Capítulo 01.14. Laparoscopia em Urgências

Flair José Carrilho

Introdução

A laparoscopia ou peritonioscopia consiste na exploracão direta dos órgãos abdominais mediante um sistema ótico que atravessa a parede abdominal anterior.4 Consideramos laparoscopia em urgências aquela que é realizada de forma imediata nos pacientes que apresentam uma síndrome de abdômen agudo, espontâneo ou traumático, cuja etiologia não foi possível estabelecer com dados clínicos, de exame físico e complementares habituais.23

As primeiras comunicações sobre laparoscopia em urgências datam de 1937 e 1941, quando Hope e Beling, respectivamente, relatam a importância deste método na acuidade diagnóstica da gravidez ectópica.2,17

A partir de 1956, Llanio et al.21,22,23,24 implantaram serviços de laparoscopia em urgências, onde adquiriram grande experiência com o método, defendendo a criação de serviços rotineiros especializados.

Indicações

Quando da indicação de uma laparoscopia em abdômen agudo, nossos objetivos principais são: obter elevado índice de diagnóstico correto, realizar o exame o mais rápido possível, preferentemente: utilizando-se anestesia local. Evita-se, assim, laparotomias desnecessárias, diminuindo o tempo médio, de internação e custo hospitalar, com menor agressão ao paciente.

As indicações mais citadas na literatura encontram-se dentro do diagnóstico diferencial das patologias pélvicas agudas, traumatismo abdominal, hemoperitônio, dor abdominal, corpo estranho, colecistite aguda, pancreatite aguda e abscessos localizados. 1,5,6,8,9,10,12,13,14,15,16,17,18,20,24,25,26,28,29,31,33

Compondo o quadro de patologias pélvicas agudas podemos incluir: gravidez ectópica, ruptura de corpo 1úteo, torção de cistode ovário pediculado, doença anexial inflamatória aguda, perfuração uterina, perfuração de bexiga, apendicite aguda e síndrome de Fitz-Hugh-Curtis.

A gravidez ectópica tem permanecido um enigma, sendo seu diagnóstico precoce, e o tratamento antes de uma ruptura ocorrido em um pequeno número de casos; Hope,17 em 1937, sugeriu a laparoscopia como um método acurado no diagnóstico antes de uma ruptura. E, através deste método, 25% das gravidezes ectópicas são diagnosticadas em seu estado intacto, permitindo uma conduta cirúrgica precoce, reduzindo a morbimortalidade, contrastando com 8% de diagnóstico sem o uso da laparoscopia. A acuidade do método é maior quando se suspeita de gravidez, ectópica crônica que pode simular anexite crônica, onde se obtém um diagnóstico de 65% em fase de organização. 10, 12,13

As manifestações clínicas da ruptura de corpo lúteo são semelhantes às de uma gravidez ectópica. A punção do fundo-de-saco de Douglas (culdocentese) não distingue entre corpo, lúteo, hemorrágico e ruptura de trompa de Falópio. Se na laparoscopia as trompas estão intactas, uma conduta conservadora poderá ser realizada, ou seja, aspiração do hemoperitônio e cuidadosa inspeção dos ovários; se o sangramento parou, uma laparotomia não será necessária. Às vezes, a menstruação retrógrada poderá causar sintomas semelhantes. 13 Em 17,5% dos casos de doença inflamatória pélvica avaliados por laparoscopia, tratava-se de ruptura de corpo lúteo,8 e em 12% dos casos em que o diagnóstico clínico era de salpingite aguda, a laparoscopia revelou hematoma de corpo lúteo.18

Dependendo do grau de torção, quadro doloroso abdominal agudo de leve a severa intensidade poderá ser encontrado na estrangulação de cistos de ovário, pediculado ou paraovariano. O diagnóstico diferencial poderá ser feito através da inspeção laparoscópica, podendo-se realizar tentativas de desfazer a torção, evitando laparotomias de urgências, com esvaziamento do conteúdo dos cistos e possível remoção através de colpotomia posterior. 13

Existem divergências com relação ao diagnóstico definitivo da doença anexial inflamatória aguda quando se comparam os diagnósticos clínico e laparoscópico. Extensos estudos realizados por Jacobson e Westron,18 Eschenbach,9 Chaparro et al.8 e Sweet et al.33 demonstraram que através da laparoscopia o diagnóstico clínico de tal patologia coincidia somente em 62% dos casos, estando em 22% dos casos considerados normais, 4% de gravidez ectópica, 3% de apendicite aguda, 1% de endometriose e 3% de outras patologias. Além do diagnóstico direto da lesão através da laparoscopia, este método se presta para obter material para estudo microbiológico do agente etiológico.9,20,31,33 E, quando da etiologia gonocócica associada a aderências intraperitoneais, principalmente tipo peri-hepatite, o diagnóstico de síndrome de Fitz-Hugh-Curtis se faz presente, e com a ajuda do eletrocautério estas aderências poderão ser desfeitas, com desparecimento do quadro doloroso abdominal, principalmente no hipocôndrio direito. 5,29

A visão rotineira do apêndice vermiforme pela laparoscopia, ocorre em 77,2%. 16 Na literatura aceita-se um erro de 5-15% de falso-positivo no diagnóstico clínico de apendicite aguda,15 mas o erro diagnóstico com relação ao falso-negativo poderá trazer piores complicações para o paciente que uma laparotomia branca. Leape e Ramenofsky25 estudaram 32 pacientes em que, o diagnóstico diferencial de apendicite aguda se fazia presente através da laparoscopia. O diagnóstico foi confirmado em 17 pacientes, outra doença foi diagnosticada em oito pacientes, e em sete julgou-se não haver anormalidade patológica. Existiram dois falso-negativos e um falso-positivo com relação ao diagnóstico definitivo, mas sem complicações. Em 12 pacientes (37,5%) evitou-se uma laparotomia desnecessária e a taxa de apendicectomia negativa diminuiu de 10 para 1%. 25

A laparoscopia tem sido utilizada na presença de corpo estranho na cavidade peritoneal. Dispositivos intra-uterinos que perfuraram para a cavidade peritoneal têm sido retirados com o auxílio do laparoscópio.28 Também, a remoção de cateteres distais de derivações ventriculoperitoneais tem sido relatada na literatura, .26

O uso da laparoscopia para avaliar trauma abdominal penetrante ou fechado tem sido estimulado pelo número de laparotomias negativas citadas na literatura,30 A avaliação inicial do abdômen é melhor realizada através da paracentese ou lavagem abdominal através de um cateter de diálise peritoneal;1,7,11,14,32,34 se o conteúdo líquido for claro ou com pouco sangue no retorno, após a melhora hemodinâmica do paciente a laparoscopia, estará indicada. Este método terá também indicação nos casos de paracentese negativa em que o paciente esteja em estado comatoso.14 A principal limitação da laparoscopia em avaliar lesões penetrantes é a sua incapacidade de ver todas as alças intestinais e o retroperitônio, 14 apesar de dados relatados por Kalnberz e Freidus19 avaliando trauma fechado revelarem alterações abdominais em 94,1% dos casos estudados. Mais uma vez se faz necessária relatar que a laparoscopia neste tipo de patologia apresenta uma morbidade de 4% e uma letalidade de 0,03%, e laparotomia exploradora, 23% e 1,6%, respectivamente, 1 e que a lavagem abdominal apresenta 1,1% de falso-positivos e 2,3% de falso-negativos, e a laparoscopia, 0 e 1%, respectivamente. 1

Conseqüentemente, a indicação da laparoscopia em urgências em um número maior de patologias dependerá da experiência do serviço onde está sendo empregada. Llanio et al. em 8.000 exames realizados em urgências, obtiveram um índice de positividade diagnóstica de 98,5%.

Contra-Indicações

Embora a laparoscopia seja um procedimento relativamente seguro, às vezes pode ser extremamente perigoso. As contra-indicações absolutas são: choque, insuficiência respiratória, marcada distensão abdominal, peritonite generalizada e distúrbios da coagulação.

Deve ser enfatizado que os riscos da laparoscopia são potencialmente grandes, mas poderão ser minimizados com o aumento na destreza e treinamento dos endoscopistas. Portanto, é necessário conhecer todos os efeitos e particularidades do método. Só então qualquer problema médico ou cirúrgico poderá ser considerado contra-indicação potencial. 3

Preparação do Paciente e Técnica

A preparação do paciente e a técnica utilizada para a realização da laparoscopia em urgências são semelhantes às empregadas nas indicações de rotina. 23 Importante ressaltar que a seleção do local de introdução do trocarte para passagem da ótica do laparoscópio, depende da região a ser examinada, em função da provável zona de origem do processo desencadeante do abdômen agudo. Portanto, não há um local fixo para introdução do aparelho. 23

Na maioria das indicações, a anestesia utilizada é a local, bem tolerada pelos pacientes.23

Achamos que todo serviço de pronto-socorro deve ter o seu setor de laparoscopia, e que o endoscopista, primeiramente, deve ter grande experiência em indicações eletivas para posteriormente introduzir-se na prática em urgências.

Para a montagem de um setor de laparoscopia, em urgências, com o conhecimento de maiores detalhes com relação à técnica, sugiro o conhecimento da experiência obtida por Llanio e cols.23

Experiência Pessoal

O tipo de anestesia utilizado foi a local em 81,6% dos pacientes estudados, tendo sido bem tolerado o exame, com grande facilidade técnica, e o diagnóstico definitivo obtido nas primeiras 24 horas do início do quadro abdominal agudo, em 79,6% dos pacientes.

Quando comparado ao diagnóstico definitivo, o diagnóstico clínico foi coincidente em 28,6% dos, pacientes, duvidoso em 46,9%, e errado em 24,5% A laparoscopia, coincidente em 83,7%, duvidosa em 10,2%, e errada em 6,1%. Em 34,7%, a laparoscopia evitou uma laparotomia desnecessária.

O tempo médio de internação para os pacientes que realizaram apenas laparoscopia foi de 3,3 dias. Não tivemos complicações utilizando tal método em nossos pacientes.

Analisamos, ao acaso, 33 pacientes submetidos à laparotomia exploradora devido a um quadro de abdômen agudo, nos quais estava indicada a laparoscopia e, por motivos que fogem à análise no momento, não .foi realizada; o tempo médio de internação neste grupo foi de 8,3 dias e a laparotomia, foi desnecessária em 33,3% dos pacientes.

Em nossa experiência, a laparoscopia em urgência apresentou: grande facilidade técnica; utilização de anestesia local na maioria dos pacientes; diagnóstico definitivo realizado nas primeiras 24 horas em cerca de 80% dos pacientes; elevado índice de diagnóstico correto; laparotomia desnecessária evitada em cerca de um terço dos pacientes índice semelhante ao levantamento realizado, no mesmo período, de laparotomias desnecessárias quando não se realizou a laparoscopia, que estava indicada; e tempo médio de internação após a laparoscopia menor que no grupo de laparotomia desnecessária; preenchendo os principais objetivos dá indicação de uma laparoscopia em abdômen agudo descritos anteriormente e diminuindo o custo hospitalar e a agressão a o paciente.

Complicações

A laparoscopia é um procedimento que envolve equipamentos altamente técnicos, tomando o endoscopista, sujeito a erros e o paciente, suscetível a complicações. Embora não existam na literatura relatos de complicações quando a laparoscopia foi utilizada em urgências, acreditamos que poderão acontecer as descritas quando da indicação eletiva. Portanto, as complicações poderão ser decorrentes do equipamento laparoscópico, da insuflação do gás para produção de pneumoperitônio, da anestesia de equipamento eletrocirúrgico, quando utilizado, sangramentos, perfurações de vísceras e da inexperiência do endoscopista.27

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