Capítulo 27 - Arritmias Geradas nos Átrios Capítulo 27 - Arritmias Geradas nos Átrios

José Hallake
Roberto M. da Silva Sá


Introdução

São as seguintes as arritmias geradas nos átrios:

- Ritmo atrial esquerdo.
- Marcapasso migratório.
- Ritmo atrial caótico.
- Taquicardia paroxística atrial.
- Fibrilação atrial.
- Flutter atrial.
- Extra-sístoles atriais (estudadas no Capítulo 31).

Ritmo Atrial Esquerdo

O conceito de ritmo atrial esquerdo foi firmado por Mirowski.1 Ele observou que alguns casos rotulados de ritmo juncional (ondas P negativas em D2, D3 e aVF) também apresentavam ondas P negativas em D1 e V6. Concluiu que, em realidade, se tratava de um ritmo originário do átrio esquerdo (Fig. 27-1). Muito útil para esse diagnóstico é a morfologia entalhada de P em V1, sendo a primeira porção arredondada (despolarização de átrio esquerdo) e a segunda pontiaguda, de maior voltagem (despolarização do átrio direito). Esse aspecto é chamado de onda P em "arco e flexa" (dart and dome) (Fig. 27-1).

Marcapasso Migratório

É uma condição na qual o marcapasso dominante migra dentro do nódulo sinusal (da cabeça à cauda) e fora do mesmo, até outros marcapassos latentes (átrio direito baixo, átrio esquerdo, junção AV). Assim, teremos ondas P com varias morfologias e polaridades em uma mesma derivação (Fig. 27-2). Essa arritmia também é chamada de marcapasso errante.

Ritmo Atrial Caótico

É também chamado de taquicardia atrial multifocal. Observamos diferentes morfologias de P em uma mesma derivação (no mínimo três), com freqüência atrial elevada, freqüentemente com dissociação atrioventricular (Fig. 27-3). E um ritmo, habitualmente, pré-fibrilação atrial.

Taquicardia Atrial Paroxística>

É uma arritmia cujo mecanismo ocorre ao nível do miocárdio atrial e independe da participação dos nódulos sinusal e AV para a sua perpetuação. As taquicardias atriais paroxísticas podem ser secundárias a um aumento do automatismo das células atriais ou a mecanismo de reentrada.

Os paroxismos freqüentemente são introduzidos por extra-sístoles. A freqüência atrial varia entre 140 e 230 bpm e, quando a condução AV mostra-se do tipo 1:1 (Fig. 27-4), a onda P precede o complexo QRS, com ou sem intervalo PR prolongado. A polaridade da onda P depende do local de sua origem. Nas taquicardias de origem atrial esquerda, as ondas P serão negativas em D1 e V6; nas de origem atrial direita alta, serão semelhantes às ondas P sinusais. Na atrial direita baixa, serão negativas em D2, D3 e aVF; este último aspecto é indistinguível da taquicardia juncional.

Usualmente, as taquicardias paroxísticas supraventriculares apresentam regularidade quase absoluta. Porém, em presença de doença do nódulo AV ou sob a ação de drogas que deprimem a condução AV, podem ocorrer bloqueios AV de graus variáveis. São então, chamadas de taquicardiais atriais com bloqueio AV. A Fig. 27-5 mostra um exemplo de taquicardia atrial com BAV do tipo Wenckebach, e a Fig. 27-6, um bloqueio AV do tipo 4:1.

Os complexos QRS geralmente têm duração normal, sendo semelhantes aos obtidos no ECG fora da crise. Às vezes, os complexos ventriculares podem estar alargados por aberrância de condução ou por distúrbio prévio da condução ventricular.

Fibrilação Atrial

Representa a mais comum das arritmias sustentadas; ocorre em 2% dos indivíduos acima de 30 anos.2

Essa arritmia é caracterizada por despolarizações atriais totalmente desorganizadas e sem uma contração atrial efetiva. O processo de ativação atrial é completamente caótico. A atividade elétrica atrial pode ser detectada no ECG como pequenas ondulações irregulares da linha de base de diferentes amplitudes e morfologias, chamadas de ondas f, com freqüência variando de 350 a 600 bpm. Usa-se o termo fibrilação atrial "fina" ou "grossa" na dependência de menor ou maior amplitude das ondas f. A resposta ventricular é grosseiramente irregular e, no paciente sem uso de medicação prévia, com condução AV normal, varia geralmente entre 100 e 160 bpm.

Deve-se suspeitar de fibrilação atrial toda vez que o ECG mostrar complexos supraventriculares com ritmo irregular e ausência de ondas P.

A presença de ondas f provavelmente não representa a atividade atrial completa, mas evidencia apenas os vetores maiores gerados pelas múltiplas ondas de despolarização que ocorrem num determinado momento.3

A ativação dos ventrículos se dá no sentido transverso, o que permite um rápido processo de despolarização e repolarização, com as fibras se despolarizando quase simultaneamente. Nos átrios, entretanto, o processo de ativação e repolarização se dá no sentido longitudinal, por contigüidade, como um arranjo de dominós em que a queda de uma pedra resulta em uma reação em cadeia que faz todas as outras caírem. Além disso, os átrios têm uma forma assimétrica e a origem do estímulo é excêntrica, já que o nódulo sinusal localiza-se na parede do átrio direito. Por isso, podemos ter, no interior dos átrios, em um dado momento, fibras miocárdicas próximas do nódulo sinusal, que já se despolarizaram e repolarizaram, fibras a média distância, que ainda estão se despolarizando, e mais distantes, que ainda não se despolarizaram. Essa assimetria fisiológica pode ser mais acentuada se os átrios estão aumentados, se o tempo de condução está lentificado, se o período refratário está encurtado ou se há lesão das fibras atriais, com regiões localizadas em que a condução e a refratariedade são diferentes do tecido atrial normal. Assim, estímulos precoces oriundos de extra-sístoles atriais, de ecos atriais de extra-sístoles ventriculares, ou de freqüências atriais rápidas por taquicadia ou flutter atrial permitiram que a acentuação da assimetria fisiológica fosse tão intensa que favoreceria o aparecimento de múltiplos circuitos reentrantes no interior dos átrios, que passariam a ter uma atividade elétrica caótica.3

O nódulo AV é um protetor fisiológico dos ventrículos. Por suas características eletrofisiológicas intrínsecas de condução lenta e período refratário longo, o nódulo AV impede que estímulos atriais de alta freqüência sejam transmitidos diretamente aos ventrículos. Assim sendo, nem todas as ondas f são conduzidas através da junção AV, de modo que uma resposta ventricular rápida, comparada com a freqüência atrial, não ocorre. Muitos estímulos atriais sofrem condução oculta ou são bloqueados na junção AV, não sendo conduzidos para os ventrículos, os quais são responsáveis pelo ritmo ventricular irregular. O período refratário e a condutividade nodal AV são determinantes da freqüência ventricular. A Fig. 27-7 exemplifica a fibrilação atrial com diversos tipos de resposta ventricular em função de maior ou menor bloqueio nodal.

Estudos recentes têm evidenciado a possibilidade de a transmissão dos estímulos através do nódulo AV durante a fibrilação atrial ocorrer eletronicamente4 e que a porção distal do nódulo AV se comportaria como um marcapasso produzindo o ritmo ventricular durante a fibrilação atrial.5

O mecanismo da fibrilação atrial, apesar do exposto acima, ainda permanece sub judice. Múltiplos circuitos de reentrada por movimento circular, e foco automático único ou múltiplo, apresentam-se como possíveis causas.6

Em casos de fibrilação atrial em vigência de via anômala (síndrome de Wolff-Parkinson-White), o período refratário dessa é que irá determinar o grau de passagem dos estímulos atriais para os ventrículos. Em casos de vias acessórias com períodos refratários curtos (inferiores a 240 ms), a freqüência ventricular pode ultrapassar os 200 bpm e produzir importante repercussão hemodinâmica para o paciente. O padrão eletrocardiográfico atrial associado à pré-excitação ventricular é, muitas vezes, passível de confusão diagnóstica.

A Fig. 27-8 exemplifica essa situação.

É digno de nota que a grande maioria dos pacientes que desenvolvem episódios isolados de fibrilação atrial paroxística apresenta no ECG basal (precordiais médias, V3 e V4), evidências de distúrbio de condução intra-atrial, melhor observado com o aumento da calibração (2N), como mostra a Fig. 27-9. Acredita-se que essa alteração represente o substrato para tal arritmia.

Flutter Atrial

Flutter é uma palavra de origem inglesa que significa movimento arrebatado, vibração, agitação, alvoroço. O termo foi usado pela primeira vez por Mac William em 18877 ao observar, a olho nu, o comportamento dos átrios de um cão após aplicação de uma corrente farádica.

O diagnóstico eletrocardiográfico de flutter é feito pela presença de um serrilhado tipo "dente-de-serrote" na linha de base. Esses padrões de ondas de flutter foram designados de ondas F, e são melhor visualizados nas derivações periféricas, D2 (Fig. 27-10), D3 e aVF e na precordial V1. Muitas vezes o diagnóstico pode ser confirmado com maior segurança através de derivações esofágicas (Fig. 27-11).

Desde os tempos de Lewis (1913) o flutter atrial tem sido classificado em tipo "comum" e "incomum", de acordo com o padrão das ondas atriais. Essas, no tipo comum, têm predomínio de negatividade na parede inferior (D2, D3 e aVF) e predomínio de positividade em aVR e aVL, sendo contínua a ondulação de linha de base. O tipo incomum é representado por qualquer outra forma cujas ondas atriais não preencham esses dois parâmetros. Acredita-se que a forma comum teria sua origem na parte baixa do átrio, enquanto alguns tipos incomuns teriam origem na parte alta do átrio.6

A escola de Birmingham divide o flutter atrial em tipos I e II. O tipo I possui freqüência intrínseca entre 240 e 340 bpm, e é de modo geral facilmente revertido por manobras, tais como estimulação transesofágica ou pacing atrial: ao passo que o tipo II geralmente não responde à estimulação externa e possui uma freqüência rápida entre 340 e 430 bpm. O tipo II talvez represente um tipo intermediário entre o flutter atrial clássico e a fibrilação atrial.8

A freqüência atrial no flutter é um critério definido arbitrariamente e, como tal, varia de um autor para outro.

O início de um surto de flutter atrial é geralmente precedido de um estado de instabilidade elétrica atrial e, mais raramente, ventricular. Essa instabilidade manifesta-se principalmente através do aparecimento de extra-sístoles atriais conduzidas para os ventrículos ou bloqueadas, de caráter muito precoce, muitas vezes imperceptíveis, pois ficam mascaradas pelas ondas T, tal a sua precocidade.

A ativação atrial precoce, encontrando os átrios em fase de grande dispersão da repolarização, produz conduções assimétricas, bloqueios direcionais, criando substrato básico para o aparecimento de mecanismos reentrantes.

Esse estado de instabilidade é chamado freqüentemente de pré-flutter ou pré-fibrilatório. O término do surto geralmente ocorre por esgotamento dos mecanismos básicos produtores. Observou-se, de forma súbita, a parada da atividade atrial contínua, com ondas F conduzindo ou não para os ventrículos e retorno ao ritmo sinusal.3,9

Nos casos não tratados, a condução AV é geralmente do tipo 2:1, sendo assim difícil reconhecer tanto o flutter quanto a freqüência atrial, pois cada onda F que se sucede pode ser parcialmente mascarada pelo QRS-T mais próximo (Fig. 27-12). A condução AV pode variar de 2:1 a 8:1 ou mais, dependendo do uso de drogas ou de patologias do sistema de condução AV. Quando a freqüência de condução AV se mantiver constante, o ritmo ventricular será regular; caso a freqüência de condução varie, geralmente devido a bloqueio AV do tipo Wenckebach, o ritmo ventricular será irregular. Alternâncias entre ciclos longos e curtos podem ser decorrentes de condução oculta na junção AV. 10,11,12

Apesar de o mecanismo responsável pelo flutter atrial não estar totalmente esclarecido, é bem provável que diferentes tipos de flutter possam ter diferentes mecanismos. A tendência atual é de se aceitar como principal mecanismo, o mais provável na maioria dos casos, uma microrreentrada ou foco automático na parte baixa do átrio.

Extra-Sístoles Atriais

Serão estudadas no Capítulo 31.

Bibliografia

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5. Wittkampf, F. H. M.; de Jongste, M. J. L. & Meijler, F. L. Competitive anterograde and retrograde atrioventricular junctional activation in atrial fibrilation. J. Cardiovascular. Electrophys, 1:448, 1990.

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11. Homcy, C.; Lorell, B. & Yurchak, P. M. Atrial flutter with exit block. Circulation, 60:711, 1979.

12. Fagundes, M. L; Maia, I. G.; Bisaglia, R. E. et al. Flutter atrial com bloqueio de saída. Um indicativo de automatismo ectópico. Arg. Bras. Cardiol., 39 (Sup. 1):22, 1982.

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