Dulmar Garcia de Carvalho
Introdução
Em nenhum quadro clínico a endoscopia, assume importância tão decisiva como
na hemorragia digestiva alta, mas é igualmente aqui onde sua contribuição é também a
mais controvertida.
A rapidez e a dramaticidade com que às vezes se passam os fatos nos episódios de
hemorragia exigem, a par de prontas medidas de estabilização da homeostase, um rápido
diagnóstico da natureza e da localização da lesão sangrante, visando à instituição
do tratamento específico no prazo mais curto possível.
O exame clínico inicial, ainda que indispensável na avaliação do quadro funcional
do paciente com hemorragia, entretanto, por mais minucioso, não permite concluir quanto
à origem do sangramento. Nem o tipo de hemorragia, quer quanto ao volume, quer quanto à
persistência da perda de sangue, tampouco o modo como ele se manifesta - hematêmese ou
melena - nem mesmo a presença de sinais de insuficiência hepatocelular ou qualquer outro
dado clínico é indicador suficientemente específico da origem do sangramento. Além
disso, a hemorragia pode ser a primeira manifestação de uma úlcera péptica, de uma
neoplasia ou de uma cirrose hepática até então assintomáticas, e pacientes portadores
de lesões previamente conhecidas podem sangrar de outras causas. Na experiência de
vários autores, 30-40% dos pacientes com hemorragia por úlcera nunca tiveram queixas
dispépticas, e 25% dos que tinham dispepsia crônica sangravam de outras lesões. 5,22
A radiologia contrastada convencional do esôfago, estômago e duodeno é
reconhecidamente falha na hemorragia digestiva alta, constituindo risco quando realizada
na vigência ou nas primeiras horas após a perda de sangue. Lesões superficiais, como
erosões da mucosa gastroduodenal, angiodisplasias e lacerações; da mucosa na região
esofagogástrica (Mallory-Weiss) passam despercebidas à radiologia convencional e mesmo a
de duplo contraste. Além do mais, a demonstração radiológica de urna lesão não
significa que ela seja a fonte da hemorragia.
A arteriografia seletiva e a cintilografia com tecnécio radiativo,6 por
demais aparatosos, são métodos de exceção, destinados mais às hemorragias
persistentes e utilizados numa fase mais avançada do processo diagnóstico, onde são
disponíveis.
O método que nos últimos anos vem-se impondo como recurso semiológico de grande
valor na hemorragia aguda da parte alta do tubo digestivo é, sem dúvida, a endoscopia
mormente depois do amadurecimento tecnológico já alcançado, que permitiu a construção
de aparelhos delgados, flexíveis, de ponta dirigível e não-traumatizante, com potente
iluminação e excelente poder de resolução, facilitando a inspeção da faringe ao
ângulo de Treitz.
O exame com esses novos instrumentos não chega a constituir sacrifício para os
pacientes, em sua maioria oportunamente submissos, quando vitimas desse tipo de
hemorragia. Assim, não mais se justifica a aplicação à endoscopia de emergência,
senão num sentido de dinamismo, da expressão então utilizada por Palmer22,35
de "abordagem diagnóstica agressiva". Com esses aparelhos e realizada por
médico experiente, a endoscopia de emergência é método inócuo, sendo raras as
complicações.
Não obstante as inúmeras vantagens atribuídas à endoscopia, segundo alguns
céticos, permanece ainda sub judice a afirmativa de que na hemorragia digestiva
alta o diagnóstico endoscópico de emergência acarreta maior sucesso terapêutico.
A medida da discrepância entre as condutas diagnósticas na hemorragia digestiva alta
pode ser avaliada pelos extremos defendidos, de um lado, por alguns autores 7
que consideram antiética a omissão do exame, de outro, pelos8 que confessam o
abandono definitivo da endoscopia de emergência. Entre esses opostos, existem os que
acham que a endoscopia deve ser indicada apenas em casos selecionados, de maior risco. 9
Trabalhos realizados no início da era da fibroscopia, uns retrospectivos, outros
sem seleção aleatória dos pacientes, observaram urna mortalidade de 5-8% entre os
pacientes submetidos à endoscopia e de 15-20% naqueles em que a endoscopia não foi
praticada. A menor mortalidade do primeiro grupo foi atribuída ao conhecimento precoce da
natureza e do local da lesão sangrante, fornecido pela endoscopia, e que possibilitou a
terapêutica mais pronta e específica.
Estudos prospectivos; realizados mais recentemente4 não têm confirmado
aquela impressão inicial, que parecia lógica, de que o diagnóstico endoscópico,
ensejando, um tratamento mais rápido e racional, contribui para a redução da
mortalidade nos pacientes com hemorragia digestiva alta. Do mesmo modo, a morbidez,
avaliada indiretamente pela duração da hospitalização e pelo volume de sangue
transfundido, não foi significantemente diferente nos pacientes com e sem endoscopia de
emergência.
É possível que os novos recursos técnicos e farmacológicos, aliados aos avanços
já conquistados pela endoscopia diagnóstica, venham a alterar a situação. Nesse
sentido é justo esperar mudança favorável no rumo dos fatos com o desenvolvimento da
endoscopia terapêutica, que hoje dispõe da escleroterapia de varizes esofágicas e de
angiodisplasias, bem como da eletrocoagulação e da polipectomia. Quanto à fulguração
de lesões sangrantes; pelos raios laser, depois de uma fase inicial de euforia,
já demonstrou não compensar o investimento.
O Método
A endoscopia impõe-se cada vez mais como o melhor procedimento propedêutico
para a identificação da origem dos sangramentos da parte alta do tubo digestivo.10
Na grande maioria dos pacientes, a endoscopia é realizada depois de tomadas as
medidas para a estabilização hemodinâmica, com o paciente em decúbito lateral esquerdo
e em discreta posição e Trendelenburg, para evitar a aspiração pulmonar de sangue e
secreções gástricas. Alguns prescindem de qualquer tipo de pré-medicação, utilizando
apenas a anestesia da orofaringe com aspersão ou gargarejo com lidocaína a 10%. Os
modernos aparelhos, de menor calibre, autorizam-nos a dispensar a sedação nos pacientes
para os quais tal medida representa maior risco, como nos enfisematosos, idosos e
hepatopatas graves. Contudo, nos demais, sobretudo nos que fizeram uso recente de grandes
quantidades de álcool e, de modo geral nos alcoólatras, a sedação é indispensável.
Mesmo assim, em alguns desses enfermos a realização do exame torna-se impossível, pela
recusa violenta e excessiva agitação. O medicamento mais comumente empregado como
sedativo é o diazepam, na dose de 5-20 mg, em injeção endovenosa lenta. Alguns chegam a
utilizar 40 mg. A dose deve ser individualizada e o limite é o aparecimento de ptose
palpebral e/ou disartria. Observado esse detalhe, a dose usual não chega a produzir
sonolência profunda ou a suprimir o reflexo da tosse. Prova disso é a imediata reação
que surge quando eventualmente o fibroscópio penetra na traquéia. É também rotineira
à atropinização prévia dos pacientes com atropina (0,5 mg aplicados endovenosamente
imediatamente, ou 1,0 mg intramuscularmente 20 minutos antes do exame) ou hioscina (20-40
mg, endovenosamente). Nem todos os serviços antecedem a endoscopia de emergência com uma
lavagem gástrica com soro fisiológico gelado ou a 37ºC. De fato, a presença de grandes
quantidades de sangue no interior do estômago prejudica ou inviabiliza o exame. A
aspiração de grandes coágulos de sangue através do canal de aspiração do aparelho
pode obstrui-lo e deve ser evitada. Nessas circunstâncias o mais aconselhável é retirar
o fibroscópio e introduzir no estômago um tubo de grande calibre (p. ex.: tipo, Ewald 36
Fr), de preferência com dupla luz, que permita a instilação de líquidos e simultânea
sifonagem ou cuidadosa aspiração do conteúdo gástrico, sem produzir erosões
factícias na mucosa. Os casos que exigem essa manobra constituem a minoria, 4% das
endoscopias de emergência.5 Riscos potenciais; dessa conduta são o reinicio,
de uma hemorragia já estancada espontaneamente e a aspiração pulmonar.
Na grande maioria dos casos, os pan-endofibroscópios de visão frontal são os mais
usados e de modo exclusivo. Num menor número de pacientes, pode ser vantajoso o uso
sucessivo de um aparelho de visão lateral, como em casos selecionados de portadores de
algumas lesões na pequena curvatura antral, próxima ao ângulo, ou nos de úlceras
bulbares da vertente duodenal do piloro que podem passar despercebidas. Também nos
pacientes suspeitos de hemobilia, nos quais se impõe a visão da papila de Vater, é
indispensável a inspeção com aparelho de visão lateral.
Indicações
São candidatos à endoscopia de emergência os pacientes que apresentem sinais
de hemorragia digestiva volumosa ou de hemorragia aguda ativa (Quadro I-12-1).
Na hemorragia volumosa, a perda de sangue supera os 1.000 cm3 em curto
intervalo de tempo. Um sangramento de tal monta manifesta-se geralmente por uma queda na
pressão sistólica superior a 10 mmHg e por um aumento na freqüência do pulso de mais
de 20 bpm, na transição do decúbito para o ortostatismo.
Quando num controle de 12 horas registram-se sinais, como aumento na freqüência
cardíaca de 25 bpm, declínio na pressão sistólica superior a 25 mmHg e na pressão
diastólica de mais de 15 mmHg e a hemoglobinemia, baixa de 2 g% ou mais, considera-se a
hemorragia ativa ou persistente.
A eficácia da endoscopia de emergência é tanto maior quanto mais precocemente for
realizada. E conhecida a rapidez com que a mucosa gastroduodenal pode recuperar-se, com
desaparecimento, em poucas horas, de úlceras rasas, lacerações e erosões.
A probabilidade de encontrar-se a lesão sangrante na endoscopia de emergência cai,
segundo uns,11" de 78%, segundo outros,12 de 90%, nas primeiras
24 horas, respectivamente para 32% e 27%, 48 horas ou mais, após a hemorragia. Daí o
empenho de alguns em executar a endoscopia, se possível, uma a duas horas após a
internação do paciente. 13 Outros estabelecem critérios de indicação mais
completos, condicionando a realização da endoscopia de emergência à estabilização
hemodinâmica do paciente nas primeiras seis horas.4
A persistência dos sinais clínicos de hipovolemia, um hematócrito inferior a
25% e com tendência a cair, e a continua aspiração de líquido de lavagem gástrica com
grandes quantidades de sangue significam sangramento contínuo e grave e correspondem a
uma indicação de cirurgia. Esses pacientes poderão ser submetidos à endoscopia quando
já anestesiados e intubados, na sala de cirurgia.
A endoscopia realizada dentro das quatro horas seguintes ao equilíbrio circulatório
ou ainda, como de modo geral se aceita, dentro das primeiras 12 horas após a
manifestação da hemorragia, atende ao critério de emergência.1,5
Contra-indicam a realização da endoscopia de emergência a agitação
psicomotora excessiva, o delirium tremens, sinais de isquemia ou infarto do
miocárdio, arritmias cardíacas graves, insuficiência cardíaca ou respirat6ria, quando
descompensadas, sinais de perfuração de víscera oca do exame clínico do abdômen e,
obviamente, a recusa expressa em submeter-se ao exame.
Complicações
A endoscopia de emergência é reconhecidamente um procedimento mais difícil e
trabalhoso que a endoscopia rotineira, e só deveria ser feita por medico experimentado.
Satisfeito esse requisito, a ocorrência de complicações é relativamente rara, em
torno de 0,7-0,9%, 14 Contudo, há relatos de mortalidade atribuída à
endoscopia.15
Um inquérito nacional sobre hemorragia digestiva alta realizado pela American
Society of Gastrintestinal Endoscopy (EUA) revelou 21 complicações, em 2.320 endoscopias
de emergência, das quais, 12 maiores, incluindo três óbitos (perfuração, aspiração,
sangramento) e nove menores (lacerações da mucosa, reações a medicamentos e
complicações cardíacas ou pulmonares, transitórias).15
A aspiração pulmonar, a complicação mais constante na experiência da maioria
dos autores, facilitada pela presença do aparelho em zona altamente reflexógena,
propiciando vômito, é atribuída à anestesia da laringe e ao uso de sedativos, que
interferem na coordenação da faringe e no fechamento reflexo da glote, distúrbios cuja
gravidade provavelmente será tanto maior quanto mais intensa a hipoxia cerebral.
Os sinais que recomendam maior prudência e que indicam um maior potencial de riscos na
realização da endoscopia de emergência são os de grande anemia, idade avançada e
concomitância de outras patologias (Quadro
I-12-2).
As Lesões
Úlcera Péptica. A endoscopia de emergência tem como
objetivo definir a natureza e a localização da lesão sangrante e fornecer dados quanto
à atividade e a gravidade da hemorragia, visando à orientação da terapêutica
específica nos casos de sangramento digestivo alto.
Em até 30% dos casos, é possível diagnosticar endoscopicamente a presença de
lesões múltiplas, sendo necessário estabelecer a diferença entre as lesões ativamente
sangrantes das com sinais de sangramento recente e as potencialmente sangrantes.
No sangramento ativo, o endoscopista vê o sangue extravasar-se de vários modos:, seja
impetuosamente, em jato contínuo ou pulsátil, mostrando a procedência arterial, seja
escoando-se em filete ou porejando em lençol.
Forrest et al. 11 classificaram essas lesões de maneira didática e
prática, permitindo aos endoscopistas codificar as lesões na hemorragia digestiva alta
num sistema de referência que simplifica a comunicação (Quadro I-12-3).
O tempo decorrido entre as primeiras manifestações da hemorragia e o exame
endoscópico é de grande valor no reconhecimento de uma lesão que sangra ativamente ou
que sangrou recentemente. Como já foi mencionado 8,17 erosões, lacerações e
úlceras rasas da mucosa epitelizam-se com rapidez. Em virtude disso, a probabilidade do
encontro de uma lesão com sinais de sangramento é menor na endoscopia feita tardiamente.
Por outro lado, exames muito próximos ao episódio agudo de hemorragia, a menos que
precedidos de lavagem gástrica, podem ser prejudicados pela presença de sangue, que
oculta as lesões. Deduz-se a importância da precocidade da endoscopia pela capacidade de
identificar sinais de sangramento ativo ou recente em 69-87% dos pacientes examinados até
12-48 horas do início da hemorragia5,18 ou da data da hospitalização. 11,
12 Verifica-se uma nítida queda nesse desempenho quando a endoscopia é realizada
além daqueles limites de tempo, passando ela então a demonstrar os indícios de
sangramento em apenas 30-40% de todas as lesões e em não mais que 4,8% das úlceras.5
Ao lado disso, chama a atenção também a influência que a endoscopia de
emergência tem na freqüência relativa dos achados. As lesões superficiais sangrantes,
por exemplo, são duas vezes mais freqüentes nos exames imediatos que nos tardios. 17.
Um grupo cujo diagnóstico endoscópico não; parece depender tanto da
precocidade do exame é o dos pacientes que sangram a partir de uma úlcera gástrica.
Neles, talvez pela. maior incidência desse tipo de úlcera numa faixa etária mais
avançada ou por sua freqüente associação com outras patologias (enfisema pulmonar,
hepatopatia crônica), os sinais de sangramento tenderiam a permanecer presentes por mais
tempo 18 e o retardo da endoscopia não prejudicaria a conclusão quanto ao
lado de origem da hemorragia, senão em pequeno número de casos.
A elevada mortalidade da hemorragia digestiva alta, quando continua ou recidivante,12
sobretudo quando tratada clinicamente, torna muito desejável o encontro de pistas que
permitam prever oportunamente uma evolução mais grave e ajuizar sem hesitação quando
empregar os meios disponíveis para estancar endoscopicamente a hemorragia (esclerose,
infiltração, eletrocoagulação, fulguração com o laser) e quando recorrer
imediatamente à cirurgia.
Os sinais de sangramento recente (artéria visível no fundo de uma úlcera, coágulo
recente ou alterado, manchas escuras de hematina no induto fíbrinoso), quando encontrados
na endoscopia de emergência, permitem uma, previsão confiável da persistência ou da
recidiva de um sangramento por úlcera no tubo digestivo alto. Outros dados semiológicos,
como os relacionados com o equilíbrio hemodinâmico, não alcançam a mesma precisão.
Dos sinais mencionados, o que tem maior importância prognóstica é a presença de uma
artéria visível endoscopicamente no fundo de uma úlcera .8-l 1. Elevada
proporção de seus portadores (100%, num estudo retrospectivo,11 56%, num
estudo prospectivo8) apresenta ressangramento que, ao contrário, só ocorreu
em 8% das hemorragias por úlceras sem artéria visível, embora apresentando outros
sinais de sangramento recente.8
O valor do achado endoscópico da artéria visível pode ser ressaltado ainda
pela necessidade de considerar-se, nesses casos, a indicação do tratamento cirúrgico
precoce; pois a mortalidade entre os não-operados que sangram por úlcera com vaso
visível é superior a 80% (Quadro I- 12-4).19
Por outro lado, vê-se também que a mortalidade do tratamento cirúrgico de
pacientes com sangramento por úlcera sem vaso visível foi talvez desnecessariamente
muito elevada, deixando dúvidas quanto ao acerto da indicação cirúrgica nesses casos.
Pode constatar-se endoscopicamente a presença de um coto de artéria, no fundo ou na
periferia de uma úlcera em até 48% das lesões ulceradas vistas endoscopicamente nas
hemorragias digestivas altas, quando o endoscopista está consciente da importância desse
sinal de alto risco e visa deliberadamente à sua identificação. 11 19
Varizes Esofágicas. A hemorragia digestiva alta, independente da sua
origem, representa um importante acontecimento na evolução das hepatopatias crônicas
com cirrose, levando muitos pacientes à descompensação úmida, ictérica ou
encefalopática e 26-29% deles à morte.20
Nos portadores de varizes esofágicas por hipertensão portal, nem sempre urna
hemorragia digestiva alta se deve a ruptura de veias ectasiadas do esôfago. Segundo os
autores que estudaram o assunto,2,21,22 em 28-40% 21,22dos
episódios de sangramento em cirróticos, a perda de sangue originou-se de outros pontos
que não as varizes do esôfago. Na experiência de outros, essa cifra chega a atingir
61%. 23
Os dados clínicos não permitem concluir com segurança quanto ao local de
início da hemorragia nos cirróticos, e a endoscopia mostra quão variadas podem ser as
lesões responsáveis nesses pacientes (Quadro
I-12-5) e quão amplos podem ser os limites da probabilidade de eles virem a sangrar a
partir das varizes do esôfago.
Menos de 30% dos cirróticos comprovadamente portadores de varizes de esôfago estão
sujeitos ao primeiro episódio de hemorragia por rompimento dessas ectasias venosas.
Entretanto, após um primeiro sangramento desse tipo, os cirróticos têm 70% de
possibilidade de voltar a sangrar da mesma fonte.24
O fato é que nem o tipo de sangramento, quer quanto ao volume, quer quanto à
persistência da perda de sangue, nem o modo como ele se manifesta - hematêmese ou melena
-, e nem mesmo a presença de sinais de insuficiência hepática ou qualquer outro dado
clínico é indicador suficientemente específico da origem de uma hemorragia digestiva
alta nos cirróticos, impondo-se a endoscopia, nesses casos, como o método diagnóstico
mais eficaz.
Em face de uma hemorragia maciça, isto é, aquela que exige a transfusão de mais de
300 cm3 de sangue por hora, por seis horas ou mais, a fim de manter-se o
equilíbrio hemodinâmico, há 63% de chance de tratar-se de ruptura de varizes do
esôfago. Isto significa uma correlação pouco convincente entre o volume da perda de
sangue e a origem da hemorragia nos cirróticos. Por outro lado, quando se comprovou
endoscopicamente a ruptura de varizes do esôfago como fonte de sangramento em
cirróticos, não havia insuficiência hepática (perda de peso, ascite, bilirrubinemia
acima de 4,0 mg%, albuminemia inferior a 3,0g%, fatores da coagulação abaixo de 40% do
normal) ou ela era discreta (presença de, no máximo, dois dos referidos sinais) em 63% e
intensa (três ou mais dos referidos sinais) em 32% dos casos 25 (Quadro I-12-6).
Nos cirróticos com insuficiência hepática, a maioria dos episódios de hemorragia
digestiva alta resulta de lesões agudas da mucosa gastroduodenal, com erosões
sangrantes. A insuficiência hepática foi constatada em apenas 20% dos cirróticos que
sangravam em conseqüência de ruptura de varizes do esôfago e em 85% daqueles em que a
perda de sangue provinha de erosões da mucosa gastroduodenal. 25 Diante do
cirrótico, visto individualmente, portanto, mesmo a sígnificância desses dados
estatísticos não exclui a necessidade do exame endoscópico precoce, único recurso
semiológico capaz de definir-lhe a causa e o local da hemorragia digestiva alta.
A mortalidade na hemorragia digestiva alta é mais elevada nos cirróticos que nos
não-cirróticos, e os fatores que influenciam essa mortalidade são a origem e a
gravidade do sangramento e o grau de insuficiência hepática presente (Quadro I-12-7).
Assim, a mortalidade é maior quando a hemorragia se deve à ruptura de varizes do
esôfago e quanto maior for a perda de sangue. A esse respeito, o número de unidades de
transfusão de sangue utilizadas na estabilização do paciente parece ser um indicador
valioso do prognóstico, isto é, a mortalidade é, respectivamente, de 42% e 78% quando
aquele número se situa abaixo ou acima de 10.26
Escleroterapia de Varizes do Esôfago. Como já foi mencionado em cerca de
60-72%21,22 dos episódios de hemorragia digestiva alta em cirróticos com
hipertensão porta as velas do esôfago foram a fonte do sangramento. E possível,
entretanto, que nesse tipo de paciente, a importância das varizes seja ainda maior.
Estudo prospectivo ainda em curso no Hospital King's College de Londres revela que de
70 cirróticos com hipertensão porta, apenas 5% deles sangravam de outras fontes que não
as varizes.27
A terapêutica de emergência, nesses pacientes, até recentemente contava com
recursos como o tamponamento das varizes com os balões de Sengstaken ou Linton, a
administração por diversas vias de vasopressina e a embolização
percutânea-transepática, da veia coronária gástrica, esta de técnica difícil, além
das medidas básicas de ressuscitação.28
Embora tenha sido proposta em 193928 a escleroterapia das varizes do
esôfago só velo a difundir-se a partir de 1955,29 com a publicação de
resultados favoráveis e a comprovação, através de estudos prospectivos controlados, de
que o recurso maior até então disponível para o tratamento e a profilaxia do
sangramento por ruptura de varizes do esôfago, em cirróticos - as cirurgias de desvio
portocava - leva a uma redução na sobrevida do paciente. 30
Com esse novo método acrescido ao tratamento convencional, é possível
controlar a hemorragia, aguda por ruptura de varizes esofágicas em 85-92% dos pacientes e
livrá-los de recidiva de hemorragia por, em média, 9,4 meses.30,31
As técnicas de injeção de líquido esclerosante, as substâncias esclerosantes
e os esquemas de freqüência das injeções; variam de acordo com os autores. Uns têm
como objetivo a trombose do vaso em si, outros, a esclerose do leito das veias varicosas e
da parede do esôfago..
Na vigência do sangramento, principalmente quando maciço, a . escleroterapia é
tecnicamente difícil e eivada de riscos para o paciente, sobretudo os de aspiração
pulmonar. Por isso, alguns preferem, como primeira providência, controlar a hemorragia
com outras medidas, tais corno a administração de vasopressina ou o tamponamento das
varizes com o balão, antes de recorrer à escleroterapia por via endoscópica para evitar
o ressangramento e prevenir novos surtos.
Para a injeção do esclerosante o oleato de etanolamina a 5% é o mais usado no nosso
meio -, emprega-se um tubo, de teflon fino, dotado, na extremidade distai, de uma agulha
delgada e de bisei curto, e, na extremidade proximal, de um canhão de agulha para
conexão com seringa tipo luer-lock.31 Este tubo é assim introduzido dentro de
outro, também de teflon, de calibre ligeiramente maior, cuja função é proteger a ponta
da agulha.
Na técnica proposta por Soehendra, 31 o esclerosante injetado nos 5 cm
terminais do esôfago, primeiro na submucosa, fazendo-se depósitos do líquido nos dois
lados das varizes, com o intuito de comprimi-las, por, fim, diretamente dentro da veia.
São utilizados, em média, 20 cm3 do esclerosante em cada sessão e o número
de sessões, até a esclerose do vaso, é variável, podendo chegar a quatro ou seis, a
intervalos de uma a três semanas. Há necessidade de repetir-se o procedimento um e
quatro meses depois, para tratar as velas porventura recanalizadas e as neoformadas.
Com esse método, que não exclui um número razoavelmente pequeno de complicações,
é possível obter-se o desaparecimento das varizes.30,31
Estudos controlados comprovam que a escleroterapia de veias do esôfago é capaz
de diminuir acentuadamente o risco de ressangramento em cirróticos tanto compensados
quanto descompensados, aumentando-lhes significantemente a sobrevida (Fig. I-12-1).27
Embora aparentemente simples, o método não é destituído de complicações,
citando-se dentre estas a dor retroesternal, o derrame pleural e a perfuração do
esôfago, que é rara quando são utilizados os fibrosc6pios, e não os esofagocóspios
rígidos.
Lesões Agudas da Mucosa Gástrica. As lesões agudas; da mucosa gástrica
também chamadas de úlceras agudas de estresse ou gastrite hemorrágica, resultam,
segundo evidências experimentais recentes,32 não do excesso de secreção de
ácido clorídrico e pepsina, mas de momentânea falência dos mecanismos de defesa da
mucosa gástrica, seja devido à ação de substâncias químicas (antiinflamat6rios,
álcool, sais biliares etc), seja devido a graves distúrbios da homeostase desencadeados
por hipotensão, insuficiência respiratória, uremia, septicemia ou queimaduras extensas.
Morfologicamente, manifestam-se como múltiplas erosões da mucosa gástrica, tipicamente
superficiais, de localização característica na região fúndica (Quadro I-12-8).
As lesões ulceradas da mucosa gastroduodenal que ocorrem nas doenças intracranianas,
chamadas úlceras de Cushing, ao contrário das lesões agudas da mucosa gástrica, por
acompanharem-se freqüentemente de hipocondria e de hipergastrinemia, além de serem
profundas, não raro acometendo todas as camadas da mucosa, até com perfuração são
atualmente excluídas do rol das úlceras de estresse.32
Exames endoscópicos; seriados, realizados em pacientes sob intenso estresse,
evidenciam que as lesões agudas da mucosa gástrica, presentes em quase 100% deles,
complicam-se com hemorragia significativa em menos de 5% dos casos. Foi constatado ainda
que a probabilidade de sangramento aumenta com o número de fatores de risco que incidem
no paciente 33 e na dependência da sede da lesão principal. Acompanham-se de
maior tendência para a hemorragia por úlcera de estresse, as lesões traumáticas ou
sépticas intra-abdominais; ou toracoabdominais.33
Neoplasias. As lesões malignas, não só as do tubo digestivo, mas
também as neoplasias de modo geral, podem acompanhar-se de hemorragia digestiva alta,
seja pelas alterações locais que ocasionam, seja pelos distúrbios da homeostase
característicos de alguns tumores ou os desencadeados pela quimioterapia ou radioterapia.
A origem desses sangramentos pode ser eficientemente diagnosticada pela endoscopia,
mesmo em pacientes muito debilitados, com um mínimo de risco, podendo o exame ser
realizado no próprio leito do enfermo.
Em cerca de 40% de portadores de neoplasias, a endoscopia estabeleceu como causa da
hemorragia digestiva alta uma lesão aguda da mucosa gástrica,35,36 estando
implicados fatores etiológicos como uso de quimioterápicos, corticoesteróides, aspirina
e anticoagulante assim corno o estresse pós-cirurgia e septicemia. Apenas 18% dos
pacientes sangraram em conseqüência da necrose tumoral 35 Nos pacientes em
uso de quimioterapia, ao contrário do que seria de se esperar, têm sido constatados,
plaquetopenia (menos de 50.000/mm3 em apenas 16% e aumento do tempo de
protrombina e do tempo parcial de tromboplastina em 14%. Somente na minoria dos pacientes
com neoplasias e hemorragia digestiva alta foi observada coagulação intravascular
disseminada.
Resumindo, podemos fixar os seguintes conceitos a respeito da endoscopia de
emergência:
1. A endoscopia é muito superior à clínica e à radiologia, no diagnóstico
etiológico das hemorragias digestivas altas, demonstrando que lesões superficiais da
mucosa esofagogastroduodenal são importantes como fontes de sangramento e que portadores
de lesões previamente conhecidas freqüentemente sangram de outras lesões.
2. Em mãos experimentais a endoscopia de emergência é método inócuo, sendo raras
as complicações sérias que lhe são atribuídas, mormente quando realizada com os
modernos aparelhos.
3. O conhecimento do diagnóstico endoscópico nos casos de hemorragia digestiva alta,
mesmo quando, sem conseqüência terapêutica imediata, permite a reorientação adequada
da propedêutica e exerce efeito tranqüilizador sobre o paciente, sua família e o
médico.
4. Em 80-100% dos casos, a endoscopia de emergência, permite conhecer a ongem do
sangramento- diagnosticando a natureza e o local da lesão. A importância desse fato
cresce principalmente quando estão presentes duas ou mais lesões e importa decidir qual
delas sangra.
5. Ainda que 80% de todos os episódios de hemorragia digestiva alta sejam
autolimitados, com prognóstico favorável, independente do tratamento, a endoscopia de
emergência, mesmo sem trazer vantagens terapêuticas adicionais, tem a virtude de, nesses
casos, permitir uma previsão da evolução do paciente individualmente. Além disso,
permite identificar subgrupos de pacientes de maior risco e seu conseqüente
encaminhamento para o tratamento especifico, como é o caso de portadores de varizes do
esôfago e de úlceras com vaso visível.
Referências Bibliográficas
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