Cid Sérgio Ferreira
José Nelson Mendes Vieira
Introdução
Apesar do grande desenvolvimento, nas duas últimas décadas, dos métodos de
diagnóstico por imagem, o estudo radiológico simples conserva sua grande importância na
propedêutica do abdômen agudo, seja de causa inflamatória, obstrutiva, perfurativa,
traumática ou vascular. Embora em algumas patologias o diagnóstico seja eminentemente
clínico, o estudo radiológico pode não só confirmar a hipótese diagnóstica como
também avaliar a extensão do processo patológico.
Técnica
O estudo radiológico convencional básico consiste na obtenção de
radiografias do tórax e do abdômen. As radiografias do tórax estão indicadas pelo fato
de determinadas lesões que acometem as bases pulmonares (pneumonia, por exemplo) poderem
simular o quadro de abdômen agudo, principalmente em crianças; além disso, pequenos
pneumoperitônios podem ser melhor detectados nas telerradiografias do tórax que do
abdômen em ortostatismo. As radiografias do abdômen devem ser obtidas sempre em duas
incidências, sendo geralmente feitas na incidência ântero-posterior em decúbito dorsal
e ortostatismo. Quando o paciente não consegue permanecer na posição ortostática,
podemos obter imagens em decúbito lateral (geralmente esquerdo) e/ou decúbito dorsal com
raios horizontais.
Nos casos em que se cogita eventual intervenção cirúrgica, é fundamental o perfeito
entendimento entre o clínico, o cirurgião e o radiologista; desta forma, a rotina
propedêutica radiológica poderá ser alterada e orientada especificamente para cada
paciente, possibilitando diagnósticos mais rápidos e precisos.
Alterações Radiológicas Gerais
Escoliose Antálgica. A tensão e rigidez musculares podem ser observadas ao se
avaliar radiologicamente os flancos e os músculos psoas. Em muitas lesões abdominais
agudas somente um flanco mostra-se contraído, principalmente o direito, condicionando o
aspecto chamado de escoliose antálgica. Nos radiogramas obtidos na incidência
ântero-posterior, teremos redução da distância entre os arcos costais inferiores e a
crista ilíaca do lado contraído, Além disso, teremos escoliose convexa para o lado
oposto com obliteração parcial ou completa do contorno do psoas do lado afetado. Estes
achados, embora possam ocorrer em várias situações, são mais freqüentemente
observados na apendicite aguda, perfuração de úlcera duodenal e litíase ureteral (Fig. I-.8-1). Devemos lembrar que a
indefinição do músculo psoas, observado isoladamente, deve ser considerado com
reservas, tendo em vista poder ser observado em indivíduos normais.
Pneumoperitônio. Para se demonstrar ar livre na cavidade peritoneal é
importante permitir-se o seu acúmulo em região favorável à sua delimitação, sendo
que os achados vão variar com a sua quantidade. Quando as condições do paciente o
permitem permanecer em ortostatismo, pequenas coleções gasosas laminares podem ser
observadas entre a cúpula frênica direita e o fígado e/ou a cúpula frênica esquerda e
o estômago/alças intestinais (Fig. I-8-2).
Pequenos acúmulos gasosos subfrênicos são mais bem demonstrados na radiografia frontal
do tórax que do abdômen em ortostatismo, devido tanto à técnica radiológica
estilizada quanto à incidência dos RX. Quando as condições do paciente são graves,
podemos obter radiografias em decúbito lateral, geralmente à esquerda, delimitando-se a
faixa radiotransparente de gás entre os arcos costais e o fígado ou na fossa ilíaca
direita.
Na posição supina, o ar livre, quando em pequena quantidade, geralmente é invisível
na incidência AP. Quando a quantidade de gás é moderada ou grande, sua presença pode
ser suspeitada indiretamente pela delimitação do contorno externo da parede intestinal.
Este sinal, chamado de Rigler/Frimann-Dahl, ocorre devido à presença de gás dentro e
fora da alça intestinal (Fig. I-8-3).
Quando necessário, podemos utilizar incidência complementar nesta posição supina,
usando-se raios horizontais, obtendo-se delimitação de pequenas coleções anteriores,
sob a parede abdominal.
Após cirurgias abdominais, o pneumoperitônio geralmente desaparece em três a seis
dias, mas pode permanecer por semanas. Quando quantidades maiores de gás permanecem no
pós-operatório, deve-se pensar em outra causa do pneumoperitônio, como sutura
insuficiente no estômago ou intestino, por exemplo.
Distensão Gasosa Intestinal. A alteração aguda mais comum do intestino
delgado e do intestino grosso é a obstrução intestinal, denominação ampla de qualquer
obstáculo à progressão normal do conteúdo gastrintestinal, incluindo íleo
paralítico.
Várias formas de obstrução intestinal devem ser diferenciadas clinicamente de acordo
com: (1) etiologia: mecânica, vascular, funcional, pseudo-obstrução intestinal; (2)
grau: parcial ou total; (3) localização: obstrução alta ou baixa; (4) tempo: aguda,
subaguda e crônica.
Nos quadros de distensão gasosa intestinal, o radiologista pode auxiliar enormemente
no diagnóstico ao informar se se trata de obstrução mecânica ou íleo paralítico,
onde se encontra a obstrução, se há evidência de insuficiência vascular intestinal,
se há ar livre na cavidade peritoneal (perfuração) etc.
Nas obstruções do intestino delgado, as alterações radiológicas são típicas e
variam com o local da obstrução e sua intensidade (parcial ou completa): (a) alças
proximais à obstrução distendidas, em forma de arco, devido a acúmulo de líquido e
gás; (b) presença de níveis hidroaéreos (Fig.
I-8-4); (c) peristaltismo intestinal aumentado, proximal à obstrução; (d) redução
ou eliminação do conteúdo gasoso e fecal do intestino distal à obstrução, e (e)
líquido na cavidade peritoneal.
Líquido Livre na Cavidade Peritoneal. Como o líquido livre tem tendência a
descer para as porções mais inferiores do espaço abdominal, sua presença é suspeitada
inicialmente e com maior facilidade na pequena pelve e nos flancos.
Na pesquisa de liquido na pequena pelve devemos ter o cuidado de esvaziar a bexiga do
paciente, seja espontaneamente ou através de cateterização, facilitando a avaliação
da região. A delimitação dos acúmulos de líquidos lateral e posteriormente à bexiga,
como opacidades arredondadas, é facilitada pela demonstração de faixa radiotransparente
perivesical correspondente à gordura, Quando há alças intestinais; com gás, esta podem
mostrar-se se, paradas ou deslocadas por faixas com densidade de líquido.
Líquido no flanco é melhor demonstrado ria posição supina corri raios verticais,
sendo apropriado deixar o paciente algum tempo em decúbito lateral, para se obter o
acúmulo de líquido na região. A radiografia obtida em inspiração profunda mostrará
faixa de densidade de líquido com espessura dependente da sua quantidade, variando de
poucos milímetros até 4-5 cm na ascite. A borda lateral desta coleção, como é
limitada pelo peritônio parietal medial, vai depender do número e do conteúdo do
intestino adjacente, sendo bem nítido quando as alças intestinais estão cheias de gás.
Outro indício da presença de liquido na cavidade peritoneal é o apagamento da borda
hepática inferior, pois nesta região podem formar-se coleções (Fig. I-8-5). Nas radiografias do flanco
direito obtidas em decúbito lateral esquerdo com raios horizontais, o reaparecimento da
borda inferior do fígado reforça a suspeita radiográfica de acumule) de líquido nesta
região. Em certas condições nas quais o líquido peritoneal é espesso, este pode
acumular-se entre as alças intestinais aparecendo com faixas densas, separando-as.
Na ascite, o quadro radiológico pode variar desde faixas de líquido acumuladas nos
flancos até densidade difusa do abdômen, obliterando os contornos de órgãos
parenquimatosos e os reparos retroperitoneais. Quando a ascite é volumosa, teremos
deslocamento de alças do intestino para o centro e para frente, do abdômen, junto à
parede abdominal anterior. Um aspecto que é considerado patognomônico da ascite é o
deslocamento medial da borda lateral do fígado pelo líquido acumulado; corno a densidade
deste é menor que, a hepática aparecerá corno faixa mais transparente entre o fígado e
os arcos costais adjacentes (sinal de Hellmer).
Nota dos Autores: Agradecemos ao Dr. Paulo Vicente Soriano Freire a valiosa
colaboração na confecção dos desenhos.
Referências Bibliográficas
1. D. BEYER 8, U. MÖDDER Diagnostic Imaging of the Acute Abdomen,
Springer-Verlag Berlin Heidelberg. 1988.
2. J. FRIMANN DAHL, Roentgen Examinations in Acute Abdominal Diseases, Charles C.
Thomas, 1964.
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