urgência, ao doente gravemente enfermo É ciência e uma arte. Ciência, quando lança mão dos conhecimentos básicos e fundamentais de anatomia, fisiologia, bacteriologia, farmacologia, histopatologia, clínica médica e técnica operatória. Arte, expressão máxima de trabalho manual, no sentido de fazer com tática, técnica e perfeição um trabalho desenvolvido em poucas horas reservadas ao desempenho transoperatório.

Na prática, a ciência e a arte da cirurgia oferecem certo risco de complicações, acidentes, iatrogenia e óbito. Este risco é medido e pesado pelo prognóstico O prognóstico de um abdômen agudo cirúrgico pode ser bom, regular ou mau. É considerado bom na apendicite aguda de diagnóstico

precoce. É considerado mau na celiotomia de urgência em idoso portador de trombose mesentérica aguda extensa. Portanto, o prognóstico varia em função de inúmeros fatores, dos quais destacamos dois pela freqüência, importância e gravidade: a etiologia da afecção abdominal aguda e o tempo decorrido entre o inicio da doença e o começo da intervenção cirúrgica. Em relação ao fator etio16g!co a síndrome inflamatória generalizada, muito grave , só não é mais agressiva porque a superfície endotelial lisa, brilhante e umedecida é normalmente muito resistente à infecção aguda. Determinado número de bactérias injetadas na cavidade peritoneal são rapidamente fagocitadas e eliminadas. O mesmo número da mesma cepa de bactérias injetadas no tecido subcutâneo produz intensa celulite difusa ou abscesso agudo localizado. Parece que a peritonite bacteriana generalizada aguda de mau prognóstico, só ocorre como resultado da contaminação contínua ou persistente por espécies de bactérias altamente virulentas. A fim de salvaguardar o prognóstico, é dever de todo cirurgião manter de maneira rigorosa o ponto de vista absoluto de operar precocemente o abdômen

agudo cirúrgico, não tentando um tratamento conservador infrutífero e prejudicial ao paciente. A moda, além de transitória e prejudicial, se expande com muita facilidade. As comunicações científicas são muito unilaterais. Só apresentam os bom c~ corri aba porcentagem de êxito. São excepcionais as comunicações em contrário. Já e tentaram o tratamento conservador na úlcera péptica gastroduodenal perfurada, na colecistite aguda avançado até na apendicite aguda. Não precisamos enfatizar que os resultados a curto prazo foram, na maioria dos casos, claramente desastrosos.

Prioridade é uma palavra que significa "qualidade ou estado de primeiro". De: posse do diagnóstico clínico do abdômen agudo, o cirurgião toma a decisão prioritária do tratamento. É importante saber o que fazer primeiro como também saber o que deixar para fazer depois Em terapêutica envolvendo técnica operatória, existem nada menos que seis possibilidades de prioridade, a saber: (a) tratamento exclusivamente clínico. Exemplo: cólica ureteral, com ou sem cálculo pequeno demonstrável ao RX simples do abdômen; (b) tratamento exclusivamente cirúrgico. Exemplo: diagnóstico precoce da apendicite aguda, antes das complicações peritoneais localizadas ou generalizadas; (c) tratamento clínico, depois cirúrgico. Exemplo: obstrução intestinal mecânica alia acompanhada de desidratação, desequilíbrio eletrolítico e distúrbio ácido-básico; (d) tratamento cirúrgico, depois clínico. Exemplo: úlcera péptica duodenal perfurada; ulcerrografia e epiplooplastia seguida do tratamento medicamentoso da doença ulcerosa no pós-operatório; (e) tratamento clínico, depois cirúrgico e finalmente clínico. Exemplo- paciente sabidamente diabético portador de colecistite aguda gangrenosa (f) tratamento cirúrgico, depois clínico e finalmente cirúrgico. Exemplo: câncer de hemicólon esquerdo em síndrome obstrutiva.

O raciocínio clínico em função da prioridade terapêutica oferece inúmeras vantagens: (a) aprimora o diagnóstico clínico; (b) diminui a possibilidade de erro; (c) diminui o dissabor de celiotomia branca; (d) evita um desastroso erro de inversão de prioridade; (e) favorece o maior interessado: o portador de abdômen agudo.

A cirurgia persegue um grande objetivo chamado segurança
. A segurança em função do êxito de uma operação, principalmente em caráter urgente, é inversamente proporcional à hemorragia à infecção e à deiscência de sutura.

O combate à hemorragia se faz através da hemostasia. A hemostasia cirúrgica é, por excelência cruenta e definitiva por interrupção dá circulação local ou regional, utilizando ligaduras com fios adequados e nós bem-feitos. Desde a introdução do categute em ligaduras cirúrgicas por Cooper (1814) as possibilidades de segurança de hemostasia se converteram em uma esplêndida realidade.

Divisor de águas de ferida cirúrgica se caracteriza pela separação nítida entre ambientes asséptico e séptico. Ainda hoje, apesar da revolução listeriana e da descoberta de Fleming, a infecção mantém incidência alarmante de até 30% dos casos submetidos a terapêutica cirúrgica urgente. Relembramos, até mesmo com certo grau de pessimismo, uma funesta frase creditada a Nélaton: Toda incisão de pele é uma porta de entrada para a morte."

A síntese, aproximando os tecidos facilita a cicatrização da ferida cirúrgica. A mais grave complicação da síntese chama-se deiscência, parcial ou total. A importância da síntese adquire forte colorido na célebre frase de Harkins: "Para existir, a cirurgia depende, em última análise, da cicatrização das feridas."

Genericamente todo abdômen agudo cirúrgico, da agressão à cura, perfaz uma trajetória, em três etapas distintas:

Primeira etapa - Inicial: caracteriza-se por sintomas clínicos e sinais físicos indicativos de agressão orgânica abrupta, evolutiva e grave. Corresponde ao período pré-operatório. Apresenta como principal finalidade o diagnóstico clínico.

Segunda etapa - Intermediária: caracteriza-se por atitudes táticas e manobras técnicas com a finalidade de remover o fator causal. Corresponde ao período transoperatório. Apresenta como principal finalidade o tratamento cirúrgico

Terceira etapa - Final: caracteriza-se por uma resposta endocrinometabólica e agressões anestésica e operatória. Corresponde ao período pós-operatório. Apresenta corno Principal finalidade os cuidados pós-operatórios.

O resultado depende da evolução normal ou anormal por acidente, complicação ou iatrogenia nas três etapas que, se abrindo em leque, da primeira à última vareta, vai da cura ao óbito.

Em todos os casos de abdômen agudo, o doente se encontra, num determinado momento de sua existência, face a uma situação que supera sua capacidade individual de adaptação. Nesta situação, o indivíduo gravemente enfermo requer, desde Cope, atendimento médico em regime de hospitalização para um diagnóstico clínico precoce e um tratamento cirúrgico ideal.

Com exceção feita para os casos de síndrome hemorrágica de grande porte, dificilmente o abdômen agudo, mesmo quando declaradamente cirúrgico representa uma emergência. Mas, na maioria absoluta das vezes, não deixa de ser uma urgência cirúrgica.

Embora todos os doentes devam ser avaliados em suas peculiaridades individuais, algumas recomendações genéricas serão sempre oportunas nos pré, trans e pós-operatórios.

Pré-Operatório

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Fazer uma avaliação clínica completa no sentido de estabelecer a verdadeira síndrome abdominal aguda, levando-se em conta que o diagnóstico sindrômico é mais importante do que o etiológico.

__ Investigar sempre a existência de Possível afecção associada que venha a comprometer ou a agravar a evolução do abdômen agudo.

__ De acordo com a necessidade, providenciar reposição hidreletrolítica, corrigir distúrbio ácido-básico, evitar hipovolemia com tendência ao choque, iniciar antibiótico bactericida de largo espectro, desobstruir vias aéreas superiores e fazer profilaxia do tétano.

__ Obtenção sistemática e rigorosa dos sinais vitais: pressão arterial, pulso radial, freqüência respiratória, temperatura bucal ou retal, pressão venosa central, débito cardíaco e débito urinário. Eles servirão de ponto de partida e de parâmetros para futuras avaliações.

Transoperatório

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Estabelecer com certa precisão a prioridade terapêutica em função da natureza, gravidade e complexidade do caso.

__ Via de acesso anatômica, objetiva, cômoda e generosa quanto à amplitude, permitindo inclusive ampliação, quando necessário.

__ Deve, prioritariamente, realizar a intervenção cirúrgica de menor porte que satisfaça as necessidades do caso. Contudo, condutas mais agressivas deverão ser tomadas em determinadas circunstâncias.

__ Como norma, o cirurgião deve limitar-se a resolver a afecção responsável pelo abdômen agudo. Não deve, aproveitando a oportunidade, executar atos cirúrgicos desnecessários no momento, mesmo que justificáveis no futuro.

__ A lavagem e secagem da cavidade peritoneal através dá irrigação generosa com solução salina aquecida é, em nossa opinião, medida recomendável desde que exista contaminação maciça, particularmente por pus e líquido enterofecal. Já a drenagem desta mesma cavidade vai depender da necessidade, levando-se em conta o perigo de hemorragia secundária, escape de líquido orgânico, risco de deiscência de suturas e possibilidade de coleção purulenta residual.

Pós-Operatório

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Combate racional no sentido dos princípios farmacológicos, da dor local e desconforto geral, somação de angustiante sofrimento no operado recente.

__ Adotar medidas adequadas para o diagnóstico e tratamento das "falências" dos órgãos e sistemas que venham a se instalar. Qualquer anormalidade encontrada deve merecer a consideração do médico assistente quanto à necessidade e forma de sua correção.

__ Todos os esforços devem ser realizados para evitar ou, pelo menos, minimizar uma infecção. A antibioticoterapia continua sendo uma arma antiinfecciosa de primeira linha desde que bem escolhida, em doses fracionadas, por tempo determinado.

__ São Prioritários os cuidados sobre a ferida Cirúrgica. Graças à dedicação de Beaumont (1785-1853) com a ferida traumática em Alexis St. Martin, a fisiologia secreção gástrica pode ser investigada na mais famosa experimentação in vitro do século XIX, tendo como objetivo uma fístula gastrocutânea pós-traumática.

__ Havendo normal evolução e vencidas todas as etapas, resta uma última a ser ultrapassada: a retirada dos pontos seguida da alta definitiva.

Várias são ás vantagens de conservar por algum tempo o paciente operado grave na unidade de tratamento intensivo. Em primeiro lugar, o doente é observado de maneira ininterrupta por pessoal especialmente treinado para reconhecer alterações fisiológicas em etapa na qual pode ser difícil superar a situação. Em segundo lugar, o ambiente confinado fornece condições para o tratamento de emergência de complicações graves e acidentes inesperados envolvendo quase sempre as vias respiratórias e o sistema cardiovascular. Em terceiro lugar, o paciente pode voltar à sala de cirurgia com mais rapidez e mais facilidade para uma possível ou inevitável reoperação.

O último degrau da escalada em "Generalidades sobre Abdômen Agudo" ficou reservado ao médico, figura humana que no exercício da cirurgia de urgência alivia sofrimentos e minimiza dores.

Miguel Couto espelhou com nitidez os sentimentos que envolvem o médico em sua missão de atender "Sofre cada um com suas dores, sofre o médico a de todos; sofrem todos pelos seus, sofre o médico, pelos seus e pelo alheio; sofrem todos pelo que vêem sofre o médico pelo que vê e pelo que adivinha."

O trabalho do cirurgião de urgência exige juventude e ,saúde, visão clara e raciocínio amplo, mãos direita e esquerda ágeis e vontade de servir acima dá estafa e da agressão materialista como única fonte de recompensa. Num pais onde a maioria da população é pobre, o médico não pode ficar rico, somente com sua profissão. O médico e sua categoria devem lutar por justa recompensa junto à Previdência Social e ao Ministério de Saúde a fim de sobreviver sem angústia financeira.

A cirurgia como profissão exige conhecimentos teóricos e práticos aliados a uma gama de virtudes paralelas, das quais poderíamos destacar a responsabilidade junto ao enfermo. Só o cirurgião sabe, no âmago de seu coração (Lucas, 5:31. - Os sãos não precisam de médico, e, sim, os doentes), nas páginas antigas do Código de Ética (Art. 30: O alvo de toda a atenção do médico é o doente, em beneficio do qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional) e na insuficiência da tabela do DNPS (Departamento Nacional da Previdência Social) como é gratificante salvar vidas, jovens ou gastas, brancas ou pretas, úteis e até inúteis, todas iguais na alegria e na dor, na riqueza e na pobreza, no lazer e no trabalho ou na saúde e na doença!

Depois de tudo, duas perguntas merecem resposta:

- O que é abdômen agudo?

- É uma doença súbita e grave de tratamento cirúrgico.

- E o que é cirurgia?

- É a ciência e a arte que atuam sobre o corpo humano através de intervenções manuais indispensáveis à cura

do doente.

E no entender de Lázaro da Silva, "o médico deve relacionar-se consigo e sua consciência; com as associações de classe; com os colegas; com os pacientes e familiares; com os serviços de urgência. Enfim, são tantos as alternativas a que está sujeito o médico, no seu exercício profissional, que o ideal é difícil de se conseguir".

Das perspectivas futuras, arriscaríamos uma: cerca de 30% de infecção cirúrgica pós-operatória, de alta morbimortalidade, em abdômen agudo são demais. A humanidade clama por sucessores de Lister, Semmelweis, Fleming...

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