Capítulo 01.12. Endoscopia de Emergência nas Hemorragias Digestivas Altas

Dulmar Garcia de Carvalho

Introdução

Em nenhum quadro clínico a endoscopia, assume importância tão decisiva como na hemorragia digestiva alta, mas é igualmente aqui onde sua contribuição é também a mais controvertida.

A rapidez e a dramaticidade com que às vezes se passam os fatos nos episódios de hemorragia exigem, a par de prontas medidas de estabilização da homeostase, um rápido diagnóstico da natureza e da localização da lesão sangrante, visando à instituição do tratamento específico no prazo mais curto possível.

O exame clínico inicial, ainda que indispensável na avaliação do quadro funcional do paciente com hemorragia, entretanto, por mais minucioso, não permite concluir quanto à origem do sangramento. Nem o tipo de hemorragia, quer quanto ao volume, quer quanto à persistência da perda de sangue, tampouco o modo como ele se manifesta - hematêmese ou melena - nem mesmo a presença de sinais de insuficiência hepatocelular ou qualquer outro dado clínico é indicador suficientemente específico da origem do sangramento. Além disso, a hemorragia pode ser a primeira manifestação de uma úlcera péptica, de uma neoplasia ou de uma cirrose hepática até então assintomáticas, e pacientes portadores de lesões previamente conhecidas podem sangrar de outras causas. Na experiência de vários autores, 30-40% dos pacientes com hemorragia por úlcera nunca tiveram queixas dispépticas, e 25% dos que tinham dispepsia crônica sangravam de outras lesões. 5,22

A radiologia contrastada convencional do esôfago, estômago e duodeno é reconhecidamente falha na hemorragia digestiva alta, constituindo risco quando realizada na vigência ou nas primeiras horas após a perda de sangue. Lesões superficiais, como erosões da mucosa gastroduodenal, angiodisplasias e lacerações; da mucosa na região esofagogástrica (Mallory-Weiss) passam despercebidas à radiologia convencional e mesmo a de duplo contraste. Além do mais, a demonstração radiológica de urna lesão não significa que ela seja a fonte da hemorragia.

A arteriografia seletiva e a cintilografia com tecnécio radiativo,6 por demais aparatosos, são métodos de exceção, destinados mais às hemorragias persistentes e utilizados numa fase mais avançada do processo diagnóstico, onde são disponíveis.

O método que nos últimos anos vem-se impondo como recurso semiológico de grande valor na hemorragia aguda da parte alta do tubo digestivo é, sem dúvida, a endoscopia mormente depois do amadurecimento tecnológico já alcançado, que permitiu a construção de aparelhos delgados, flexíveis, de ponta dirigível e não-traumatizante, com potente iluminação e excelente poder de resolução, facilitando a inspeção da faringe ao ângulo de Treitz.

O exame com esses novos instrumentos não chega a constituir sacrifício para os pacientes, em sua maioria oportunamente submissos, quando vitimas desse tipo de hemorragia. Assim, não mais se justifica a aplicação à endoscopia de emergência, senão num sentido de dinamismo, da expressão então utilizada por Palmer22,35 de "abordagem diagnóstica agressiva". Com esses aparelhos e realizada por médico experiente, a endoscopia de emergência é método inócuo, sendo raras as complicações.

Não obstante as inúmeras vantagens atribuídas à endoscopia, segundo alguns céticos, permanece ainda sub judice a afirmativa de que na hemorragia digestiva alta o diagnóstico endoscópico de emergência acarreta maior sucesso terapêutico.

A medida da discrepância entre as condutas diagnósticas na hemorragia digestiva alta pode ser avaliada pelos extremos defendidos, de um lado, por alguns autores 7 que consideram antiética a omissão do exame, de outro, pelos8 que confessam o abandono definitivo da endoscopia de emergência. Entre esses opostos, existem os que acham que a endoscopia deve ser indicada apenas em casos selecionados, de maior risco. 9

Trabalhos realizados no início da era da fibroscopia, uns retrospectivos, outros sem seleção aleatória dos pacientes, observaram urna mortalidade de 5-8% entre os pacientes submetidos à endoscopia e de 15-20% naqueles em que a endoscopia não foi praticada. A menor mortalidade do primeiro grupo foi atribuída ao conhecimento precoce da natureza e do local da lesão sangrante, fornecido pela endoscopia, e que possibilitou a terapêutica mais pronta e específica.

Estudos prospectivos; realizados mais recentemente4 não têm confirmado aquela impressão inicial, que parecia lógica, de que o diagnóstico endoscópico, ensejando, um tratamento mais rápido e racional, contribui para a redução da mortalidade nos pacientes com hemorragia digestiva alta. Do mesmo modo, a morbidez, avaliada indiretamente pela duração da hospitalização e pelo volume de sangue transfundido, não foi significantemente diferente nos pacientes com e sem endoscopia de emergência.

É possível que os novos recursos técnicos e farmacológicos, aliados aos avanços já conquistados pela endoscopia diagnóstica, venham a alterar a situação. Nesse sentido é justo esperar mudança favorável no rumo dos fatos com o desenvolvimento da endoscopia terapêutica, que hoje dispõe da escleroterapia de varizes esofágicas e de angiodisplasias, bem como da eletrocoagulação e da polipectomia. Quanto à fulguração de lesões sangrantes; pelos raios laser, depois de uma fase inicial de euforia, já demonstrou não compensar o investimento.

O Método

A endoscopia impõe-se cada vez mais como o melhor procedimento propedêutico para a identificação da origem dos sangramentos da parte alta do tubo digestivo.10

Na grande maioria dos pacientes, a endoscopia é realizada depois de tomadas as medidas para a estabilização hemodinâmica, com o paciente em decúbito lateral esquerdo e em discreta posição e Trendelenburg, para evitar a aspiração pulmonar de sangue e secreções gástricas. Alguns prescindem de qualquer tipo de pré-medicação, utilizando apenas a anestesia da orofaringe com aspersão ou gargarejo com lidocaína a 10%. Os modernos aparelhos, de menor calibre, autorizam-nos a dispensar a sedação nos pacientes para os quais tal medida representa maior risco, como nos enfisematosos, idosos e hepatopatas graves. Contudo, nos demais, sobretudo nos que fizeram uso recente de grandes quantidades de álcool e, de modo geral nos alcoólatras, a sedação é indispensável. Mesmo assim, em alguns desses enfermos a realização do exame torna-se impossível, pela recusa violenta e excessiva agitação. O medicamento mais comumente empregado como sedativo é o diazepam, na dose de 5-20 mg, em injeção endovenosa lenta. Alguns chegam a utilizar 40 mg. A dose deve ser individualizada e o limite é o aparecimento de ptose palpebral e/ou disartria. Observado esse detalhe, a dose usual não chega a produzir sonolência profunda ou a suprimir o reflexo da tosse. Prova disso é a imediata reação que surge quando eventualmente o fibroscópio penetra na traquéia. É também rotineira à atropinização prévia dos pacientes com atropina (0,5 mg aplicados endovenosamente imediatamente, ou 1,0 mg intramuscularmente 20 minutos antes do exame) ou hioscina (20-40 mg, endovenosamente). Nem todos os serviços antecedem a endoscopia de emergência com uma lavagem gástrica com soro fisiológico gelado ou a 37ºC. De fato, a presença de grandes quantidades de sangue no interior do estômago prejudica ou inviabiliza o exame. A aspiração de grandes coágulos de sangue através do canal de aspiração do aparelho pode obstrui-lo e deve ser evitada. Nessas circunstâncias o mais aconselhável é retirar o fibroscópio e introduzir no estômago um tubo de grande calibre (p. ex.: tipo, Ewald 36 Fr), de preferência com dupla luz, que permita a instilação de líquidos e simultânea sifonagem ou cuidadosa aspiração do conteúdo gástrico, sem produzir erosões factícias na mucosa. Os casos que exigem essa manobra constituem a minoria, 4% das endoscopias de emergência.5 Riscos potenciais; dessa conduta são o reinicio, de uma hemorragia já estancada espontaneamente e a aspiração pulmonar.

Na grande maioria dos casos, os pan-endofibroscópios de visão frontal são os mais usados e de modo exclusivo. Num menor número de pacientes, pode ser vantajoso o uso sucessivo de um aparelho de visão lateral, como em casos selecionados de portadores de algumas lesões na pequena curvatura antral, próxima ao ângulo, ou nos de úlceras bulbares da vertente duodenal do piloro que podem passar despercebidas. Também nos pacientes suspeitos de hemobilia, nos quais se impõe a visão da papila de Vater, é indispensável a inspeção com aparelho de visão lateral.

Indicações

São candidatos à endoscopia de emergência os pacientes que apresentem sinais de hemorragia digestiva volumosa ou de hemorragia aguda ativa (Quadro I-12-1).

Na hemorragia volumosa, a perda de sangue supera os 1.000 cm3 em curto intervalo de tempo. Um sangramento de tal monta manifesta-se geralmente por uma queda na pressão sistólica superior a 10 mmHg e por um aumento na freqüência do pulso de mais de 20 bpm, na transição do decúbito para o ortostatismo.

Quando num controle de 12 horas registram-se sinais, como aumento na freqüência cardíaca de 25 bpm, declínio na pressão sistólica superior a 25 mmHg e na pressão diastólica de mais de 15 mmHg e a hemoglobinemia, baixa de 2 g% ou mais, considera-se a hemorragia ativa ou persistente.

A eficácia da endoscopia de emergência é tanto maior quanto mais precocemente for realizada. E conhecida a rapidez com que a mucosa gastroduodenal pode recuperar-se, com desaparecimento, em poucas horas, de úlceras rasas, lacerações e erosões.

A probabilidade de encontrar-se a lesão sangrante na endoscopia de emergência cai, segundo uns,11" de 78%, segundo outros,12 de 90%, nas primeiras 24 horas, respectivamente para 32% e 27%, 48 horas ou mais, após a hemorragia. Daí o empenho de alguns em executar a endoscopia, se possível, uma a duas horas após a internação do paciente. 13 Outros estabelecem critérios de indicação mais completos, condicionando a realização da endoscopia de emergência à estabilização hemodinâmica do paciente nas primeiras seis horas.4

A persistência dos sinais clínicos de hipovolemia, um hematócrito inferior a 25% e com tendência a cair, e a continua aspiração de líquido de lavagem gástrica com grandes quantidades de sangue significam sangramento contínuo e grave e correspondem a uma indicação de cirurgia. Esses pacientes poderão ser submetidos à endoscopia quando já anestesiados e intubados, na sala de cirurgia.

A endoscopia realizada dentro das quatro horas seguintes ao equilíbrio circulatório ou ainda, como de modo geral se aceita, dentro das primeiras 12 horas após a manifestação da hemorragia, atende ao critério de emergência.1,5

Contra-indicam a realização da endoscopia de emergência a agitação psicomotora excessiva, o delirium tremens, sinais de isquemia ou infarto do miocárdio, arritmias cardíacas graves, insuficiência cardíaca ou respirat6ria, quando descompensadas, sinais de perfuração de víscera oca do exame clínico do abdômen e, obviamente, a recusa expressa em submeter-se ao exame.

Complicações

A endoscopia de emergência é reconhecidamente um procedimento mais difícil e trabalhoso que a endoscopia rotineira, e só deveria ser feita por medico experimentado.

Satisfeito esse requisito, a ocorrência de complicações é relativamente rara, em torno de 0,7-0,9%, 14 Contudo, há relatos de mortalidade atribuída à endoscopia.15

Um inquérito nacional sobre hemorragia digestiva alta realizado pela American Society of Gastrintestinal Endoscopy (EUA) revelou 21 complicações, em 2.320 endoscopias de emergência, das quais, 12 maiores, incluindo três óbitos (perfuração, aspiração, sangramento) e nove menores (lacerações da mucosa, reações a medicamentos e complicações cardíacas ou pulmonares, transitórias).15

A aspiração pulmonar, a complicação mais constante na experiência da maioria dos autores, facilitada pela presença do aparelho em zona altamente reflexógena, propiciando vômito, é atribuída à anestesia da laringe e ao uso de sedativos, que interferem na coordenação da faringe e no fechamento reflexo da glote, distúrbios cuja gravidade provavelmente será tanto maior quanto mais intensa a hipoxia cerebral.

Os sinais que recomendam maior prudência e que indicam um maior potencial de riscos na realização da endoscopia de emergência são os de grande anemia, idade avançada e concomitância de outras patologias (Quadro I-12-2).

As Lesões

Úlcera Péptica. A endoscopia de emergência tem como objetivo definir a natureza e a localização da lesão sangrante e fornecer dados quanto à atividade e a gravidade da hemorragia, visando à orientação da terapêutica específica nos casos de sangramento digestivo alto.

Em até 30% dos casos, é possível diagnosticar endoscopicamente a presença de lesões múltiplas, sendo necessário estabelecer a diferença entre as lesões ativamente sangrantes das com sinais de sangramento recente e as potencialmente sangrantes.

No sangramento ativo, o endoscopista vê o sangue extravasar-se de vários modos:, seja impetuosamente, em jato contínuo ou pulsátil, mostrando a procedência arterial, seja escoando-se em filete ou porejando em lençol.

Forrest et al. 11 classificaram essas lesões de maneira didática e prática, permitindo aos endoscopistas codificar as lesões na hemorragia digestiva alta num sistema de referência que simplifica a comunicação (Quadro I-12-3).

O tempo decorrido entre as primeiras manifestações da hemorragia e o exame endoscópico é de grande valor no reconhecimento de uma lesão que sangra ativamente ou que sangrou recentemente. Como já foi mencionado 8,17 erosões, lacerações e úlceras rasas da mucosa epitelizam-se com rapidez. Em virtude disso, a probabilidade do encontro de uma lesão com sinais de sangramento é menor na endoscopia feita tardiamente. Por outro lado, exames muito próximos ao episódio agudo de hemorragia, a menos que precedidos de lavagem gástrica, podem ser prejudicados pela presença de sangue, que oculta as lesões. Deduz-se a importância da precocidade da endoscopia pela capacidade de identificar sinais de sangramento ativo ou recente em 69-87% dos pacientes examinados até 12-48 horas do início da hemorragia5,18 ou da data da hospitalização. 11, 12 Verifica-se uma nítida queda nesse desempenho quando a endoscopia é realizada além daqueles limites de tempo, passando ela então a demonstrar os indícios de sangramento em apenas 30-40% de todas as lesões e em não mais que 4,8% das úlceras.5 Ao lado disso, chama a atenção também a influência que a endoscopia de emergência tem na freqüência relativa dos achados. As lesões superficiais sangrantes, por exemplo, são duas vezes mais freqüentes nos exames imediatos que nos tardios. 17.

Um grupo cujo diagnóstico endoscópico não; parece depender tanto da precocidade do exame é o dos pacientes que sangram a partir de uma úlcera gástrica. Neles, talvez pela. maior incidência desse tipo de úlcera numa faixa etária mais avançada ou por sua freqüente associação com outras patologias (enfisema pulmonar, hepatopatia crônica), os sinais de sangramento tenderiam a permanecer presentes por mais tempo 18 e o retardo da endoscopia não prejudicaria a conclusão quanto ao lado de origem da hemorragia, senão em pequeno número de casos.

A elevada mortalidade da hemorragia digestiva alta, quando continua ou recidivante,12 sobretudo quando tratada clinicamente, torna muito desejável o encontro de pistas que permitam prever oportunamente uma evolução mais grave e ajuizar sem hesitação quando empregar os meios disponíveis para estancar endoscopicamente a hemorragia (esclerose, infiltração, eletrocoagulação, fulguração com o laser) e quando recorrer imediatamente à cirurgia.

Os sinais de sangramento recente (artéria visível no fundo de uma úlcera, coágulo recente ou alterado, manchas escuras de hematina no induto fíbrinoso), quando encontrados na endoscopia de emergência, permitem uma, previsão confiável da persistência ou da recidiva de um sangramento por úlcera no tubo digestivo alto. Outros dados semiológicos, como os relacionados com o equilíbrio hemodinâmico, não alcançam a mesma precisão.

Dos sinais mencionados, o que tem maior importância prognóstica é a presença de uma artéria visível endoscopicamente no fundo de uma úlcera .8-l 1. Elevada proporção de seus portadores (100%, num estudo retrospectivo,11 56%, num estudo prospectivo8) apresenta ressangramento que, ao contrário, só ocorreu em 8% das hemorragias por úlceras sem artéria visível, embora apresentando outros sinais de sangramento recente.8

O valor do achado endoscópico da artéria visível pode ser ressaltado ainda pela necessidade de considerar-se, nesses casos, a indicação do tratamento cirúrgico precoce; pois a mortalidade entre os não-operados que sangram por úlcera com vaso visível é superior a 80% (Quadro I- 12-4).19

Por outro lado, vê-se também que a mortalidade do tratamento cirúrgico de pacientes com sangramento por úlcera sem vaso visível foi talvez desnecessariamente muito elevada, deixando dúvidas quanto ao acerto da indicação cirúrgica nesses casos.

Pode constatar-se endoscopicamente a presença de um coto de artéria, no fundo ou na periferia de uma úlcera em até 48% das lesões ulceradas vistas endoscopicamente nas hemorragias digestivas altas, quando o endoscopista está consciente da importância desse sinal de alto risco e visa deliberadamente à sua identificação. 11 19

Varizes Esofágicas. A hemorragia digestiva alta, independente da sua origem, representa um importante acontecimento na evolução das hepatopatias crônicas com cirrose, levando muitos pacientes à descompensação úmida, ictérica ou encefalopática e 26-29% deles à morte.20

Nos portadores de varizes esofágicas por hipertensão portal, nem sempre urna hemorragia digestiva alta se deve a ruptura de veias ectasiadas do esôfago. Segundo os autores que estudaram o assunto,2,21,22 em 28-40% 21,22dos episódios de sangramento em cirróticos, a perda de sangue originou-se de outros pontos que não as varizes do esôfago. Na experiência de outros, essa cifra chega a atingir 61%. 23

Os dados clínicos não permitem concluir com segurança quanto ao local de início da hemorragia nos cirróticos, e a endoscopia mostra quão variadas podem ser as lesões responsáveis nesses pacientes (Quadro I-12-5) e quão amplos podem ser os limites da probabilidade de eles virem a sangrar a partir das varizes do esôfago.

Menos de 30% dos cirróticos comprovadamente portadores de varizes de esôfago estão sujeitos ao primeiro episódio de hemorragia por rompimento dessas ectasias venosas. Entretanto, após um primeiro sangramento desse tipo, os cirróticos têm 70% de possibilidade de voltar a sangrar da mesma fonte.24

O fato é que nem o tipo de sangramento, quer quanto ao volume, quer quanto à persistência da perda de sangue, nem o modo como ele se manifesta - hematêmese ou melena -, e nem mesmo a presença de sinais de insuficiência hepática ou qualquer outro dado clínico é indicador suficientemente específico da origem de uma hemorragia digestiva alta nos cirróticos, impondo-se a endoscopia, nesses casos, como o método diagnóstico mais eficaz.

Em face de uma hemorragia maciça, isto é, aquela que exige a transfusão de mais de 300 cm3 de sangue por hora, por seis horas ou mais, a fim de manter-se o equilíbrio hemodinâmico, há 63% de chance de tratar-se de ruptura de varizes do esôfago. Isto significa uma correlação pouco convincente entre o volume da perda de sangue e a origem da hemorragia nos cirróticos. Por outro lado, quando se comprovou endoscopicamente a ruptura de varizes do esôfago como fonte de sangramento em cirróticos, não havia insuficiência hepática (perda de peso, ascite, bilirrubinemia acima de 4,0 mg%, albuminemia inferior a 3,0g%, fatores da coagulação abaixo de 40% do normal) ou ela era discreta (presença de, no máximo, dois dos referidos sinais) em 63% e intensa (três ou mais dos referidos sinais) em 32% dos casos 25 (Quadro I-12-6).

Nos cirróticos com insuficiência hepática, a maioria dos episódios de hemorragia digestiva alta resulta de lesões agudas da mucosa gastroduodenal, com erosões sangrantes. A insuficiência hepática foi constatada em apenas 20% dos cirróticos que sangravam em conseqüência de ruptura de varizes do esôfago e em 85% daqueles em que a perda de sangue provinha de erosões da mucosa gastroduodenal. 25 Diante do cirrótico, visto individualmente, portanto, mesmo a sígnificância desses dados estatísticos não exclui a necessidade do exame endoscópico precoce, único recurso semiológico capaz de definir-lhe a causa e o local da hemorragia digestiva alta.

A mortalidade na hemorragia digestiva alta é mais elevada nos cirróticos que nos não-cirróticos, e os fatores que influenciam essa mortalidade são a origem e a gravidade do sangramento e o grau de insuficiência hepática presente (Quadro I-12-7).

Assim, a mortalidade é maior quando a hemorragia se deve à ruptura de varizes do esôfago e quanto maior for a perda de sangue. A esse respeito, o número de unidades de transfusão de sangue utilizadas na estabilização do paciente parece ser um indicador valioso do prognóstico, isto é, a mortalidade é, respectivamente, de 42% e 78% quando aquele número se situa abaixo ou acima de 10.26

Escleroterapia de Varizes do Esôfago. Como já foi mencionado em cerca de 60-72%21,22 dos episódios de hemorragia digestiva alta em cirróticos com hipertensão porta as velas do esôfago foram a fonte do sangramento. E possível, entretanto, que nesse tipo de paciente, a importância das varizes seja ainda maior.

Estudo prospectivo ainda em curso no Hospital King's College de Londres revela que de 70 cirróticos com hipertensão porta, apenas 5% deles sangravam de outras fontes que não as varizes.27

A terapêutica de emergência, nesses pacientes, até recentemente contava com recursos como o tamponamento das varizes com os balões de Sengstaken ou Linton, a administração por diversas vias de vasopressina e a embolização percutânea-transepática, da veia coronária gástrica, esta de técnica difícil, além das medidas básicas de ressuscitação.28

Embora tenha sido proposta em 193928 a escleroterapia das varizes do esôfago só velo a difundir-se a partir de 1955,29 com a publicação de resultados favoráveis e a comprovação, através de estudos prospectivos controlados, de que o recurso maior até então disponível para o tratamento e a profilaxia do sangramento por ruptura de varizes do esôfago, em cirróticos - as cirurgias de desvio portocava - leva a uma redução na sobrevida do paciente. 30

Com esse novo método acrescido ao tratamento convencional, é possível controlar a hemorragia, aguda por ruptura de varizes esofágicas em 85-92% dos pacientes e livrá-los de recidiva de hemorragia por, em média, 9,4 meses.30,31

As técnicas de injeção de líquido esclerosante, as substâncias esclerosantes e os esquemas de freqüência das injeções; variam de acordo com os autores. Uns têm como objetivo a trombose do vaso em si, outros, a esclerose do leito das veias varicosas e da parede do esôfago..

Na vigência do sangramento, principalmente quando maciço, a . escleroterapia é tecnicamente difícil e eivada de riscos para o paciente, sobretudo os de aspiração pulmonar. Por isso, alguns preferem, como primeira providência, controlar a hemorragia com outras medidas, tais corno a administração de vasopressina ou o tamponamento das varizes com o balão, antes de recorrer à escleroterapia por via endoscópica para evitar o ressangramento e prevenir novos surtos.

Para a injeção do esclerosante o oleato de etanolamina a 5% é o mais usado no nosso meio -, emprega-se um tubo, de teflon fino, dotado, na extremidade distai, de uma agulha delgada e de bisei curto, e, na extremidade proximal, de um canhão de agulha para conexão com seringa tipo luer-lock.31 Este tubo é assim introduzido dentro de outro, também de teflon, de calibre ligeiramente maior, cuja função é proteger a ponta da agulha.

Na técnica proposta por Soehendra, 31 o esclerosante injetado nos 5 cm terminais do esôfago, primeiro na submucosa, fazendo-se depósitos do líquido nos dois lados das varizes, com o intuito de comprimi-las, por, fim, diretamente dentro da veia. São utilizados, em média, 20 cm3 do esclerosante em cada sessão e o número de sessões, até a esclerose do vaso, é variável, podendo chegar a quatro ou seis, a intervalos de uma a três semanas. Há necessidade de repetir-se o procedimento um e quatro meses depois, para tratar as velas porventura recanalizadas e as neoformadas.

Com esse método, que não exclui um número razoavelmente pequeno de complicações, é possível obter-se o desaparecimento das varizes.30,31

Estudos controlados comprovam que a escleroterapia de veias do esôfago é capaz de diminuir acentuadamente o risco de ressangramento em cirróticos tanto compensados quanto descompensados, aumentando-lhes significantemente a sobrevida (Fig. I-12-1).27

Embora aparentemente simples, o método não é destituído de complicações, citando-se dentre estas a dor retroesternal, o derrame pleural e a perfuração do esôfago, que é rara quando são utilizados os fibrosc6pios, e não os esofagocóspios rígidos.

Lesões Agudas da Mucosa Gástrica. As lesões agudas; da mucosa gástrica também chamadas de úlceras agudas de estresse ou gastrite hemorrágica, resultam, segundo evidências experimentais recentes,32 não do excesso de secreção de ácido clorídrico e pepsina, mas de momentânea falência dos mecanismos de defesa da mucosa gástrica, seja devido à ação de substâncias químicas (antiinflamat6rios, álcool, sais biliares etc), seja devido a graves distúrbios da homeostase desencadeados por hipotensão, insuficiência respiratória, uremia, septicemia ou queimaduras extensas. Morfologicamente, manifestam-se como múltiplas erosões da mucosa gástrica, tipicamente superficiais, de localização característica na região fúndica (Quadro I-12-8).

As lesões ulceradas da mucosa gastroduodenal que ocorrem nas doenças intracranianas, chamadas úlceras de Cushing, ao contrário das lesões agudas da mucosa gástrica, por acompanharem-se freqüentemente de hipocondria e de hipergastrinemia, além de serem profundas, não raro acometendo todas as camadas da mucosa, até com perfuração são atualmente excluídas do rol das úlceras de estresse.32

Exames endoscópicos; seriados, realizados em pacientes sob intenso estresse, evidenciam que as lesões agudas da mucosa gástrica, presentes em quase 100% deles, complicam-se com hemorragia significativa em menos de 5% dos casos. Foi constatado ainda que a probabilidade de sangramento aumenta com o número de fatores de risco que incidem no paciente 33 e na dependência da sede da lesão principal. Acompanham-se de maior tendência para a hemorragia por úlcera de estresse, as lesões traumáticas ou sépticas intra-abdominais; ou toracoabdominais.33

Neoplasias. As lesões malignas, não só as do tubo digestivo, mas também as neoplasias de modo geral, podem acompanhar-se de hemorragia digestiva alta, seja pelas alterações locais que ocasionam, seja pelos distúrbios da homeostase característicos de alguns tumores ou os desencadeados pela quimioterapia ou radioterapia.

A origem desses sangramentos pode ser eficientemente diagnosticada pela endoscopia, mesmo em pacientes muito debilitados, com um mínimo de risco, podendo o exame ser realizado no próprio leito do enfermo.

Em cerca de 40% de portadores de neoplasias, a endoscopia estabeleceu como causa da hemorragia digestiva alta uma lesão aguda da mucosa gástrica,35,36 estando implicados fatores etiológicos como uso de quimioterápicos, corticoesteróides, aspirina e anticoagulante assim corno o estresse pós-cirurgia e septicemia. Apenas 18% dos pacientes sangraram em conseqüência da necrose tumoral 35 Nos pacientes em uso de quimioterapia, ao contrário do que seria de se esperar, têm sido constatados, plaquetopenia (menos de 50.000/mm3 em apenas 16% e aumento do tempo de protrombina e do tempo parcial de tromboplastina em 14%. Somente na minoria dos pacientes com neoplasias e hemorragia digestiva alta foi observada coagulação intravascular disseminada.

Resumindo, podemos fixar os seguintes conceitos a respeito da endoscopia de emergência:

1. A endoscopia é muito superior à clínica e à radiologia, no diagnóstico etiológico das hemorragias digestivas altas, demonstrando que lesões superficiais da mucosa esofagogastroduodenal são importantes como fontes de sangramento e que portadores de lesões previamente conhecidas freqüentemente sangram de outras lesões.

2. Em mãos experimentais a endoscopia de emergência é método inócuo, sendo raras as complicações sérias que lhe são atribuídas, mormente quando realizada com os modernos aparelhos.

3. O conhecimento do diagnóstico endoscópico nos casos de hemorragia digestiva alta, mesmo quando, sem conseqüência terapêutica imediata, permite a reorientação adequada da propedêutica e exerce efeito tranqüilizador sobre o paciente, sua família e o médico.

4. Em 80-100% dos casos, a endoscopia de emergência, permite conhecer a ongem do sangramento- diagnosticando a natureza e o local da lesão. A importância desse fato cresce principalmente quando estão presentes duas ou mais lesões e importa decidir qual delas sangra.

5. Ainda que 80% de todos os episódios de hemorragia digestiva alta sejam autolimitados, com prognóstico favorável, independente do tratamento, a endoscopia de emergência, mesmo sem trazer vantagens terapêuticas adicionais, tem a virtude de, nesses casos, permitir uma previsão da evolução do paciente individualmente. Além disso, permite identificar subgrupos de pacientes de maior risco e seu conseqüente encaminhamento para o tratamento especifico, como é o caso de portadores de varizes do esôfago e de úlceras com vaso visível.

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