Capítulo 01.05. Dor Abdominal em Crianças

José Teixeira Guimarães
Edson Samesima Tatsuo
Décio Fábio de Oliveira Júnior

Introdução

Ao recolhermos as informações, na abordagem ao paciente pediátrico, especialmente os recém-nascidos (RN), lactentes e pré-escolares, enfrentamos uma barreira devida a sua dificuldade de verbalização dos problemas. A dor, por seus aspectos subjetivos naturais, toma-se um desafio ainda maior para ser identificada e categorizada pelo médico que trata o pequeno paciente. Ele deverá estar preparado para estas dificuldades e familiarizado com os aspectos psicossociais envolvidos.

O Recém-Nascido Sente Dor?

Um questionamento ainda não resolvido na neonatologia concerne à capacidade dos RN em "sentir" dor. A dor, além de ser um estímulo nociceptivo, é também um fenômeno subjetivo com profundo impacto emocional. Argumenta-se que a falta de mielinização e a imaturidade cortical não permitiriam ao RN perceber, interpretar, localizar e memorizar a experiência dolorosa. As evidências em contrário têm-se mostrado volumosas:

1. Mesmo em adultos, 75% dos estímulos nociceptivos chegam ao sistema nervoso por fibras não-mielinizadas. 11

2. A via central aferente nociceptiva até o tálamo está mielinizada completamente no feto de 30 semanas, e a via talamocortical idem, ao final da 37ª semana.11

3. Estímulos nociceptivos como intubação e aspiração endotraqueal, venopunções etc. alteram alguns parâmetros fisiológicos do RN, sugerindo estresse: elevação da freqüência cardíaca, pressão arterial, pressão intracraniana, resistência vascular pulmonar e redução da saturação de oxigênio transcutânea.8

4. Um trabalho feito por Williamson e Williamson (1983) demonstrou que a utilização de bloqueio anestésico do pênis, previamente à execução de circuncisão em RN, reduziu a freqüência cardíaca, o choro, a queda na saturação de oxigênio transcutâneo (SaO2) e os níveis de cortisol sérico em relação aos RN não anestesiados e submetidos ao procedimento cirúrgico pela mesma técnica (Gomco) 13

Aspectos Psicossociais Modulares da Dor na Infância e na Adolescência.

Em crianças abaixo de dois anos o desenvolvimento cortical ainda não é total, o que acarreta certa dificuldade na localização precisa do estímulo. O domínio do símbolo não está completo e a linguagem não permite uma expressão verbal adequada. Esta idade se caracteriza pela resposta estereotipada ao desconforto, dor, ansiedade, medo e outros estados físicos e subjetivos desagradáveis. A resposta do paciente a uma gama variada de estímulos internos e externos é sempre o choro e a agitação, o que dificulta muito, para o médico, a caracterização precisa dos sintomas.

Entre os dois e os sete anos já existe domínio da linguagem, que é, contudo, limitado. A capacidade de abstrato é pequena e a criança tende a relacionar a dor com experiências sensoriais concretas e concomitantes com o fenômeno doloroso. Há também urna fantasia de que a dor seja uma punição por travessuras que ela tenha feito. Neste estágio do desenvolvimento, ( experiência dolorosa pode ser tremendamente modulada por agregados psíquicos (p. ex.: a separação da mãe e a impossibilidade de brincar exacerbam a dor; a presença da mãe alivia a dor). 12

No escolar (sete a 11 anos) a compreensão lógica e o domínio da linguagem são maiores e a criança está em fase de socialização, aprendendo as regras de convívio social. Freqüentemente crê que sua doença decorre de seu desrespeito às mesmas. Embora seja capaz de explicar melhor seus sintomas é pouco cooperativa quando sob estresse doloroso e suas explicações são simplistas. Outro problema é que pode desenvolver comportamento regressivo e assar a agir do mesmo modo que crianças mais jovens.1,9,12

O comportamento do adolescente frente à dor, apesar de similar ao adulto também está vinculado a aspectos psíquicos próprios deste período. Um aspecto relevante diz respeito à grande importância que o adolescente dá a sua própria imagem corporal, e a dor, enquanto ameaça à integridade física, pode ter sua preparação amplificada. 12

O pediatra e o cirurgião-pediatra devem avaliar bem o contexto psicológico familiar, a ansiedade dos pais, problemas conjugais e escolares de cada caso, antes de emitirem um parecer definitivo sobre o quadro doloroso da criança. Não é raro uma supervalorização da dor pela família ou pela criança, a fim de acobertar conflitos individuais e familiares emergentes. No adolescente, dificuldades no desempenho com o sexo oposto também podem influir na manifestação dolorosa.

Avaliação da Dor na Criança.

No RN e no lactente apenas os parâmetros fisiológicos de estresse podem nos ajudar nesta avaliação. Diversos trabalhos na literatura confirmam a relação da dor com cada um dos seguintes parâmetros: choro, agitação ,motora sudorese palmar taquicardia hipertensão sistólica e queda da SaO2 transcrutânea.1,11,12 Também não devemos desconsiderar a avaliação subjetiva da mãe, da enfermagem e a nossa própria.

Com o objetivo de avaliar a intensidade da dor, surgiram, recentemente, várias escalas (escala objetiva de dor, escala de Jeans, escala de Gauvain-Piquard etc.). Várias delas foram desenvolvidas primariamente para avaliação da dor pós-operatória, o que dificulta o seu uso para fins de avaliação semiótica. Para os pacientes menores, a escala Oucher apresenta como método de gradação a expressão facial do paciente, e vai desde o sorriso até o choro inconsolável.1

Nos pacientes maiores, que já possuem alguma capacidade de formular conceitos abstratos, além do seu próprio relato, podemos dispor de escalas analógicas, como a de Huskisson, onde o paciente é induzido a comparar sua dor em uma escala analógica visual de barras.1

Um cuidadoso exame devera ser feito no local provável da dor e se avaliar pela inspeção, palpação e outros testes semióticos se a fonte causadora da dor é local ou a distância. No paciente com um processo patológico qualquer, a palpação fornece uma avaliação qualitativa como também quantitativa; dependendo da intensidade do estímulo aplicado. 12 A palpação simétrica contralateral também fornecerá idéia sobre a provável localização exata do ponto doloroso. Em crianças menores é importante remover qualquer fator estressante externo: frio, ruído, desconforto etc. Às vezes, nos RN e lactentes, o uso da chupeta auxilia muito. Ao examinar não devemos realizar manobras bruscas.

Evitar a administração de analgésicos ao paciente, antes do esclarecimento diagnóstico, e caso eles já tenham sido dados, levar em consideração ao avaliar a intensidade da dor abdominal.5

Nos lactentes e crianças pré-escolares difíceis de ou rebeldes, podemos lançar mão de alguns para facilitar o exame do abdômen: (1) esperar que a durma e examiná-la dormindo com palpação suave (2 ) pedir aos pais que palpem e apontem o local do dolorimento máximo em seguida, examinamos e (3) caso seja necessário, podemos sedar o paciente, ou mesmo usar a anestesia geral.

É clássica a descrição de que a dor em cólica deixa paciente agitado, ansioso, em busca de uma posição antálgica que ele não consegue obter, diferentemente das dores continuas e localizadas, nas quais o paciente se acomoda em uma posição e procura não se Movimentar muito.5 Isto é válido para as crianças, exceto para as de idade mais tenra, que reagem indistintamente a todo tipo de dor com choro e agitação motora.

Dor Abdominal Psicogênica

A dor abdominal de origem psicogênica é comum na faixa etária escolar (sete a 11 anos), incidindo em 10 a 15%, com leve predominância em meninas A dor é recorrente, algo similar a câimbras, podendo ser muito severa , usualmente periumbilical , mas quase nunca impede o paciente de dormir.6,12 Uma regra citada por Pemetta 10 é que quanto mais distante do umbigo e mais precisa a localização da dor, menor a chance de ela ser psicogênica. Pode estar associada a vômitos náuseas, tonteiras e dor de cabeça. Geralmente não há relação com alimentação ou hábitos fisiológicos. A história familiar de queixas similares é positiva na maioria das vezes.

O diagnóstico de dor psicogênica, segundo McGrath (1989), deve ser positivo e não somente um diagnóstico de exclusão, onde são rotulados os pacientes que não têm a causa da dor esclarecida. Esse autor considera que uma criança que apresente dor abdominal quando submetida a um fator emocional estressante e que melhora com a remoção deste fator, esta pode ser considerada como dor psicogênica.9 Porém, isto não exclui que seja portadora de uma doença abdominal orgânica.3 Um outro fator envolvido na origem da dor abdominal psicogênica é o abuso sexual, o qual deve ser cautelosamente pesquisado se existirem indícios sugestivos.

Cólica do RN e do Lactente

A história típica é de uma mãe insone com o choro incessante de seu bebê, o qual flete as coxas sobre o abdômen e se debate, inconsolável, apesar de todas as medidas para acalentá-lo.

O exame físico usualmente normal, não revela mais do que distensão abdominal e flatulência. Uma série de trabalhos tem estudado a possível etiologia deste problema, sem chegar, contudo, à conclusão aceitável. Recomenda-se mudanças dietéticas e comportamentais na tentativa de resolver o problema.7

Síndromes Abdominais Dolorosas Mais Comuns na Infância.

Síndromes Dolorosas Relacionadas a Hérnias. Estas síndromes iniciam-se com dor súbita e de intensidade variável e desaparecem com a redução do encarceramento visceral. Sintomas relacionados com a obstrução intestinal podem estar associados, intensificando a dor, modificando até sua natureza contínua, em paroxismos de cólica. À palpação, há dor e tumefação no local da hérnia. A hérnia epigástrica tem maior tendência a manifestar-se com um quadro doloroso discreto, principalmente à palpação. As hérnias inguinal e umbilical geralmente só apresentam dor significante quando encarceradas; o simples alojamento de vísceras no saco herniário, sem encarceramento, pode gerar sensação de desconforto e incômodo abdominal. O médico deve estar atento para o encarceramento da face antimesentérica da alça no colo herniário (hérnia de Richter), o qual pode passar despercebido ao exame físico. Nestes casos deve-se fazer o toque retal no paciente com hérnia inguinal. O encarceramento de hérnia umbilical é muito raro e o diagnóstico não apresenta dificuldades.

Síndromes Abdominais Obstrutivas. A obstrução intestinal de qualquer natureza causa geralmente uma dor abdominal aguda, súbita, paroxística, tipo cólica, referida ao local onde as alças a montante da obstrução projetam sua dor visceral. Por exemplo, se a obstrução é ileal, as alças jejunais a montante dilatar-se-ão, o que causará dor no mesogástrio, onde usualmente se projeta a dor visceral referida do jejunoíleo.2 Se a obstrução é alta, o vômito tende a melhorar a dor, pois alivia a distensão; caso contrário, o alívio é mínimo. Na criança, o exemplo mais típico de síndrome obstrutiva é a intussuscepção Nesta, o quadro inicia-se subitamente, com choro forte ou gritos de dor e com flexão simultânea das coxas sobre o abdômen. As crises dolorosas intensas são entremeadas por períodos de acalmia. À palpação encontraremos uma massa no abdômen, que se desloca ao manuseio. Poderá haver dor localizada, dependendo do comprometimento do peritônio parietal.

Síndromes Dolorosas do Abdômen Inferior. Há uma gama de doenças que cursa com dor no abdômen inferior, desde as de natureza cirúrgica, como apendicite, a doenças de tratamento clínico (p. ex.: as colites bacterianas), A intensidade da dor varia muito com a doença de base e sua evolução. Porém, nesta síndrome, deveremos estar atentos a detalhes como migração do local doloroso inicial (como ocorre na apendicite), intensidade, presença de sintomas associados (febre, vômitos diarréia etc.). A palpação auxilia muito na localização do ponto doloroso, na maioria dos casos de dor no abdômen inferior. O toque retal, quando doloroso, indica acometimento do peritônio pélvico. 10

Síndromes Dolorosas do Andar Superior do Abdômen. Esta sintomatologia não é freqüente na infância. A forma mais comum surge com dor intensa, súbita, localizada no epigástrio e com freqüência evolui para a instabilidade hemodinâmica e o choque. Suas características de irradiação definirão melhor o provável sitio de origem. Se há irradiação para o hipocôndrio direito, com sensibilidade à palpação desse local, pensa-se em colecistite, peri-hepatite e hepatite. Caso a dor se irradie para o hipocôndrio esquerdo e dorso, a hipótese de pancreatite é provável. No caso da dor se generalizar para todo o abdômen com sinais de peritonismo, a hipótese de perfuração ou ruptura gastroduodenal deve ser considerada. Uma possibilidade rara, mas que pode acontecer em crianças, é o vólvulo gástrico agudo, quando, além da dor, surge distensão epigástrica localizada e há dificuldade na progressão de um cateter nasogástrico.4

Síndromes Abdominais por Dor Referida. Este é um grupo polimorfo de doenças cujas manifestações abdominais são muito variáveis. Há grande dificuldade em se localizar precisamente a dor, e sempre coexistem, na maioria dos casos, outros achados semióticos, sugerindo que a verdadeira causa do problema não se encontra no abdômen. A palpação, o abdômen é pouco doloroso, mas em alguns casos podemos ter uma reação dolorosa intensa. As doenças mais comuns com estas características são: faringite, viroses, meningites (especialmente a tuberculosa), pneumonias de lobo inferior, pleurites, infecções urinárias, intoxicações, drepanocitose etc. 10

Dor Abdominal que se Irradia para a Região Genital. Este tipo de padrão doloroso, usualmente apresenta-se com dor tipo cólica, intensa, súbita e corri tendência migratória para o abdômen inferior, hipogástrio e região genital (escroto ou grandes lábios). É forte indício de litíase urinária, sugerindo migração do cálculo pelo ureter ipsilateral 5.

Dor Abdominal Generalizada. Esta síndrome, caracterizada por dor intensa, generalizada, acompanhada de exacerbação da mesma à descompressão local (sinal de Blumberg positivo) e respiração rápida e superficial, é indicativa de irritação peritoneal intensa. Surge nas peritonites bacterianas e químicas e no hemoperitônio. 5

Síndrome Dolorosa que Segue um Dermátomo. Quando se consegue definir com precisão que o paciente apresenta dor ou hiperestesia cutânea relacionada com um ou mais dermátomos, deveremos considerar a hipótese de herpes zóster ou de pinçamento de raiz nervosa dorsal. A dor nesses casos geralmente surge insidiosamente e vai progredindo em intensidade, é contínua e bem localizada. A palpação abdominal pouco ajuda, exceto pelo achado eventual de uma rigidez muscular, usualmente no dorso, com escoliose antálgica no caso de compressão de raiz nervosa. Não é freqüente na infância. 3,5

Referências Bibliográficas

1. BEYER, J. & WELLS, N, Avaliação da dor em crianças. Clínicas Pediátricas do América do Norte 36(4):881900, Rio de Janeiro, Interlivros, 1989.

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4. CAMPBELL JR. Other conditions of the Stomach. In: WELCH, K.J. et al. (ed.) Pediatric Surgery. 4 ed., Chicago, Year Book Medical Publishers, 1986, v. 1, pp. 821-27.

5. COPE, Z. Diagnóstico precoce do abdômen agudo. Trad. Aloysio Amâncio, 2 ed., Rio de Janeiro, Atheneu, 1976, 222 p.

6. FORDYCE, W.E. Abdominal pain primarily of psycologic origin. In: BONICA, J.J. The management of Pain. 2 ed., Philadelphia, Lea & Febiger, 1990, 2 v., v. 2, cap. 63, pp.1.250-3.

7. GEERTSMA, A.M. & HYAMS, J.S. Clínicas Pediátricas da América do Norte, 36(4);955, Rio de Janeiro, 1989.

8. MARSHALL, R. Clínicas Pediátricas do América do Norte. 36(4):933, Rio de Janeiro, 1989.

9. MCGRATH, P.J. & GRAIG, K.D, Clínicas Pediátricas da América do Norte. 36(4):865, Rio de Janeiro, 1989.

10. PERNETTA, C. Diagnóstico diferencial em pediatria. 3 ed., São Paulo, Sarvier, 1985, 671 p.

11. TRUOG, R. & ANAND, K.J.S. The management of pain in the postoperative neonate. Clinics in Perinatology, 16(1):61-78 Philadelphia, W,B. Saunders Co., mar/1989.

12. TYLER, D.C. Pain in infants and children. ln: BONICA, J.J. The management of pain. 2 ed. Philadelphia, Lea & Fabiguer, 1990, 2v., v.1, cap.29, p. 538-51.

13. WILLIAMSON, P.S. & WILLIAMSON, M.L. Pediatrics, 71:36, 1983.

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